História da Minha Morte (Història de la Meva Mort), de Albert Serra (Espanha/França, 2013)

maio 5, 2014 em Em Vista, Victor Guimarães

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Da imagem-inação à impureza furiosa do desejo
por Victor Guimarães

Enquanto uma belíssima melodia preenche a noite – violão, alguns sopros, uma percussão suave –, um casal está sentado à mesa, detrás de um pequeno castiçal. A imagem é frontal, quase bizantina: trajando figurinos do século XVIII, os corpos roçam um no outro, desajeitados; a moça encara a câmera distraidamente algumas vezes. Há a solenidade das roupas e do décor, e o viço incomparável dessas atuações, desses rostos titubeantes que parecem entrar e sair do personagem no decorrer do plano. Nesses poucos segundos do prólogo de Història de la Meva Mort, algo da misteriosa alquimia do cinema de Albert Serra se descortina: trata-se de reconquistar a inocência onde ela parece menos provável; de oferecer ao grande relato literário um tratamento cinematográfico inesperado, que reencontra a vida da imagem onde só parecia existir letra morta.

Eram o Quixote e Sancho em Honor de Cavalleria (2006), eram os três reis magos e a sagrada família em El Cant dels Ocells (2008). O gosto pelas grandes figuras da literatura segue presente. Aqui, Serra decide narrar os últimos dias do aventureiro Giacomo Casanova, célebre por sua verve de conquistador e por suas memórias (Histoire de ma vie), às quais o título do filme faz referência. Durante a primeira meia hora, acompanharemos algumas cenas do cotidiano desse estranho personagem no interior de um castelo, cercado por serviçais, quadros, livros e mulheres. Mas, logo de início, um traço singulariza Història de la Meva Mort em relação à obra anterior de Serra: este será seu filme mais impuro, mais sujo. Se Honor de Cavalleria era um inabalável idílio de candura (haverá algum personagem mais puro do que Sancho Pança na história das narrativas?) e El Cant dels Ocells alcançava o sublime em sua aproximação à religiosidade, Història de la Meva Mort será um filme profundamente pecaminoso, flertando abertamente com a escatologia. Casanova (Vicenç Altaió), o maior dos libertinos, empresta ao cinema de Serra um coeficiente de impureza que fará com que o amadurecimento de um estilo signifique também um mergulho em outras trilhas, uma aposta inveterada no desconhecido.

A primeira parte também revela outro traço distintivo: ainda que o estilo minimalista permaneça – e ganhe outras nuances –, este será o filme mais romanesco de Serra, com maior investimento nos diálogos e em uma dramaturgia que, se continua rarefeita, nunca foi tão povoada por acontecimentos extraordinários (que só conheceremos mais tarde) e tão dedicada a desenhar um protagonista. No interior do castelo, conhecemos a personalidade de fim de século de Casanova, que combina a aversão ao Cristianismo com a simpatia pela Revolução, o gosto pela ciência com o interesse pelas artes ocultas, o humanismo com a mais desenfreada libertinagem. Como seria de se esperar, no entanto, trata-se de uma apresentação de personagem que é tudo, menos convencional. A dramaturgia de Serra continua atenta aos detalhes que passariam despercebidos, aos “tempos mortos”, com um fabuloso e benfazejo desprezo por qualquer arco dramático previsível. É como se, aos olhos de seu cinema, essas grandes narrativas da humanidade tivessem as proporções viradas ao avesso: onde o relato tradicional vê pontos de inflexão, Serra enxerga uma oportunidade de elipse; onde se espera entrelinha, ele vislumbra um acontecimento da maior importância; onde se pede um close-up, ele filma os atores de costas. 

Honor de Cavalleria (2006), Albert Serra

Honor de Cavalleria (2006), Albert Serra

El Cant Dels Ocells (2008), Albert Serra

El Cant Dels Ocells (2008), Albert Serra

Se, em Honor de Cavalleria, o realizador escolhia narrar a história do Quixote não através de suas célebres peripécias, mas dos tempos de espera e indecisão nos descampados catalães, em Història de la Meva Mort o cotidiano desses personagens no sul dos Cárpatos novamente ocupa o primeiro plano. Nos arredores da pequena casa de camponeses, onde se passa quase todo o filme, veremos as refeições, o trabalho com os porcos, as conversas displicentes entre as moças. Uma vez mais, a tarefa autoimposta do filme é a de transformar cada incursão na paisagem em uma fonte inesgotável de microacontecimentos estéticos; de fazer de cada movimento do rosto uma aventura da percepção. 

Se “Cervantes contrapôs às ficções cavalheirescas a pobre realidade provinciana de seu país” (como lemos em uma passagem do Ar de Dylan, de Enrique Vila-Matas), Serra lhe presta homenagem renovada a cada filme, encontrando a honra e a beleza não nos grandes atos dignos de nota, mas no mais corriqueiro dos gestos dos homens comuns. Há uma frontal oposição à grandiosidade do heroísmo óbvio, que reenvia à Marselhesa de Renoir (1938) e ao Evangelho Segundo São Mateus de Pasolini (1964). Nessa radical recusa à grandiloquência programada, um simples diálogo ao redor de uma árvore é alçado ao patamar de experiência decisiva. 

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No entanto, embora tenha algo de inegavelmente beckettiano, o minimalismo de Serra procura outros modos de engajamento do espectador. Se, em Esperando Godot (1952), o que está em jogo nos diálogos entre Vladimir e Estragon é uma instalação altamente provocativa da plateia nesse teatro do absurdo que é o nada da cena, em Serra não há nenhuma exasperação, nenhum gosto pela afronta direta. Na radicalidade dessa imagem-inação, nesses tantos momentos em que “nada acontece” – as recusas ao trabalho desse Sancho cujo sobrenome poderia ser Bartleby; a interminável caminhada dos reis magos pelo deserto; a perambulação das moças pela floresta ou as conversas sem futuro entre Casanova e os outros –, há um duplo gesto: de um lado, uma atenção detida à materialidade e à beleza do menor dos movimentos; de outro, um acúmulo de pequenas situações que nos prepara para uma catarse dos sentidos que, sim, virá. Seja no banho de rio de Don Quixote e Sancho, seja no encontro entre os reis e o casal Maria e José, há um grau de sublime que é impossível em Beckett: o cinema de Serra é uma arte da generosidade, que não hesita em nos oferecer alguns instantes de pura potência plástica e musical. O acúmulo tem um fim último: fazer o cinema renascer da espera e desaguar na calmaria, a beleza como resultado de árdua conquista.

Chegada dos reis em El Cant Dels Ocells (2008)

Chegada dos reis em El Cant Dels Ocells (2008)

Em Història de la Meva Mort, como nos outros filmes, boa parte da potência dessa estética minimal reside no antinaturalismo das atuações. Como Pasolini em sua busca por rostos africanos para os protagonistas de uma tragédia grega em Notas para filmar Orestes na África (1975), Serra está interessado em manter a contradição entre o personagem literário e o ator que o interpreta; em fazer desse encontro não uma encarnação, não uma mimese perfeita, mas um jogo (constantemente retomado) de entra-e-sai. Há o método de Straub-Huillet, mas há também um elogio da imprecisão que não encontramos nos filmes do casal. Há a desdramatização de Lisandro Alonso, mas há também um frescor que não está presente no Misael Saavedra de La Libertad (2001) ou no Argentino Vargas de Los Muertos (2004). A força de Pompeu, o ajudante de Casanova (novamente interpretado pelo extraordinário Lluís Serrat, que também fora Sancho e um dos reis magos), reside não apenas nos contornos incomuns desse personagem, mas nesse intervalo entre a figura dramatúrgica e o ator ocasional que a faz viver: vemo-lo sentado debaixo de uma árvore, e o ato de espantar os mosquitos com a mão é mais importante do que suas palavras perspicazes. Olhamos para os rostos jovens de Clara (Clara Visa), Delfina (Noelia Rodenas) e Carmen (Montse Triola), e o que mais impressiona é a potência dessas expressões tão indecisas, e tão profundamente belas. 

Mas se Història de la Meva Mort é o último estágio de um estilo inconfundível, é também a descoberta de uma trajetória sensorial inaudita. À medida em que a proximidade da floresta vai encontrando tradução na carne do filme – pela primeira vez, a natureza é também o lugar do desejo e do perigo, da sensualidade e da pulsão de morte –, todo um clima novo vai ganhando corpo. A engenhosidade dessa narrativa, que encontra na figura decisiva do Conde Drácula (Eliseu Huertas) seu desvio mais poderoso, é acompanhada por uma mutação estética que transforma a improvável mistura entre lirismo e escatologia em algo ainda mais pujante: o cotidiano camponês é encantado pelos rituais e pela alquimia, a calmaria pastoril se dilacera em terror absoluto. Drácula não é apenas o algoz que virá mudar o curso das coisas, mas um vírus que penetra aos poucos a forma: o que a duração do filme nos permite é uma jornada da luz artificial dos castelos à escuridão nua da floresta, da licenciosidade regulada da alcova à brutalidade inesperada das moças, do sentimentalismo das melodias iniciais aos ataques aterrorizantes da música que adensa a noite, das gravuras satíricas de Goya à gravidade tardia das Pinturas Negras (1819-1823).

Capricho n. 27 (1799), Francisco de Goya

Capricho n. 27 (1799), Francisco de Goya

Saturno devorando a un hijo (1818-1923, Francisco de Goya

Saturno devorando a un hijo (1819-1823), Francisco de Goya

Em uma bifurcação ao mesmo tempo narrativa e estilística, o idílio campestre e a sexualidade frívola dos últimos dias de Casanova se transformam em uma vertiginosa história de vampiros, sacrifício, tortura, vingança. Aquelas moças que nos ganhavam pela inocência tornam-se vorazes, e a impureza do desejo incontrolável assume o comando de tudo. A transitoriedade do lusco-fusco (essa tonalidade privilegiada do cinema de Serra, em que a fronteira entre os rostos e a paisagem parece se dissolver) se tinge do negro mais denso, e os diálogos quase sussurrados abrem espaço para o grito colérico – e orgástico – do soberano da noite. 

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A conversa miúda, o trabalho repetitivo, os movimentos suaves dos atores são contaminados pelo hieratismo vampiresco dos corpos, que encenam o estilizado trabalho da morte na floresta. A conquista paulatina da beleza, em Història de la Meva Mort, vem acompanhada de um mergulho singular nos códigos do cinema de horror, prenhe de sensualidade e de estranheza. Se Frankenstein teve de esperar meio século para encontrar sua mais bela e inesperada encarnação – O Espírito da Colméia (1973), de Víctor Erice –, Drácula teve de esperar quase um século inteiro para reencontrar a potência de uma ressurreição cinematográfica. Em pleno início de um novo milênio, o decadentismo novecentista encontra no cinema um novo mito de origem, que faz renascer a alma romântica sob vestes insuspeitadas. Confrontada com um poder que em tudo lhe excede, a frivolidade da elite europeia de fim de século só pode esperar pela mordida final.  

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