Só Deus Sabe (Heaven Knows What), Ben Safdie e Josh Safdie (EUA, 2014)

outubro 23, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

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O ato da espera
por Pedro Henrique Ferreira

Logo antes da entrada da cartela inicial de Só Deus Sabe, Harley (Arielle Holmes) diz que vai cortar os pulsos na frente do namorado Ilya (Caleb Landry Jones). O rapaz que pediu para que a menina se matasse à sua frente, se sentindo traído, regozija frente à possibilidade de ela levar a cabo o plano. Até que, com efeito, ela faz o que promete. O rapaz a abraça e, desesperado, grita por uma ambulância. Quando ela é socorrida, ele logo a abandona novamente. Cortar os pulsos é uma prova de amor. É o abandono absoluto de si que o fantasma perseguido (no caso, Ilya) requer, o sacrifício para expiar uma culpa primária. O prêmio do sacrifício é a salvação, que logo dá lugar a um novo abandono, porque este fantasma é inapreensível. Este breve prólogo se desdobra em uma “situação-leitmotif“ como às de Hawks, apresentando uma dinâmica que se repete hiperbolicamente ao longo da trama.

Só Deus Sabe evoca a crueza de um Cassavetes (ou Fuller), com o mesmo esforço de organização do caos que é rodar um longa-metragem inteiro nas ruas de Nova Iorque e, principalmente, fazer com que a presença destas ruas se torne flagrante. Os protagonistas são jovens viciados que vivem de esmolas e roubos, vendem o almoço para comprar o jantar e não sabem onde vão cair mortos na madrugada seguinte. O cotidiano se resume a dar um jeito de conseguir uns trocados para injetarem, cheirarem ou beberem um pouco mais. A câmera de Ben e Josh Safdie se enfurna neste universo; é intimista, demora-se sobre os rostos e olhares, procura a forma mais silenciosa de se colocar o mais perto possível de seus atores; é radicalmente naturalista, na medida em que naturalismo significa justamente abrir as frestas da janela ao mundo, preencher os vazios e silêncios com a vida incontrolável lá fora, apostar mais na dinâmica da cena do que no rigor do quadro.

O esforço do terceiro longa-metragem de Ben e Josh Safdie em permitir que a imprevisibilidade das ruas adentre as roturas do quadro é confrontado com o sentido de organização, o esforço em tecer uma narrativa e criar um cosmos. Não à toa, em filme de tantas idas e vindas, com figuras sendo introduzidas em um momento para desaparecerem no seguinte, reverbere um sentimento de familiaridade mesmo nas situações mais atípicas. Todos na rua de algum modo se conhecem, como se habitassem um mesmo colegial. Desaparecem na esquina, mas são eventualmente impelidos de volta ao microcosmos. Se agarram uns aos outros, como também fazem os personagens de Hawks, para não se perder lá fora.

Só Deus Sabe se torna uma obra curiosa na medida em que conjuga a dureza e pobreza das ruas, este contínuo esforço de organização do caos, com o amor de Harley por Ilya, criando um lirismo e um senso de beleza próximo ao realismo poético. O casal se afasta, perambula e encontra outros companheiros, mas eventualmente retorna. Harley abandona um Mike doente para voltar para um Ilya beirando a morte. E quando ambos parecem ter atingido o éden e partem juntos para Miami, ele a abandona novamente, sem motivos aparentes, para retornar à nefasta Nova Iorque. A redenção de Harley está não no amor (que é cruel e aprisiona), mas no ato de amar; a busca e a espera é religiosa, mas sua concretização é oscilante – eventualmente se realiza, mas jamais de maneira plena. Caracteriza-se uma espécie de platonismo rohmeriano às avessas: a espera é santa, mas o encontro derradeiro irá lhe danar. É a sina de quem procura encontrar fora de si mesmo algo que está do lado de dentro.

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