Mapas para as Estrelas (Maps to the Stars), de David Cronenberg (Canadá/EUA, 2014)

outubro 4, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

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* Visto no New York Film Festival

O preço do desejo
por Fábio Andrade

Ao apresentar Maps to the Stars, de David Cronenberg, em uma das sessões no New York Film Festival, o roteirista Bruce Wagner fez questão de observar que, diferente do que várias críticas afirmaram, o filme não se trata de uma sátira. “Vejo-o mais como uma espécie de burlesco metafísico em um cemitério. E lembrem-se que o caminho para o inferno é pavimentado com risadas”, completou.

É uma diferença importante, pois a sátira tem como princípio e objetivo a exacerbação do caráter ridículo de certa situação ou contexto, com fins de crítica social. Pela satirização, ganha-se, ao mesmo tempo, carta branca para a verdade (“Se você for falar a verdade, seja engraçado ou as pessoas vão te matar”, dizia Billy Wilder, diretor de uma nada distante Crepúsculo dos Deuses), e o conforto do descolamento do objeto satirizado… do descolamento da realidade. Maps to the Stars, porém, é um tanto mais cruel em seu misto de análise científica e relato fidedigno de um mundo em exuberante desarranjo, pois a encenação não vem contaminada pela impressão de exagero. Quando a câmera de David Cronenberg é apontada para uma cena capaz de quebrar, de uma só vez, pelo menos meia dúzia de leis quase universais (a cena final, por exemplo, é uma mistura de incesto, latrocínio, fuga de cárcere, corrupção de menores e romance hollywoodiano), a intenção não é projetar uma versão exagerada de um apocalipse porvir como alerta ao presente, mas sim o mundo tal qual, rosselinianamente. Nesta crueza que diz “eis o mundo, ele é terrível” é que está o potencial de assombro do filme: é tudo verdade.

Maps to the Stars é um ponto de inflexão bastante singular na obra de Cronenberg, que resulta em espécie de síntese que se abre, peito e vísceras, ao firmamento incerto do futuro. Nos últimos anos, os filmes do diretor rumavam progressivamente de uma originalíssima e bem sucedida estética da viscosidade (de Shivers, de 1975, a eXistenZ, de 1999, provavelmente) para um desejo de objetividade que, embora já aparente nos primeiros filmes do diretor – Stereo (1969) e Crimes of the Future (1970), tão próximos de A Mosca (1986) quanto estão de Bill Viola –, são retomados sem a necessidade de trazer ao proscênio sua fundação intelectual. Nada mais surpreendente e inevitável que um diretor que dedicou boa parte de sua obra à metamorfose do inanimado em orgânico do que, em dado momento, reverter o trajeto e buscar traduzir um olhar capaz de objetivar o sujeito. Um Método Perigoso (2011) e Cosmopolis (2012) chegavam muitas vezes às franjas de Eric Rohmeraparentemente um dos diretores mais distantes possíveis do universo de Cronenberg, mas inusitadamente próximo de seus trabalhos mais recentes – na maneira absolutamente frontal e livre de adornos que se dedicavam a registrar expressivamente o mundo pra cena. É como se Cronenberg limpasse cada vez mais tanto a enunciação quanto a instância enunciadora, e o potencial de desconforto reside justamente nessa aparente neutralidade.

Nesse sentido, Maps to the Stars é o passo seguinte nessa busca de transparência, pois a objetividade clínica da câmera e da mise en scène parece encontrar aqui o material que melhor a completa: o alucinado submundo de celebridades de Hollywood. Não é preciso criar o sobrenatural, pois o mundo já se encarregou de pesar suas próprias tintas – algo parecido acontecia com os desejos reprimidos da psicanálise de Um Método Periogoso, mas se há algo que os personagens de Maps to the Stars não se preocupam em fazer é reprimir qualquer sentimento (pelo contrário, a atriz interpretada por Julianne Moore parece buscar obsessivamente por um trauma que justifique sua existência, como se a cicatriz psicológico – diferente da fixa – fosse uma espécie de valor agregado neste universo). Desse encontro entre frieza e euforia, surge uma espécie de versão histérica de The Brood (1979), mantendo o mesmo esquadrinhamento do descontrole (todas aquelas escadas coloridas que expõem a geometria detalhada de cada uma das mortes do filme de 1979), mas sem jamais precisar dar o salto definitivo que separa o filme do mundo real (o horror ou a sátira): Hollywood é terrível o suficiente, e o filme que sai dessa constatação é ainda melhor.

É interessante que este novo trabalho de Cronenberg funcione, de alguma maneira, como uma ponte, se não uma síntese, entre as diferentes incursões do cinema no entorno da indústria cinematográfica. A falsa efusão de cores e flashes de The Bling Ring (2013), de Sofia Coppola, e Spring Breakers (2013), de Harmony Korine (ou mesmo de P4nico (2011), de Wes Craven) se encontra com a veia negra que corria entre os 1990 e a primeira década dos 2000 – entre Mulholland Drive (2001), Dália Negra (2006) e o episódio de David Lynch no coletivo Lumière et Compagnie (1995) – e com o burlesco dos anos 1950, seja o (irônico) de Crepúsculo dos Deuses (1950) ou o (encantatório) de Cantando na Chuva (1952). A Hollywood de Maps to the Stars é um pouco de tudo isso ao mesmo tempo, a todo o tempo, e é aí que está o potencial corrosivo do filme: todo desejo de brilho vem marcado por merda e sangue. O preço que se paga está estampado na pele do que se deseja.

Nesse sentido, é interessante que as personagens aqui sejam, ao mesmo tempo, algozes e vítimas de um espetáculo ao qual elas desejam profundamente se submeter. Sua ruína é a vontade de participar. O fatiamento do filme em múltiplas relações de pais e filhos, como bem reparou Pablo Gonçalo em sua crítica aqui na Cinética, traz os dois lados da moeda (quem clama pelo sacrifício e quem é sacrificado) para um mesmo plano, criando uma via de mão dupla entre passado e futuro, sonho e realidade, ação e reação, ao ponto em que já não se distingue mais um do outro. Tudo ajuda a compor um espetáculo ao mesmo tempo fascinante e grotesco, encontrando uma medida exata para a câmera entre o distanciamento científico e a proximidade afetiva.

David Cronenberg usa todo seu domínio de encenação para se situar num tênue limite entre a adoção e a perversão da linguagem cinematográfica, que se torna ainda mais exata e refinada nesse seu esforço recente de transparência. Quando tudo o que se deseja é o contato mais direto e menos mediado possível com um mundo por si só grotesco, é a precisão da orquestração da linguagem – e, principalmente, a pontuação deliberada de suas quebras – que conquista a possibilidade da distância justa, do grifo em tinta transparente. Maps to the Stars traz não só algumas pinceladas de encenação que a Hollywood contemporânea raramente permite (a sessão de ioga-psicanalítica de John Cussack com Julianne Moore é muito frontalmente enquadrada como uma curra), mas também um uso expressivo da quebra de eixo, como uma espécie de corte-comentário do que é encenado, jogando o espectador de dentro para fora da ação (ainda há salvação). São esses procedimentos que o filme larga mão para encontrar a tal distância justa, a partir da qual se alcança, em vez do duplo disfarce da sátira, o confronto direto, como um espelho gigantesco, colocado perto demais do rosto. O mundo de Maps to the Stars é terrível, mas ele é não só o mundo que decorreu dos sonhos do passado; é também o que se busca nos desejos do futuro.

Há quanto tempo não se via um diretor se dedicar tão abertamente a dizer que o mundo que criamos e aprendemos a desejar é fundado sobre valores vis e abjetos? Qual o último filme que parecia tão abertamente dedicado a fazer uma declaração crítica que passa inevitavelmente por ofender praticamente qualquer espectador possível? Cronenberg nunca foi sujeito de meias palavras, mas mesmo os mais habituados ao seu cinema encontrarão em Maps to the Stars o deleite da surpresa: da literalidade de um espancamento com um prêmio da indústria cinematográfica às conversas íntimas intercaladas por peidos de celebridades; da falcatrua geral encarnada por John Cusack (em registro alucinado que lembra Dennis Hopper) a Julianne Moore, a atriz das grandes atrizes, com toda interioridade chapada em uma permanente bunda de fora; das garotas em menopausa aos vinte e três anos de idade à comemoração à beira da piscina quando o filho de uma colega morre… tudo em Maps to the Stars parece muito além de qualquer limite moral, mas o que o trabalho de Cronenberg parece afirmar é que os limites é que se tornaram infinitamente flexíveis. Não à toa, a cena de combustão espontânea próxima ao final do filme se exibe em toda sua falsidade: por mais absurdo que todo o resto pudesse ser até o momento (é preciso, ainda assim, marcar a risca à giz em algum lugar), todo parâmetro de razoabilidade há muito já foi dissolvido.

Com exceção dos filmes de Takeshi Kitano, poucas vezes o cinema contemporâneo rendeu testemunhos tão dedicados de uma busca pelo potencial artístico da mais completa demência, fazendo da doença generalizada que corre por todo o filme uma fonte inesgotável da graça mais desgraçada, do riso mais doentio, dos prazeres mais perversos. Mais do que um convite ao inferno, Maps to the Stars é o exercício cartográfico que determina que já estamos nele. Para que o sacrifício não seja em vão, bebamos, com um sorriso de dentes sujos de lama, até a última gota de sangue.

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