Escudo de Palha (Wara no Tate), de Takashi Miike (Japão, 2013)

novembro 12, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

escudo de palha

Quantidade e realidade
por Raul Arthuso

Escudo de Palha é falsamente um filme realista de Takashi Miike. Visto após Hara-kiri – A Morte de um Samurai (2011) e 13 Assassinos (2010) – seus dois últimos filmes com maior repercussão no Ocidente, algo a se levar em conta quando se trata de um cineasta cujo grosso da obra ainda é bastante desconhecido -, Escudo de Palha se junta aos dois como filmes mais sóbrios e contidos, em que sua verve pelo retrato da violência e da colagem pop dos gêneros cinematográficos mantém-se à distância.

É claro que parece impossível uma ruptura de Miike com algum gênero cinematográfico e Escudo de Palha se passa no mundo do cinema policial. Reina um código moral e ético que é trazido a primeiro plano; o principal motor narrativo é o questionamento deste código. Mas não se trata de iconoclastia do policial, já que problematizar a ética e a moral do policial não é novidade há pelos menos 80 anos, quando o filme noir trouxe o lado sombrio do ordem e da justiça para a baila. Mas não se pode negar que, assim como em Hara-kiri, em Escudo de Palha não é a ação aventuresca que dá as cartas, mas o desenrolar do melodrama e a observação das personagens em conflitos mais internos que externos. Miike elabora assim uma mise en scène mais naturalista, onde os embates retóricos, as discussões e as provocações ganham destaque, enquanto o lado físico – e violento – do filme policial ganha valor ilustrativo.

No filme, um milionário oferece uma gorda recompensa a quem matar o assassino de sua neta de sete anos de idade. Por sua vez, um grupo de policiais tem a missão de levar o assassino preso até julgamento em Tóquio. Cria-se, então, uma situação muito parecida com Hara-kiri e 13 Assassinos, onde o código do melodrama aflora dentro de uma situação limite – no caso dos três filmes, uma missão suicida, o combate direto contra forças mais poderosas, pois em maior quantidade. Esse combate movimenta, simbolicamente, tanto os melodramas mais famosos de Douglas Sirk quanto, materialmente, Assalto ao 13º Distrito (1976), de John Carpenter.

Essa questão da quantidade é essencial no cinema de Miike. Ele sempre foi visto internacionalmente como uma cineasta da violência, o que, por um lado, reconhecia o papel do sangue, da perversão, da tortura e da morte em seus filmes. Por outro, a violência em Miike não tem a crueza de um Haneke nem o efeito de choque estilizado de Gaspar Noé. A violência em Miike é catártica, explode por um detalhismo hiperbólico. A precisão do cinema de Miike, que torna sua violência explícita fascinante, se dá na quantidade de detalhes superpostos (um exemplo: o lamén explodindo sobre a lente após o buraco causado por um tiro no estômago de alguém que acabamos de ver fazendo uma refeição). Miike é um cineasta do desenho e não do traço. Nesse sentido, seu universo de representação é análogo ao das histórias em quadrinhos: mesmo em seus filmes mais naturalistas, é o rococó do detalhe que se sobressai à impressão geral dos planos ou mesmo da narratividade do filme.

Escudo de Palha, então, é terreno ideal para o seu cinema. Há muitas possibilidades desse “detalhismo hiperbólico”: muitas pessoas reunidas, muitos policiais, muitos carros, um trem bala inteiro onde grande parte da ação acontece. A quantidade de dinheiro envolvida cria uma catarse coletiva que se traduz na quantidade absurda de elementos pictóricos. Escudo de Palha é o filme de Miike onde essa quantificação é mais presente – mesmo em comparação com a absurda narrativa em abismo de Ninja Kids!!! (2011) – pois tornada material humano e tecnológico. Se a trama ecoa o confinamento no espaço e a realização de uma tarefa das personagens de John Carpenter (mais especificamente Fuga de Nova York, de 1981, e Fantasmas de Marte, de 2001), a narrativa retoma o cinema policial de Hong-Kong dos anos 1980, John Woo e seu maneirismo.

Esse exagero de detalhes causa um ruído no naturalismo de Escudo de Palha e o filme se coloca num limite muito estreito de ambiguidade. É difícil aderir ao valores e crises das personagens quando se é colocado num jogo de suspeita quanto ao tratamento desses valores. Como muitas histórias em quadrinhos, por mais realista que se possa ser, há sempre uma corruptela ilustrativa.

Escudo de Palha é sabotado por essa ambiguidade que nunca assume as personagens e seus valores, nem a ironia a todo o processo. O filme fica numa zona de cinismo e tudo passa a ser questionável: as ações dos milionários e dos chefes de polícia, a ética dos protagonistas, a idoneidade de qualquer pessoa andando pela rua. Pois, a rigor, tudo é quantificável (leia-se: comprável). E, então, as próprias emoções levantadas pelo filme, os gêneros que administra (policial e melodrama) e os questionamentos que levanta podem ser relativizados. Aqui, o filme encontra uma continuação para Ninja Kids!!!: a narrativa em abismo tornou-se desconfiança em abismo.

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