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Era uma vez

O que é “um filme de época?” Estritamente falando, a resposta não poderia ser mais simples: um filme que se passa num momento “real” do passado. Mas muito mais interessante pode ser perguntar: o que pode ser um filme de época? Se é considerada uma verdade universal a afirmação de que um filme sempre nos fala mais sobre o momento em que ele é realizado do que sobre o momento (seja o passado ou o futuro) que ele retrata na sua narrativa, o que nos interessa investigar brevemente aqui são maneiras de levar um pouco adiante essa ideia, e nos perguntarmos por que um cineasta se interessa em colocar o seu foco criativo num momento anterior da sua história (ou da história do seu país). Nesses últimos dias em Cannes, respostas bastante distintas puderam ser vistas nas obras de três cineastas franceses, de gerações bem diferentes.

O veterano André Techiné, por exemplo, que recebeu uma homenagem bastante tocante em torno do todo da sua produção ao apresentar esse novo filme, mostrou fora de competição Nos Années Folles. O filme se passa entre 1914 e 1928, como informam os créditos iniciais, e se baseia numa história real (algo também informado). Embora esse não seja o primeiro filme em que Techiné dramatiza outra época, ele é bastante reconhecido pela maneira formalmente viva e enérgica de encenar os dramas e relacionamentos humanos em filmes extremamente contemporâneos (no Brasil seu filme mais conhecido segue sendo As Rosas Selvagens, mas, assim como esta obra, Rendez Vous ou Distante também exemplificam isso). Assim, não é surpresa que ao realizar este filme, que se passa em Paris e alguns outros locais da França durante a 1ª Guerra Mundial e nos subsequentes “anos loucos” que se seguiram a ela, busque tanto na temática quanto na dramaturgia e na forma uma maneira de fazer sentir esse tempo como algo próximo, familiar. Este desejo, aliás, já fica claro de uma maneira bem direta na escolha do título que usa a tradicional referência histórica, mas a personaliza para os personagens principais: não se busca exatamente realizar uma crônica generalista dos anos loucos da cidade nem do país, mas dos “nossos” (do casal protagonista, como logo descobrimos) anos loucos.

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Nos années folles (2017), André Techiné

Para se exemplificar isso na linguagem do filme seria fácil citar a escolha do uso quase constante da câmera na mão ou dos cortes abruptos em meio a ações dentro das cenas ou de forma elíptica entre elas. São escolhas conscientes, sim, para evitar que o filme caia na armadilha da reconstituição de época engessar a progressão da narrativa, mantendo esse sentimento de que o respiro dos personagens e, acima de tudo, a maneira incompleta pela qual conseguem perceber o todo da situação em que estão envolvidos. No entanto, é igualmente importante enxergar a simples maneira como a escolha da história que dá origem ao filme claramente permite e parece natural para uma discussão contemporânea sobre a questão da identidade de gênero e seus efeitos absolutamente individuais ou privados. É assim que a aparente narrativa de deserção do exército vira, na verdade, uma discussão sobre identidade e a capacidade de se conformar ou não com determinados papeis sociais.

É verdade que o filme toma algumas decisões questionáveis sobre sua estrutura, como por exemplo a ideia de usar uma encenação da história dos protagonistas na forma de musical de cabaré, num jogo de auto-ficção que simplesmente não decola como linha narrativa. Mas, ainda assim, o sentimento de urgência que Techiné consegue encontrar nessa história, com sua atenção extrema ao jogo dos atores e à encenação, garantem que o sentimento de época seja partilhado entre os personagens e o espectador. Talvez, assim como o protagonista diz num certo momento que “um homem deve viver no seu tempo”, quando um filme consegue mesclar na tela esse sentimento de estarem colados os homens e o tempo em que vivem, a obra sempre se sente contemporânea.

Não é diferente o objetivo do bem mais jovem realizador Thierry de Peretti, que apresentou na Semana da Crítica o seu segundo longa, Une Vie Violente. Peretti é um raro cineasta originário da Córsega, ilha mediterrânea de história particularmente violenta nos últimos 25 anos do século passado, momento da explosão dos maiores conflitos entre grupos nacionalistas locais. Se é verdade que o filme dialoga diretamente com toda uma tradição do “filme de gângster” familiar, na linhagem que descende desde o Poderoso Chefão (inclusive sem ficar devendo em termos de ambição histórica e política), algo no seu ritmo e linguagem visual o aproximam mais do Ferrara de O Funeral ou Gangues do Gueto, tendo como maior qualidade essa capacidade de se aproximar do muito pequeno, das vivências profundamente pessoais de indivíduos envolvidos plenamente com o seu tempo.

Une Vie Violente (2017), Thierry de Peretti
Une Vie Violente (2017), Thierry de Peretti

Diferente do que acontece no filme de Techiné, porém, fica claro que o principal motivo para a realização do filme de Peretti é a busca de criar aquilo que seria praticamente quase um registro histórico – se não exatamente dos fatos exatos (porque o filme sabe e entende que é uma ficção), mas do que significou ser jovem naquele lugar entre 1995-2005. É um movimento que ele claramente faz com os olhos para o presente (como herança), mas que é bem óbvio na tela o quanto significa para o diretor assumir esse papel e essa oportunidade. O peso dessa missão leva a que o filme assuma uma série de compromissos (por exemplo, com uma exposição bastante didática dos movimentos que constroem a passada do protagonista de jovem alienado a colaborador, de ativista a marginal) que terminam resultando que ele chegue até o espectador com o jeito de uma aula mais do que de uma experiência estética. É um dos riscos da reconstituição de época que, mesmo quando feito pelos motivos mais nobres e pessoais, termina justamente tendo o efeito oposto ao desejado, porque as lições se guardam sempre de forma menos pregnante do que as experiências emotivas.

A comprovação quase exata desse corolário esteve em exibição no festival com o novo filme de Bruno Dumont, Jeannette – A Infância de Joana d’Arc. Se a essa altura de sua carreira ninguém esperaria de Dumont uma preocupação com exatidão histórica e muito menos um desejo didático, ainda assim esse novo filme leva a lugares não antes visitados, a mistura de gesto iconoclasta e profunda fé no poder do cinema em propor experiências únicas (e usamos o termo com muita propriedade, porque não raro – e aqui nesse filme, certamente – seu cinema é mesmo uma questão de fé). Não é só que Dumont vai propor um olhar inédito para um momento até hoje pouco tratado da vida desse mito histórico francês – é que ele escolhe não somente a forma do musical para fazer isso, mas de um musical ao mesmo anacrônico na composição da música com o espaço-tempo da encenação (a música do francês Igorrr mistura a eletrônica com o heavy metal) como ainda propondo coreografias absoluta e propositalmente “amadoras”, realizadas em geral por crianças ou jovens da região do Norte da França, onde costuma filmar (e que, como para demonstrar sua falta de preocupação com a questão da “veracidade”, não é a região em que Joana D’Arc viveu).

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Jeannette – A Infância de Joana d’Arc (2017), Bruno Dumont

Desde seu primeiríssimo plano, Jeannette deixa claro para o espectador que seu jogo radical pede a adesão ou a recusa quase imediatas, e que não vai haver negociação possível. Ao optar por encenar toda sua narrativa num espaço bastante limitado de dunas e riachos, praticamente apenas com crianças em cena, Dumont aumenta o potencial forte que o material tem para a abstração. O fascínio que emana o tempo todo da tela se deve ao fato de que a combinação entre sarcasmo e ambição ao sublime, que é uma marca do cinema de Dumont que aqui atinge um paroxismo, consegue nos deslocar de tal maneira de nossa zona de segurança como espectadores que é impossível não se emocionar frente aos momentos mais cuidadosamente construídos. Ao final, fica acima de tudo a sensação única de ver Joana D’Arc fazendo literalmente “headbangs” ao som dos riffs de guitarra de heavy metal como uma representação inesperada e absurda, porém absolutamente possível para a força do transe religioso e social pelo qual ela passa. Gestos como o de Dumont lembram que no cinema (como na arte em geral) reconstituir uma época é uma questão antes de tudo de ter claro que está a seu favor não apenas a pesquisa histórica sobre aquele momento, mas sim toda a história da arte (e da humanidade) de lá até aqui.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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