Camille Claudel, 1915, de Bruno Dumont (França, 2013)

março 11, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

camilleclaudel

Um rosto esculpido na sombra
por Pablo Gonçalo

Com mais falas do que o normal, um tanto dramático e com atores profissionais como protagonistas – esses três aspectos sintetizariam uma possível estranheza causada por Camille Claudel, 1915  para aqueles que acompanham a obra de Bruno Dumont. A surpresa tem suas justificativas e requer certa paciência para um julgamento mais acabado. O estilo que Dumont vem tecendo ao longo dos anos é, de modo genérico, estruturado numa parcimônia ou quase ausência da fala, num minimalismo dramático, e sempre se esmerou em apresentar atores amadores, figuras desconhecidas, bizarras. Constante, a comparação entre Dumont e Robert Bresson não surge de modo fortuito. Ambos reduzem o artificialismo da atuação teatral para buscar uma encenação que posicione modelos – e não atores – de frente para a câmera. Trata-se de um projeto bem peculiar de mise en scène que, com Dumont, atingiu seu ápice em Hors Satan, obra de 2011.

Por isso é um tanto estranho ver Juliette Binoche tão protagonista, tão atriz e intérprete num filme do diretor francês. Não afirmo que ela não esteja bem, pelo contrário, mas, aparentemente, ela é dirigida por outro Bruno Dumont. Sintomáticas, essas mudanças podem ser interessantes. No caso de Camille Claudel, 1915 constata-se uma moldura dramática um tanto redonda que acabou por aplainar os mergulhos narrativos misteriosos nos quais Dumont sempre nadou muito à vontade, com braçadas largas. De forma didática demais, o filme começa e termina com letreiros que contextualizam, justificam e mesmo corroem instantes onde eclodiriam ricas e possíveis sensações. É curioso, aliás, ver letreiros no filme de um diretor que sempre trabalhou as sugestões e a dissolução dos personagens nas paisagens. Ao se atrelar a fatos, contextos e discursos históricos, Dumont optou por um porto seguro. Embora atenuantes, tais escolhas não retiram totalmente a força do seu novo filme.

Compreende-se o fascínio de Dumont pela figura de Camille Claudel. Seu recorte temporal, como ano de 1915, é bem preciso e ele sabe explorar com exatidão as convulsões emocionais da artista francesa. O roteiro enfatiza um encontro entre Camille e Paul Claudel, seu irmão, que é um renomado poeta católico francês. A história de Camille é um tanto difundida – já teve, inclusive, uma versão filmada em 1988, por Bruno Nuytten, na qual conta-se a relação amorosa entre Camille e Auguste Rodin, o escultor apolíneo, monumental, que construiu uma das mais destacadas obras de escultura do Modernismo. À sua sombra, apaixonada, abandonada e mal-tratada por Rodin, Camille teceu esculturas mais delicadas que fisgavam – da pedra bruta –  os detalhes, os sussurros, os suspiros, as súplicas. Instantes mínimos para uma artista pisoteada pelo machismo da época. Não por acaso, Camille pirou, e passou as últimas décadas da sua vida internada num hospício. Foi seu irmão quem tomou a decisão do tratamento e financiou o seu isolamento. Intransigente, Paul culpava Camille pelo infortúnio que a afligia.

De forma perspicaz, Dumont dissolve esse contexto dramático no cotidiano do hospício: o almoço, o passeio a espera, lenta, de Camille pela visita do seu irmão. É entre essas fatos comuns que o grotesco entra em cena. De forma polêmica, Dumont inseriu aí suas atrizes amadoras, como mulheres com distúrbios mentais verdadeiros. São elas que babam, gritam, e batem a colher na mesa, à volta de Camille, que mantém-se quase sempre discreta, elegante. Quando grita, é para reivindicar decência e respeito, valores carcomidos pela instituição que a hospeda. Nesse ambiente hostil e medieval, de rostos contorcidos e risos que incomodam, Camille paira como uma ilha de serenidade. São instantes nos quais reconhecemos a maestria da encenação de Dumont, que sabe como poucos filmar os contornos, o que está em volta, ao lado, tudo aquilo que percorre a superfície, a pele dos seus personagens, para suscitar uma dramaturgia opaca, mas que convida a uma enigmática e efêmera afecção.

Camille Claudel, 1915 também flerta com um sentido estético e moral do catolicismo. Esse tema é uma constante na obra de Dumont. Ele está presente de forma mais evidente em filmes como Flandres, Hadwejick e Hors Satan, nos quais a ascese religiosa ou uma certa conduta mística adquire uma dimensão de sublimação que, paradoxalmente, culmina numa expiação moral. É como um sacrifício que, em vez de uma beatifação, desemboca numa explosão suicida das condutas hipócritas. Esse gesto de sublimar moralmente ganha uma dimensão estética cara à tragédia: uma catarse típica de terra arrasada, um impasse. Em Camille Claudel, 1915, a força dessa expiação concentra-se na conduta de Paul. Sua relação com sua irmã, eivada pela culpa e pelo julgamento religioso, ganha uma tradução estética e moral, que, de forma um pouco maniqueísta, é contraposta à firmeza ascética do poeta. O importante é perceber como, nesse filme, esse tema caro à obra de Dumont obtém um resultado dramático aquém frente ao que ele alcançou nos demais filmes.

Numa das cenas mais interessantes do filme, Camille encontra com o médico do hospício, uma espécie de sessão psicanalítica na qual, ao expressar com segurança o absurdo da sua situação, ela pede desculpas por ser franca demais. Camille Claudel, 1915 é sobre as fraquezas dessa sinceridade. O que ela afirma faz sentido, é cheio de coerência internas. No entanto, com elegância, Dumont apenas mostra, no contracampo, o rosto do médico já bem velinho. Ele está boquiaberto, um tanto perplexo, um tanto cansado. De maneira protocolar, ele diz que Camille repete o mesmo discurso há vinte anos. O que ela declara pode, inclusive, ser verdade, mas não convence. Com elegância, Dumont situa sua narrativa por meio do contraste dos rostos – e é aqui, nesse gesto, que encontramos a singularidade do seu novo filme. As faces filmadas pelo cineasta francês não são máscaras, mas rochas talhadas pela luz. Elas não expressam, nem representam, mas impõem uma presença física para a câmera. Em Camille Claudel, 1915, Dumont talvez construa sua mise en scène por meio de primeiros planos bem calculados, precisos; como se o rosto de Camille ganhasse uma presença digna de uma escultura para os olhos do espectador.

É curioso, assim, constatar que o filme não mostra nenhuma escultura de Camille Claudel. No entanto, a escultura, como arte, é arquitetada de forma sutil, entre as rochas e as pedras. Os planos gerais, por exemplo, realçam ora as rochas de uma montanha, num passeio de Camille, ora as pedras imponentes de uma igreja, logo após o rosto de Paul Claudel ser apresentado. Como figuras, os personagens de Dumont são envolvidos por esses tecidos pétreos, por esse ambiente. Essa construção culmina no choque dos rostos dos irmãos, onde encontramos o melhor da dramaturgia e da intenção do filme. Em face a esses rostos, percebe-se a diferença dos percursos, das trajetórias, dos posicionamentos sociais.

Essa depuração e mesmo esse formalismo de Dumont atravessam a narrativa de uma maneira quase enigmática, e consolidam-se como a melhor impressão que fica após uma sessão de Camille Claudel, 1915. Aos poucos, Dumont dissolve os gestos brutos de martelar a pedra para moldar suas figuras na luz, nos contornos, nos gestos mínimos, imprecisos, que instauram uma presença. Ele não quer ser um pintor. Ele não quer traçar um arco mimético da verdadeira Camille no ano de 1915, mas colocar sua realidade material face a face, corpo a corpo, entre os atores, a câmera e os olhos físicos de quem vê a cena. Ao final do filme, resignada, Camille despede-se do seu irmão e diz que quer apenas pegar um pouco do sol. E é ali, sob a luz, que vemos as sombras dos seus tormentos. Todo o filme parece caminhar para esse instante. É nesse olhar, nessa discreta insistência de Dumont – de narrar pela luz – que passa-se além de todos os demais deslizes discursivos que podemos encontrar no seu último filme.

Share Button