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Estranho: modos de usar

Cada vez mais, o cinema que se costuma exibir nos festivais é marcado por um apelo ao realismo, seja na sua vertente mais radicalmente naturalista, seja numa incorporação de aspectos fantásticos típicos de cinemas de gênero, mas onde se exige responder a uma lógica dramática e narrativa em que a construção de personagens/seres humanos retratados deve seguir regras psicológicas que emprestem a suas ações algum tipo de racionalidade onde possam se espelhar os espectadores. Inclusive, possivelmente o mesmo pode ser dito até mesmo da lógica de boa parte do cinema “de fantasia” comercial, como o Universo Marvel comprova, ou ainda pelos elogios aos chamados “exemplos sérios” de cinema de heróis, à la Batman de Christopher Nolan. Ou seja, pode haver espaço para fantasia, mas tanto menos para aquilo que é da ordem do “estranho”, do inclassificável pelas categorias do realismo narrativo. Nesses últimos dias, porém, tivemos em Cannes a oportunidade de acompanhar os novos trabalhos de três cineastas que têm construído boa parte de suas carreiras justamente nesse caldo mais propriamente “bizarro”, ainda que com pontos de partida (e chegada) bem diferentes.

Um dos mais profícuos “cineastas do estranho”, por assim dizer, é o japonês Takashi Miike, dono de uma produção quase maníaca na sua quantidade (tendo começado a filmar no começo dos anos 1990, já realizou mais de 100 filmes nos quase 30 anos de carreira) e de uma enorme coerência, acima de tudo, pela capacidade de constantemente desafiar qualquer noção de bom gosto e conforto que o espectador contemporâneo possa ter criado. Sua idiossincrasia foi em parte aceita nos festivais do mundo justamente pela força radical que tem, mas ainda assim apenas uma pequena parte de sua produção tem sido exibida nesses espaços. Não por acaso, aliás, um de seus dois filmes a ser exibidos na competição de Cannes, Escudo de Palha (2013), foi em geral bastante mal recebido, acusado de um filme “implausível”. Seis anos (e doze filmes – a imensa maioria dos quais só vistos em cinema no Japão) depois, ele volta a Cannes com seu novo filme, Hatsukoi (First Love, em inglês): só que “relegado” , por assim dizer, de volta ao espaço mais confortável para o fora da norma que é a Quinzena dos Realizadores. Inclusive, na apresentação do filme, Miike, dono do mesmo humor sarcástico que seus filmes deixam antever, aproveitou para “trollar” sua plateia: “Tenho más notícias, esse filme é uma história de amor inocente, não vai haver sangue, nem violência e muito menos cabeças cortadas”.

Como a primeira sequência do filme logo comprovaria, apenas a primeira parte era verdade: embora seja sim uma história de amor jovem, todo o entorno da mesma encontra-se afogado na violência e no sangue (e, sim, em algumas cabeças cortadas). Mas a verdade é que esses dois aspectos, em Miike, estão longe de serem contraditórios, aliás bem ao contrário, e Hatsukoi ilustra de maneira bem cristalina a forma como esses elementos se encontram intrinsecamente conectados. Que o mundo seja um local violento é algo dado de saída por Miike, mas isso não impede que os encontros e as conexões possam se dar, apenas se originam necessariamente em circunstâncias menos que ideais (ou melhor, idealizadas). É essa a história do jovem casal que o absoluto acaso colocará em contato: ele, um bebê abandonado na rua ao nascer (não sendo possível violência original maior) que encontra no boxe sua única forma de contato/comunicação real com o mundo (pelos punhos, portanto); ela, uma viciada em drogas mantida em cativeiro por traficantes pelas dívidas que seu pai deixou, abusada sexualmente. Não há, porém, espaço para exploração da miséria em Miike: essas simplesmente são as condições que se deram para seus personagens. No entanto eles vivem e enfrentam as circunstâncias de frente o tempo todo.

E que circunstâncias! Porque a sinopse desse encontro, que poderia facilmente ser uma sessão da tarde cheia de lágrimas e redenção se dá em Hatsukoi no ambiente de uma absurda coleção de personagens, alguns típicos do cinema de gênero japonês (logo, yakuzas, policiais corruptos, etc) e outros refletindo uma contemporaneidade extrema (imigrantes chineses que tomam os locais dos tradicionais códigos de postura dos antes refletidos). Miike cria uma enorme fauna fascinante de figuras absolutamente engajadoras no sentido emocional, com sua capacidade de emprestar a cada personagem/ator essas características excêntricas próprias, sem nenhuma necessidade da tal “profundidade psicológica”. São antes de tudo, personagens de cinema: em ação, se constroem enquanto fazem e não tanto quando falam – e, com frequência, enquanto atiram, batem, cortam, se matam. Como em tantos filmes de Miike, temos pelo menos quatro ou cinco sequências de ação incríveis, que recuperam o aspecto jubilatório da experiência cinematográfica, conseguindo ainda hoje (em que já “vimos tudo”) nos surpreender e constantemente levar da gargalhada ao choque. Miike acredita, acima de tudo, que o bizarro e o estranho são o que de mais humano todos temos – apenas nos seus personagens ninguém parece estar tentando esconder isso.

Em Little Joe, a austríaca Jessica Hausner também abraça a estranheza do humano de frente, fazendo do seu filme uma grande reflexão exatamente sobre não apenas o que seria o normal, mas também de que maneira os seres humanos constroem suas imagens de si mesmos e dos outros, ao ponto de poder falar em uma “identidade”. Seria essa identidade algo dado, ou uma construção no fundo frágil, tanto da parte da auto-imagem como, principalmente, do entendimento do outro? São temas muito fortes, que Hausner filma através de uma “estética da estufa”, por assim dizer – e usamos o termo de maneira muito precisa, uma vez que boa parte do filme se passa no ambiente de laboratórios e estufas onde cientistas tentam manipular espécies botânicas.

No entanto, não só esses espaços são as estufas de Hausner: quando estão em suas casas ou outros ambientes “naturais”, a câmera (assim como a trilha sonora – toda de obras do compositor japonês Teiji Ito, colaborador entre outros de Maya Deren – ou o trabalho dos atores) os segue tratando como essas espécies em constante observação e monitoramento. Hausner filma seus personagens como cobaias num experimento como os que eles fazem, num espelhamento que seguramente tem muito de consciente, mas que gera igualmente um mal-estar grande pela forma como parece instrumentalizar o que seria essa estranheza para fins de uma reflexão que, se certamente toca em temas pertinentes acerca dos dilemas humanos da existência, o faz a partir da necessidade de colocar o humano quase como uma categoria à parte. Parece em quase tudo o oposto de Miike, para quem o estranho nada mais é do o natural da nossa vida, que não pede muito mais do que frontalidade para que esteja em cena. Hausner faz um esforço tão grande para afirmar “olha como somos estranhos” que termina pontuando algo de intrinsecamente doentio nisso – ou seja, no fundo há um desejo inaudito de que talvez essa doença humana pudesse ser curada, numa existência mais “normal”.

Finalmente, pudemos assistir a segunda parte da odisseia de Joana D’Arc segundo o cineasta francês que mais frontalmente tem trabalhado com a ideia do estranhamento humano, Bruno Dumont. A primeira parte, Jeannette (exibida na Quinzena dos Realizadores há apenas dois anos), propunha sua maior estranheza na forma escolhida: um musical com tons de heavy metal para contar de maneira cantada a história dos primeiros anos da vida da personagem e seu encontro com o mistério da fé. Aqui, como o título já indica (Jeannette virou Jeanne), ele filma os momentos seguintes, em que ela já é uma guerreira pela libertação da França, e precisa lidar primeiro com as dúvidas e preconceitos sobre seu papel nessa guerra, e em seguida com o mais conhecido processo realizado pela Igreja Católica que vai levar à sua morte na fogueira.

Embora haja três cenas em que a música se impõe no filme (sendo que apenas uma delas em que um personagem canta em cena), Jeanne se distingue bastante do filme anterior, e ainda que se possa caracterizar sua forma de aproximação como menos excêntrica, isso apenas se dá porque Dumont nos indica que o que se passa ao redor de Joana D’Arc aqui já é suficientemente bizarro que não precisa ser amplificado. Por um lado, a encenação segue profundamente minimalista e sem preocupação excessiva com qualquer reconstituição histórica, especialmente as opulentas (a única cena de “batalha” é na verdade encenada como uma dança coreografada de cavalos com seus cavaleiros sobre eles), mas o que importa mais é a maneira como Dumont chama a atenção para o absurdo que é, de fato, tanto a forma como Joana D’Arc é tratada pelos outros comandantes ao longo da guerra, mas principalmente, por óbvio, pelos seus acusadores e torturadores durante o processo.

Nisso, o golpe de gênio de Dumont é ter trazido de volta a atriz que interpretou Jeanne em idade infantil no filme anterior. Acontece que hoje ela tem apenas 10 anos, e interpreta a personagem quando ela tinha 19 (em entrevista, Dumont disse que acha isso tão normal quanto o fato de que atrizes como Ingrid Bergman ou Maria Falconetti a interpretaram quando tinham 35 ou 39 anos – uma diferença maior de idade, portanto). Colocar Joana D’Arc face a seus acusadores ou soldados, com o corpo e, principalmente, o rosto (não por acaso três dos planos mais incríveis do filme são longos “retratos silenciosos” dela apenas olhando para esses personagens à sua volta) de uma criança de dez anos é efeito radical o suficiente para que toda a estranheza do mundo se encarne na tela. É pena, por isso, que ele não confie apenas na força bruta desse efeito de deslocamento, e sinta a necessidade de, num estilo típico seu desde sempre, mas radicalizado pós-filmes como O Pequeno Quinquin (2014) ou Mistério na Costa Chanel (2016), fazer com que os adultos à sua volta estejam sempre alguns tons acima e próximos do ridículo (em especial alguns dos religiosos nas sequências mais longas do processo). Termina parecendo um uso um pouco fácil do “bizarro” quando as palavras e atos que impõem àquela menina já carregavam toda a força do que é realmente estranho na natureza humana.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema. Dirigiu quatro filmes, foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Fundador da Semana dos Realizadores (2009), foi programador para vários festivais do Brasil. Atualmente é parte da equipe de curadoria do Olhar de Cinema e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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