La Mort de Louis XIV, de Albert Serra (Portugal/França, 2016); Gimme Danger, de Jim Jarmusch (EUA, 2016)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2016

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Maiores que a vida
por Eduardo Valente (colaboração especial)

Entre muitas coisas a que o cinema se presta, poucas são mais intrinsicamente suas contribuições do que a maneira como ele permite que certos rostos e corpos se imponham na tela como presenças acima de qualquer existência carnal, ao mesmo tempo eternizados e perenes nos seus momentos. Essa operação, em suas demonstrações mais firmes, não depende apenas do que é inato à linguagem audiovisual (essa captura de um tempo que corre através dos corpos), mas também de algo muito mais difícil de definir, que alguns chamam de presença, “star quality”, e tantos outros nomes. Às vezes é bonito quando vemos alguém nascer para essa outra dimensão, mas ontem foi dia de rever corpos-rostos míticos ocuparem a tela grande e nos tornarem pouco mais que figuras hipnotizadas pela energia que se espalha a partir da tela.

Primeiro, pudemos assistir a um desses ícones que o cinema criou ao longo dos anos, e que acompanhou em boa parte da sua trajetória pelo planeta. Falamos de Jean-Pierre Léaud, ator-símbolo em várias medidas do cinema francês moderno, pós-Nouvelle Vague, que em muitos sentidos “nasceu para o mundo” justamente em Cannes, em 1959, com a exibição de Os Incompreendidos. De lá por diante, principalmente via seu personagem naquele filme e numa série de outros feitos por Truffaut com ele, mas também por muitos outros filmes de enormes cineastas (Godard, Rivette, Eustache, Garrel, Pasolini, mas também mesmo Glauber Rocha e Cacá Diegues), Léaud foi registrado da infância à juventude à maturidade à velhice, sempre com seu “jogo” (como dizem os franceses) extremamente peculiar, ao mesmo tempo auto-consciente e capaz de emocionar de maneira pregnante. Um mito, em suma, e é assim que ele tem sido (corretamente) tratado e filmado nos últimos anos, como em Face (2009), de Tsai Ming-liang; O Pornógrafo (2001), de Bertrand Bonello; ou Irma Vep (1996), de Assayas, pra falar de alguns filmes que, independente do personagem, filmavam sempre Léaud.

Nessa linha é que chega agora La Mort de Louis XIV, de Albert Serra, que a esse movimento sobre o ator soma a figura do Rei-Sol. Mito sobre mito, história da França e história do cinema se misturam num exercício sempre fascinante de filmar, como adianta o título: o processo final de um corpo que vai se aproximando rapidamente do fim. O filme faz a crônica (palavra mais que adequada, vendo-se que se baseia em registros bastante detalhados e quase descritivos) dos últimos dias da vida do Rei, quando ele já quase não saía de seu quarto, tomado pela doença que o mataria. Nesse período, acompanhamos muito pouco sobre o que se passa fora daquele espaço, seja no palácio em torno, seja principalmente na França ou no mundo. Porque, nos parece afirmar Serra, frente à morte e ao inexorável fim físico de um corpo, todo o resto se torna pequeno e desimportante.

O filme utiliza o que de melhor o cinema de Serra sempre teve (seu olho atento e sua capacidade de dar tempo aos planos e sequências de se completarem na tela), sem nenhum dos seus problemas (uma certa autocomplacência na maneira de misturar realidade e fábula, uma dificuldade de articular a dimensão humana com a construção teórica de seus jogos audiovisuais). Se grande parte de sua força vem da ideia brilhante de usar Léaud no papel principal, o filme está longe de se contentar com isso. Há nos diálogos e ações em cena uma série de dimensões em jogo, como a questão da inutilidade da ciência frente ao inevitável (ainda mais a Medicina no século XVIII, verdadeiro jogo de adivinhação), ou o estado de teatro da monarquia (mas não apenas, do mundo do poder), exposto ao seu mais ridículo frente à materialidade da doença, entre outros temas. O filme nos hipnotiza pouco a pouco com seu ritmo, com seu trabalho de luz impecável, com seus cortes atentos. Mas, sim: é Léaud que eleva tudo isso ao tamanho de uma obra importante, marcante de verdade.

Num certo sentido, é a mesma coisa que acontece com Iggy Pop em Gimme Danger, documentário de Jarmusch sobre os Stooges e sua trajetória. Não que o filme seja, como se ouviu dizer por alguns, convencional e apenas informativo como documentário, longe disso. Jarmusch enche seu filme de uma tentativa deliciosa de transpor a linguagem e a alma do trabalho dos Stooges (espírito de improvisação, falta de respeito pelos materiais do que veio antes – no caso do filme, arquivos de imagens -, nenhuma forma de atendimento à ordem do bem feito como fim maior), mesmo que haja sim uma preocupação expressa em contar e narrar em detalhes essa história – porque Jarmusch entende o quanto de desconhecida ela tem, ainda hoje, e também sabe da importância de justamente usar o cinema para dar eternidade a um momento bastante especial na história da música de um país.

No entanto, mesmo sendo o filme um objeto especial e único, sem Iggy Pop ele seria pouco mais do que um bonito e atento trabalho de um fã talentoso. Mas Iggy, seja no material de arquivo, seja nos numerosos momentos de depoimentos para a câmera de Jarmusch, eleva tudo isso a um outro patamar, aquele dos monstros sagrados, da capacidade de capturar os olhares de multidões ao mesmo tempo, e não deixar que se dirijam a mais nada. Nesse sentido, Gimme Danger (cujo título em si já tem a dupla dimensão da piada sem vergonha – com o título do clássico longa sobre os Stones dos irmãos Maysles – e da recuperação de uma história – afinal, é título de canção dos Stooges) é exemplar, indo da piada inicial com a filmagem com Jim Osterberg (nome real de Iggy) até o discurso dele na cerimônia de entrada dos Stooges no Hall da Fama do Rock (preciso, brilhante, performático, irônico). Saímos da experiência do filme sentindo que entendemos melhor a história do rock (logo da música, logo do mundo), mas acima de tudo que sentimos porque os Stooges e Iggy são capítulo essencial nela. Não é pouca coisa, e é do que os mitos se fazem.

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