O Pequeno Quinquin (P’tit Quinquin), de Bruno Dumont (França, 2014)

setembro 18, 2015 em Em Cartaz, Filipe Furtado

quinquin3Linha de montagem autoral
por Filipe Furtado

Um corpo é encontrado dentro de uma vaca. A natureza violenta do crime é reforçada por sua descoberta absurda. No entorno, porém, a pequena cidade na qual a ação se passa segue quase inalterada. Nos dois primeiros capítulos da minissérie de TV de Bruno Dumont apresentada como longa nos cinemas brasileiros, a tônica que domina é a do humor – uma comédia de costumes sobre uma pequena comunidade francesa assolada por um serial killer e uma série de crimes tão bizarros quanto violentos, mas que parecem pouco assombrar aqueles que lá vivem. Boa parte do humor vem justamente da apresentação dura que Dumont dá ao seu material, a forma como o absurdo e o inaceitável parecem internalizados por todos. Somente duas irmãs adolescentes parecem sensibilizadas de fato com o crime, é não é à toa que, quando do último capitulo, uma delas se torna a última vítima do serial killer, que a entrega como alimento aos porcos.

O Pequeno Quinquin se divide essencialmente em dois grupos de personagens: o par de detetives excêntricos que tocam impassíveis a sua investigação e um grupo de jovens garotos locais capitaneados pelo Quinquin do título. Uma descrição rápida da sinopse traz à mente A Humanidade (1999), melhor filme do diretor, outra investigação policial com desejos totalizantes. Como Michael Sicinski apontou na Cinema Scope, a aproximação é reforçada pela decisão de nomear o detetive interpretado por Bernard Pruvost (cuja atuação empresta a O Pequeno Quinquin o que ele tem de abertura à humanidade) em referência ao pintor holandês Rogier Van der Weyden, o que ecoa a decisão de nomear o detetive de A Humanidade pelo pintor francês Pharaon de Winter. Ao mesmo tempo, as desaventuras de Quinquin trazem à mente os vários jovens com tendências à delinquência que pululam nos filmes de Dumont, de A Vida de Jesus (1997) a Fora de Satã (2011). O Pequeno Quinquin é, logo, uma bem consciente obra de revisita em que personagens, temas e situações conhecidos de outros trabalhos do diretor (sobretudo os do começa da carreira) são retrabalhados a partir da lógica da minissérie televisiva.

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Bruno Dumont não é um cineasta conhecido pela sutileza. Falamos, afinal, de um artista que chamou seu segundo longa de A Humanidade e em nenhum momento trabalhou para disfarçar o desejo de que o seu filme desejava dar conta do tema. A pequena comunidade de Quinquin igualmente serve de palco simbólico de toda a psicose da sociedade francesa. Ao final do segundo episódio, está claro que o motivo dos assassinatos é racial e sobretudo de que o temor maior do criminoso é o da miscigenação que ameaça a França profunda que Quinquin descreve, assim como é ainda mais óbvio que o assassino somente externa um sentimento geral, que nasce desde Quinquin e seus amigos e vai até o capitão Van der Weyden. A psicose do serial killer pouco mais é do que a de toda sociedade francesa apavorada com o crescimento da população muçulmana. A última vítima é assassinada não por ter uma relação física com o jovem muçulmano filho do primeiro morto, mas por se compadecer por ele; a mera ideia de igualdade basta para mover o justiceiro da comunidade para a ação.

O Pequeno Quinquin não tem subtextos. Dumont tem plena consciência de que trabalha com televisão e não cinema, o que torna bem curioso que o consumimos aqui no Brasil (e, justiça seja feita, na comunidade cinéfila mundial, incluindo a francesa) como um filme. Talvez seu maior interesse tenha pouca relação com seus possíveis méritos individuais, e mais com a maneira com que ilustra a diferença entre os meios. A despeito de todas as suas pretensões, o que sustentava A Humanidade eram as possíveis lacunas deixadas por Dumont, o mistério revolto do seu mundo e seus personagens. Apesar de ser mais de hora mais longo, O Pequeno Quinquin não tem espaço para lacunas ou mistérios: mesmo os elementos mais peculiares do primeiro capitulo serão devidamente iluminados na altura do último, se nem sempre na sua função dramática, sem dúvidas no seu sentido. O mistério na logica televisiva só pode dar as caras como adjetivo. Como consequência, O Pequeno Quinquin tem um movimento dramático opressor: a cada novo capitulo seus personagens se revelam mais títeres de uma tese fechada de antemão e todas as tentativas de humor e momentos de observação da a comunidade no capitulo inicial vão se mostrando partes de uma estratégia bem questionável de aproximação com o espectador antes da tese poder ser exposta de todo.

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O filme traz a mente outros dois filmes: Tip Top, que Serge Bozon dirigiu em 2013, uma comédia policial sobre as formas que a sociedade francesa observa o corpo estranho do muçulmano construída com uma sofisticação que escapa ao mecanismo de Dumont; e principalmente Dupont Lajoie (1975), um thriller de Yves Boisset, no qual o restaurateur Jean Carmet estupra e mata uma jovem Isabelle Huppert durante suas férias, se livra do corpo numa construção tocado por operários  muçulmanos e aguarda o linchamento social seguir seu curso. A construção é bem similar, incluindo a preferência pelo humor no ato inicial, mas as diferenças são bem substanciais, a começar por sua polêmica ser voltada para os Lajoies da plateia, e de sua constatação final de horror (que similarmente inclui a justiça francesa lavando as mãos da situação) sugerir menos o final de uma lição cívica do que uma armadilha social terrível. Todos os três são comédias de horror social, mas somente O Pequeno Quinquin toma as saídas mais fáceis sempre, e, a despeito de todos os seus truques de choque, jamais consegue encontrar qualquer revolta na sua violência, optando por um quase dar de ombros diante de reforçar o diagnóstico da sua tese.

No fundo, na lógica de O Pequeno Quinquin, todos, muçulmanos, brancos, personagens e espectador, são parte da mesma linha de produção industrial, carne para o abate mecanizado pela engenhosidade da narrativa. Cada possível momento de curiosidade e de abertura de novas possibilidades da hora inicial é devidamente fechado em favor deste maquinário funcional. A TV de autor não é, afinal, nada mais de que uma outra versão menos sutil do comércio de cinema de autor contemporâneo do qual o canal Arte, que bancou a série, é um dos jogadores mais importantes. Quinquin é um dos seus exemplares mais bem acabados e seu sucesso consiste em apagar tudo que existia de potencialmente interessante quando Dumont visitara a mesma situação em A Humanidade.

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