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Repetir ou não repetir: essa não é a questão

Principalmente na obra mais tardia de ambos, há algo de muito curioso que aproxima as trajetórias de Abbas Kiarostami e Eduardo Coutinho. Não se trata apenas do fato de que repetição não parecia ser uma possibilidade para eles: chama a atenção a maneira como os filmes iam reagindo uns aos outros, levando a desenvolvimentos e questionamentos internos onde cada resposta claramente levava a mais uma pergunta. Até por isso, nos cria uma perspectiva fascinante poder assistir 24 Frames, com a triste condição de finalidade que ele passou a carregar a partir da morte de Kiarostami (e, também assim como no caso de Coutinho, fica o mesmo sentimento de que suas trajetórias foram interrompidas em pleno desenvolvimento, independente da idade dos dois quando de sua morte), quase simultaneamente à chance de acompanhar um cineasta no ápice dos seus movimentos criativos. Isso foi possível quando foram exibidos os dois novos filmes de um dos mais prolíficos e instigantes cineastas em ação hoje, Hong Sangsoo (que apenas três meses atrás estava em competição em Berlim com um grande filme). Afinal, no cinema de Hong, não apenas na forma dos seus múltiplos filmes, mas principalmente para os temas que deseja explorar, a ideia de repetição é central – só que repetição significando sempre uma nova perspectiva, seja a partir das variações mínimas seja a partir da possibilidade de olhar de novo (e portanto de forma distinta, por definição, já que não se olha mais pela primeira vez) para algo ou para alguém.

Se 24 Frames ficará como o testamento cinematográfico de Abbas Kiarostami, a grande herança que ele deixa é a dessa constante inquietude que o levava a tentar investigar, filme a filme, até onde e por quais caminhos inesperados a linguagem cinematográfica pode ser testada, colocada à prova e enxergada por prismas ainda não explorados. Nesse sentido, ao mesmo tempo que este novo filme dialoga muito diretamente com Five (não sendo a menor coincidência o fato dos títulos explicitarem de que vai se compor, na prática, o filme), o seu aparato básico de realização não poderia ser mais diferente: enquanto lá o gesto principal era abrir a câmera digital de cinema para capturar e estruturar momentos da existência natural no tempo, aqui se trata de recriar mesmo a ideia de “natural”, usando muita animação e efeitos especiais, para dar movimento a imagens originalmente paradas (uma pintura e várias fotos). Se o gesto em si parece em tudo diferente do que viemos a esperar do cinema de Kiarostami, precisamos lembrar como essa relação tão direta com a pintura e a fotografia sempre esteve na base do seu interesse pelo cinema. E, afinal, “trazer as imagens paradas à vida”, não custa lembrar, era simplesmente o interesse original da criação mesma do cinema.

Parece extremamente condizente com o tipo de pesquisa que Kiarostami vinha desenvolvendo que ele tenha como seu último filme uma obra que vai nos remeter simplesmente ao dilema original da criação do aparato cinematográfico. Só que a esse dilema, que em princípio seria essencialmente técnico, o filme vai somar uma série de outros que foram sendo descobertos e pensados ao longo da história como centrais: o que significa enquadrar: escolher o que está no quadro, ou o que está fora dele? De que forma é possível criar o drama? O que é e o que pode ser um plano cinematográfico – e o que o diferencia da pintura e da fotografia? O que o som pode somar nesse jogo? De que forma a chegada da cor altera a lógica de apreensão das imagens em movimento? Essas perguntas, e muitas outras, passam pela cabeça do espectador que assiste 24 Frames – ao mesmo tempo que o filme tem uma dimensão muito pura (cinematográfica?) da fruição mais sensorial.

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24 Frames (2017), Abbas Kiarostami

Uma dimensão essencial em 24 Frames é a do som, e nisso ele não tem nada a ver formalmente com nada que era possível no momento do “primeiro cinema”. De fato, as operações de criação sonora são decisivas nesse processo de trazer imagens à vida, tanto no sentido da criação mesmo de uma dramaturgia dentro de várias das cenas distintas, como na sua espacialização – o uso das distintas dimensões que o som estéreo permite hoje é uma das surpresas mais fortes do filme em relação à obra anterior de Kiarostami. Nesse sentido, aliás, é importante trazer uma questão para mesa, pois não está claro, pelo menos até esse momento (não houve nenhuma entrevista mais profunda sobre isso realizada), o quão perto da finalização do projeto Kiarostami estava quando de seu falecimento. Portanto, quando pensamos que alguns dos procedimentos de animação ou de som pareçam um pouco excessivos e não exatamente adequados ao que se passa na tela, é difícil ter certeza se são obra final criativa do realizador, ou se foram de fato solucionados na sua forma final pelas pessoas que terminaram tecnicamente o filme (isso era trabalhado de forma bem mais aparente em Últimas Conversas, o filme póstumo de Eduardo Coutinho – e talvez até nisso haja semelhanças entre suas carreiras).

Se para Kiarostami, os dilemas da linguagem do cinema antecedem até mesmo a necessidade da presença humana em cena (o ser humano, como objeto filmado, participa de poucos dos 24 frames do filme – embora seja decisivo no maravilhoso plano final), no cinema de Hong Sangsoo ele está sempre no centro da atenção. Nem por isso, porém, o cinema de Hong se assemelha menos com uma pesquisa constante, com uma interrogação sobre alguns mistérios bastante basilares de como se constitui o drama e a ficção cinematográfica. Aparências, construções de si mesmo, conflitos de olhar e captação do mundo – aí estão as bases dos muitos jogos humanos construídos por Hong, que nesse ano em Cannes tiveram a curiosa oportunidade de serem vistos em duas obras diferentes, criando externamente em cada uma delas mais um caso de duplicação e diálogo dentro da carreira do cineasta.

O seu filme que compete em Cannes esse ano, The Day After, encarna uma vertente francamente trágica que está muitas vezes presente na forma de Hong estruturar suas narrativas. Nesse sentido, o trabalho quase abstrato que ele faz com as idas e vindas no tempo, especialmente na primeira meia hora do filme, servem acima de tudo para reforçar a sensação de um redemoinho que, obrigatoriamente, termina com o personagem principal sugado para o seu ralo. Embora haja três figuras femininas em torno do protagonista, é interessante notar como tanto a mulher como a amante não são as que ocupam a maior parte do tempo na tela – embora sejam a origem de todo o drama. A terceira personagem, a nova funcionária do escritório do protagonista, passa a ocupar aquele espaço bastante “hongiano” de projeção (o que leva, inclusive, a uma cena de agressão física bem forte) e de espelho, simultaneamente. E que ela ocupe o centro nervoso da narrativa, estando a princípio fora do entrecho dramático principal da obra, é o tipo de decisão que caracteriza muito bem o que há de original no olhar do diretor sul-coreano.

The Day After (2017), Hong Sangsoo
The Day After (2017), Hong Sangsoo

Se curiosamente dois textos recentes aqui mesmo na Cinética evocaram o cinema de Hong ao analisar as obras mais recentes de Philippe Garrel ( sobre O Ciúme e À Sombra de Duas Mulheres), é interessante notar como esses caminhos acabam sempre sendo de mão dupla: aqui, ao sentimento trágico reinante se une a luz trabalhada na fotografia em preto-e-branco e o uso da música sinfônica que nos parecem típicas de uma série de filmes de Garrel (em especial os mais recentes). E no momento em que falávamos nessa mesma cobertura que o cinema de Garrel se aproxima mais e mais da palavra falada como componente elementar, esse filme parece levar o cinema falado de Hong mais perto da exploração estética dos elementos formais.

Porque, por mais que alguns de seus filmes contem com determinados jogos de estrutura narrativa/montagem e algumas ferramentas de linguagem visual mais facilmente reconhecidas como típicas do seu cinema (como o uso bastante particular do zoom), Hong Sangsoo tem sido desde sempre um cineasta da palavra. Isso se explicita de maneira especialmente forte nos filmes como Claire´s Camera (sua outra obra exibida nesse Festival de Cannes) cujo uso de diferentes línguas se torna uma questão – o que permite que a palavra num sentido quase físico passe a estar no centro das atenções, ainda que Claire´s Camera não seja exatamente um filme sobre tradução nem choque cultural (como era mais o caso no filme anterior da colaboração entre Hong e Isabelle Huppert, A Visitante Francesa).

O que está em jogo aqui é um sentimento do mundo e da narrativa cinematográfica pela perspectiva de um quebra-cabeças tipicamente hongiano – um que reflete sobre como as pessoas se conhecem e constroem imagens umas sobre as outras, sobre como uma conversa tem sempre dois lados que raramente escutam e dizem a mesma coisa, sobre como o acaso e as consequências dos atos impensados são tão determinantes na vida quanto qualquer plano maior que as pessoas possam fazer. Tudo isso colocado em cena por uma sequência de recombinações de diálogos entre diferentes personagens – até o final que propõe uma das inconfundíveis “reencenações” típicas do cinema de Hong, aqui em torno de um jogo entre passado e presente criado através justamente da presença das palavras, mesmo na ausência das pessoas que as proferem.

Claire's Camera (2017), HongS Sangsoo
Claire’s Camera (2017), Hong Sangsoo

Enquanto The Day After nos remete a uma estetização bastante significativa da sua forma, Claire´s Camera é um filme totalmente livre, que nasce de um impulso de Hong ao estar participando do Festival de Cannes no ano passado, e resolver propor a Isabelle Huppert a criação imediata dessa narrativa. De fato, Claire´s Camera chama a atenção por sua forma francamente amadora, no melhor e mais potente sentido do termo. Há realmente uma beleza particular em ver projetado no “maior festival de cinema do mundo” um filme onde, por exemplo, a mixagem não consegue esconder as falhas da captação do som – que se tornam assim parte essencial da forma do filme, e uma afirmação real sobre o que pode ou não ser o cinema. Nesse sentido, há uma outra aproximação possível um tanto inesperada entre o cinema de Hong Sangsoo, e o de Abbas Kiarostami: o fato de um filme tão sui generis, e francamente experimental, como 24 Frames ter tido sua primeira exibição pública na sala enorme e espetacular do Grand Theatre Lumiére de Cannes tem um que de impropriedade bastante saborosa, especialmente no contexto atual da seleção do Festival, bem pouco afeito a riscos.

O motivo para essa reticência da parte do Festival para propostas de alguma forma limítrofe não é só reacionarismo da parte dele: de fato, provavelmente sem os nomes de Kiarostami ou Hong por trás de gestos como esses, os filmes seriam aproximados pelo resto do “baixo mundo cannoise” (jornalistas, mercado, etc) por conta de suas idiossincrasias de criação/linguagem e não por suas qualidades – o não faria bem nenhum a eles. A verdade é que hoje o lugar para gestos de risco como são esses filmes, quando realizados por jovens ou simplesmente não consagrados, está em outros espaços de exibição – e aqui em Cannes os nomes dos diretores terminam sendo a porta de entrada que ainda permite tensionar os limites do que é considerado “adequado”.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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