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Passeios no inferno

A competição de Cannes teve um aumento considerável da temperatura dos debates estéticos relevantes em questão de doze horas com a exibição dos novos filmes de Sergei Loznitsa e dos irmãos Safdie – dois filmes tão diferentes quanto se pode ver, vindos de cineastas ainda mais distintos, mas que têm a curiosa característica de acompanhar em linha reta a descida de seus protagonistas ao inferno num tempo bastante curto. Não deixou de ser uma coincidência fascinante que essas exibições tenham acontecido no mesmo dia da primeira exibição em sala de cinema dos dois episódios da nova temporada de Twin Peaks, que em si mesmo propõe toda uma outra aproximação com a ideia de “descida ao inferno” (não vamos tratar aqui da série porque, ainda que a experiência de ver na tela grande – e principalmente com um potente som altíssimo em uma sala 7.1 – seja sem dúvida um evento em si mesmo, a exibição das primeiras duas partes tem uma sensação de incompletude frente ao que se propõe na obra que coloca essa apreensão num lugar muito diferente da análise dos longas aqui exibidos).

No caso de Loznitsa, a ideia de descida ao inferno não é exatamente uma novidade, já que, de uma maneira diferente narrativamente, essa descrição poderia ser também a dos seus dois longas de ficção anteriores, Minha Felicidade e Na Neblina – ambos também exibidos na competição de Cannes. No entanto, sem dúvida esse seu novo filme, A Gentle Creature (Krotkaya), dá um passo além na forma com que propõe esse mergulho no inferno que seria a vida na Rússia, segundo o realizador. A principal maneira como ele se distingue é que os dois filmes anteriores, ainda que essencialmente realistas na forma, tinham algo de profundamente mítico e atemporal no seu conteúdo. Sua narrativa era antes de tudo uma reflexão de fundo histórico e quase existencial sobre a (de)formação da Rússia. Já esse novo filme, inspirado num conto de Dostoievski que segue tendo um peso de “conto de fadas depravado”, é muito mais ancorado na realidade atual, ao localizar toda a narrativa de descida ao inferno no entorno da experiência de ter algum ente querido numa prisão russa. É um filme muito mais clara e diretamente dirigido à Rússia de hoje, à Rússia de Putin (de novo, sem com isso perder de vista o processo histórico que levaria até ela), e nisso ele é um filme certamente mais urgente.

A Gentle Creature (2017), Sergei Losnitza
A Gentle Creature (2017), Sergei Loznitsa

A segunda diferença fundamental, infelizmente, funciona bem menos a favor da construção do filme. Ela se deve ao fato de aqui Loznitsa propor, na meia hora final do filme, uma mudança total no tom e no registro de sua narrativa, trocando o realismo quase absurdamente naturalista com que costuma trabalhar (e que certamente é muito informado pela sua carreira simultânea como documentarista) por uma incursão no frontalmente onírico e alegórico – terminando essa parte com uma cena de estupro que mescla os registros do realismo e do sonho de uma maneira bastante problemática. A grande questão aí não é a mudança de registro, pois um cineasta sair de sua zona de conforto é um movimento sempre interessante, a princípio. O problema real é que não só Loznitsa claramente não tem nem um décimo do talento como encenador alegórico se comparado com a criação dos universos realistas nos outros filmes (e em toda a bem impressionante primeira parte desse filme aqui), como além de tudo os motivos internos na obra para esse mudança de registro são ao mesmo tempo banais (registro onírico quando a personagem dorme) e bastante reiterativos (no longuíssimo sonho, voltam quase todos os personagens com quem a protagonista já cruzou, apenas para repetir tudo aquilo que já haviam dito/feito antes).

Muito mais profícua, nesse sentido, é a mudança de rumo e de registro que nos propõem os irmãos Safdie (Josh e Benny) no seu novo filme, Good Time. Realizadores que começaram sua carreira em longa também tendo seus filmes exibidos em Cannes, na Quinzena dos Realizadores, tinham como marca naquele momento uma radical aposta nas ficções urdidas com tintas muito familiares, filmando de maneira quase amadora (no bom sentido do termo) os seus entornos diretos. Pois esse filme já deixa claro desde o primeiro plano (uma tomada de Nova York com câmera no helicóptero) que o jogo aqui será outro: Good Time busca um diálogo com certa tradição do cinema americano dos anos 1970/80, onde o filme de gênero e o realismo pareciam não ser opostos, muito pelo contrário. Sua narrativa parece de fato uma mistura entre Um Dia de Cão e Depois de Horas – e por mais improvável que essa combinação possa soar para quem conhece os filmes, boa parte do fascínio que esse novo filme causa vem justamente da capacidade dos irmãos Safdie equilibrarem os registros entre a urgência, o desespero e o humor. Essa referência específica está presente de forma marcante na tela, entre a filmagem em película e o uso da trilha sonora – que lembra bastante o trabalho feito em Drive, de Nicolas Winding Refn, mas aqui com uma aderência bem mais firme ao trabalho da construção da ficção.

Good Time (2017), Josh & Benny Safdie
Good Time (2017), Josh & Benny Safdie

Se a forte atuação de Robert Pattinson não chega a ser surpresa para aqueles que realmente andavam prestando atenção à sua carreira recente, sem maiores preconceitos (aliás, é bem impressionante pensar como o casal protagonista de Crepúsculo segue construindo trajetórias tão potentes), a verdadeira revelação aqui é a presença de um dos próprios diretores, Benny, “interpretando a si mesmo”, mas que aqui surge com um personagem ficcional dos mais difíceis – e absolutamente essencial para o desenvolvimento da trama desde a primeiríssima cena, cuja dinâmica é construída a partir de closes fechadíssimos que em nada facilitam sua missão. Nesse cinema americano narrativo de gênero, todo o domínio de linguagem pode ser jogado fora se o filme não consegue construir empatia com seus personagens e emprestar a eles a verdade mais típica da ficção (que não necessariamente tem a ver com verossimilhança ou naturalismo). O entendimento e a capacidade de efetuar essa construção que os irmãos Safdie demonstram nesse filme é realmente uma surpresa que não só faz da sua experiência um verdadeiro prazer, mas ainda dá muita curiosidade para acompanhar os próximos passos, repentinamente amplificados, que se podem esperar do seu cinema. É uma sensação em tudo contrária à que fica do filme de Loznitsa, que parece muito mais comprovar suas limitações como cineasta de ficção (mesmo com relação ao que domina), sem surpresas em relação ao já visto.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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