A Visitante Francesa (Da-reun Na-ra-e-seo), de Hong Sang-soo (Coréia do Sul, 2012)

abril 8, 2013 em Em Cartaz, Fábio Andrade

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Terra estrangeira
por Fábio Andrade

É oportuno que A Visitante Francesa seja lançado no Brasil em sequência a Hahaha (2010), embora, entre os dois filmes, Hong Sang-soo tenha lançado outros dois, que permanecem inéditos por aqui – Oki’s Movie (2010) e The Day He Arrives (2011). À época do lançamento do Hahaha, escrevi: “Se na filmografia pregressa do diretor esse gesto de colocar um espelho frente a outro espelho era uma abstração que o espectador só podia completar intelectualmente, a posteriori e à distância, em Hahaha ele é o próprio tema do filme”. Em A Visitante Francesa, a auto-consciência desse jogo é levada um passo adiante: trata-se de uma coleção de histórias imaginadas por uma garota (Jung Yoo-mi) que decide escrever o roteiro de um filme para fugir do tédio. Os possíveis roteiros serão “filmados pelo filme”, e partem, todos, de um mesmo princípio: a presença de uma mulher estrangeira (Isabelle Huppert) em um balneário na Coréia do Sul. É difícil demandar clareza maior do que esta: A Visitante Francesa existe todo em função de Isabelle Huppert, e de o que sua presença pode significar em um filme – mais um, apenas mais um – de Hong Sang-soo. O estrangeirismo sentido no título internacional do filme – In Another Country – vale tanto para Huppert quanto para o diretor.

A rara presença de rostos ocidentais no cinema de Hong Sang-soo sempre foi captada com certo desconforto por sua câmera. Há dois índices bastante claros desse estranhamento: a forma como Paris é reduzida a uma micro-comunidade coreana em Noite e Dia (2008); e a sequência do sonho em Conto de Cinema (2005), em que a meteórica presença de uma mulher de traços nitidamente caucasianos é suficiente para abrir praticamente um pequeno outro filme ali dentro, motivando uma mudança extrema no tom de toda a encenação. A Visitante Francesa não parte da negação, como Noite e Dia, nem do choque paralisante motivado pela “invasão” deste universo, como na sequência mencionada de Conto de Cinema. Ao contrário: Isabelle Huppert é a razão de existência do filme, e tudo aqui orbitará este corpo estranho. Se é difícil imaginar um encontro dessa dimensão sem colisões, o diretor toma o caminho mais inteligente, e se dedica a filmar exatamente os choques, as dificuldades vivenciadas por ambas as partes naquele insólito encontro, assumido como tema justamente pelo deslocamento do estrangeiro. O caminho mais inteligente, porém, não é necessariamente um caminho sem vítimas.

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Conto de Cinema (2005), de Hong Sang-soo

Hong Sang-soo não é um sujeito de passos largos. Seu cinema se equilibra em um mínimo tripé, em que a pesquisa formal, a afirmação e reconfiguração de um universo e o prazer da escritura podem ser facilmente abaladas, movimentadas, com pequeníssimos deslocamentos. Na primeira das três histórias imaginadas para A Visitante Francesa, vemos um diálogo na praia entre Anne (nome genérico das três mulheres interpretadas por Huppert) e Jong-soo (Kwon Hae-hyo), filmado em plano médio, como praticamente todos os diálogos visto neste e em outros filmes de Hong Sang-soo; até que Anne percebe um homem que está nadando, e essa percepção motiva um movimento panorâmico da câmera, que sai do casal de atores e busca o mar. É uma panorâmica simples, que vai apenas mostrar o que Anne viu; mas o minimalismo de Hong Sang-soo é tão intenso que a simples movimentação da câmera para fora do eixo do diálogo chama enorme atenção, causando grande efeito. É um exemplo concreto para um sentimento metafórico: cada pequeno novo elemento adicionado a cada novo filme de Hong Sang-soo parece ter, sobre a obra, efeito semelhante que esta panorâmica tem no filme. No fim das contas, o deslocamento é mínimo, mas o sentimos como um novo paradigma, como uma mudança de postura que demanda enorme coragem. Mover a câmera, afinal, é um dos gestos de maior ousadia na história do cinema, e nos filmes de Hong Sang-soo é possível sentir isso no estômago, como a revelação instável da primeira vez.

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Mas, justamente por se tratar de um diretor com gosto particular por pegadas que se sobrepõem, é natural que a presença de Isabelle Huppert – a primeira protagonista não-coreana em toda a carreira do diretor; um verdadeiro passo de gigante – venha para servir apenas como um novo dispositivo de uma operação já em curso. Voltamos, mais uma vez, a Hahaha: “Sempre que um terceiro personagem está em cena (…), ele serve como testemunha/propulsor do constrangimento dos outros dois naquele momento de tentativa (ou manifestação) de intimidade”. Em A Visitante Francesa, Isabelle Huppert é o sintoma máximo desse constrangimento, seja pela influência que ela tem no comportamento dos personagens (certos homens coreanos ficam loucos com a presença de uma mulher estrangeira, nos diz o filme algumas vezes), seja pelas fugas do diálogo, saindo do inglês como mínimo denominador comum, e buscando a língua nativa quando alguns personagens em cena querem compartilhar algo sem que a protagonista entenda. A sensação de corpo estranho tem um fator metalinguístico: o cinema de Hong Sang-soo é um mundo fechado, e Isabelle Huppert visivelmente não faz exatamente parte desse grupo. Assim como The Day He Arrives era todo construído sobre a percepção da ação do fora de quadro na cena – algo especialmente acentuado nas mensagens por celular que chegam para o protagonista, lidas para nós em voz over, que fazem com que nós saibamos de algumas nuanças presentes na cena que os outros personagens ignoram –, em A Visitante Francesa, Huppert é como a manifestação em carne e osso desse mesmo jogo, da estratégia hitchcockiana de manter as relações desiguais, seja entre os personagens em cena, seja entre nós e eles.

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Aqui parece estar o centro dos problemas deste A Visitante Francesa. Pois Hahaha levava o jogo entre o espectador e o filme a um limite que conservava, ainda, certo mistério. Por mais que os narradores estivessem expostos, havia uma falha, um deslocamento entre o que eles diziam e o que era visto – ou seja: um jogo com o fora de quadro – que mantinha o espectador participativo. Em A Visitante Francesa, vemos uma garota que escreve três histórias. Os movimentos internos parecem não trazer qualquer fora de campo, em parte por as três histórias serem independentes, mas principalmente por a impressão de uma “narrativa em circuito-fechado” não ser somente uma impressão: há pouco espaço para o espectador em A Visitante Francesa. Nada mais tedioso do que observar alguém escrever.

É notável que, ao longo dos anos, o cinema de Hong Sang-soo tenha abandonado progressivamente o desejo de buscar as imagens-síntese tão latentes em seus primeiros filme, em favor de uma elaboração maior da estrutura e dos diálogos. Não se vê mais em seus filmes planos como o do papel de bala congelado em Virgem Desnudada por seus Celibatários (2000), como o do bondinho parado em pleno ar no mesmo filme, como o do aquário em prisma de O Poder da Província de Kangwon (1998) ou mesmo como o das ondas em direções opostas que encerrava Like You Know it All (2009). Em todos os casos, eram imagens que surgiam sem comentários, que revelavam, em sua iconicidade inexplicável, segredos que permaneceriam guardados sob a égide do filme – inclusive de forma literal: o papel sob a camada de gelo; os peixes dentro do aquário; o movimento que produzia as ondas. Três anos podem parecer pouco tempo, mas nos cinco filmes que Hong Sang-soo fez no período é sensível o desaparecimento progressivo desse tipo de construção em favor de um malabarismo mais ostensivo da narrativa, de um jogo que volta a apontar para dentro – ainda que inteligentemente minado pelas “falhas” em Hahaha e The Day He Arrives.

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Virgem Desnudada por seus Celibatários (2000), de Hong Sang-soo

Se Oki’s Movie já fazia uso, não sem certo mecanicismo, da estrutura em três episódios, o filme ainda trazia uma contaminação entre as diferentes partes que não era somente intelectual, nas personagens mantidas nas três histórias, alternando destinos feitos distintos pela reintromissão seriada dos créditos iniciais. Aqui, isso também se perdeu. E se vemos o mesmo salva-vidas passando de história em história, a mesma pousada, a mesma praia, a mesma barraca, o mesmo farol, eles aparecem como elementos mecânicos, como artifícios dos roteiros escritos pela personagem de Jung Yoo-mi, e não encontram muita possibilidade de reveberação fora desse estatuto. Se o malabarismo desses elementos pode ser divertido, vê-los sendo jogados de um lado a outro não é espetáculo dos mais estimulantes. Restam o desconcerto diante de Isabelle Huppert lutando para encontrar algum tom possível de interação com aquele universo, e momentos de graça esparsos, em que o fora-de-quadro consegue se impor à rigidez da estrutura, que talvez tenham como melhor exemplo a canção “escondida” na barraca.

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Sem essa lacuna a ser infiltrada pelo espectador, perde-se uma camada fina de auto-ironia que movimentava o primarismo cada vez mais acentuado do diretor, mas que se mantinha sempre estimulante, pois indicava haver algo além, algo a ser lido na embalagem de bala presa no lago congelado. Mesmo diante de um tableu em que dois personagens conversam frente a frente, como conversam nas telenovelas, era possível esconder o não-visto… mesmo em um diálogo absolutamente auto-evidente, Hong Sang-soo sempre encontrou lugares para esconder o não-dito. Mas a estrutura que parte da evidência de que “tudo é escrito”, em A Visitante Francesa, faz com que o primarismo de Hong Sang-soo pareça de fato primário, pois esvaziado de qualquer mistério. No encontro flagrante com o desconhecido, o diferente, o estrangeiro, o que não lhe é próprio, A Visitante Estrangeira parece, enfim, dar certa razão à crítica mais comum ao cinema de Hong Sang-soo: a sensação de que o diretor faz novamente o mesmo filme, e que há, nesse gesto, um automatismo, uma acomodação um tanto descomprometida, talvez demasiado leve em sua eterna sina de work in progress. Com isso, vem, pela primeira vez, a sensação de que estar diante de “mais um filme de Hong Sang-soo”, apenas mais um, talvez não seja mais suficiente.

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