The Second Game (Al Doilea Joc), de Corneliu Porumboiu (Romênia, 2014)

junho 1, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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Os campos de batalha
Por Filipe Furtado

Corneliu Porumboiu constrói The Second Game a partir de um principio à primeira vista muito simples: há uma antiga gravação em VHS de uma partida de futebol entre Steaua e Dínamo, os dois maiores times do futebol romeno no fim dos anos 1980, que servia como uma espécie de final antecipada do campeonato de 1988; o áudio do jogo é substituído por uma conversa em tempo real entre o cineasta e seu pai Adrian, que apitou aquela partida. O jogo é exibido na integra, suprimindo apenas o intervalo, e, ao longo de 90 minutos, a imagem do filme de Porumboiu oferece pouco mais que o espetáculo de uma cópia velha de um jogo de futebol a princípio esquecido, que terminou 0 a 0, e cujo maior destaque visual é ser disputado sob pesada neve – algo que deve impressionar mais o espectador estrangeiro do que local, já que, como Adrian é o primeiro a lembrar, Steaua e Dínamo jogaram diversas partidas similares. Porém, o filme todo de Porumboiu trabalha contra a aparente banalidade do cenário; seu sucesso é justamente o de afirmar que o que está em jogo em uma partida dessas é sempre muito mais do que a disputa entre aqueles dois grupos de jogadores, e o de reforçar a capacidade de permanência do cinema e as suas possibilidades de emprestar uma nova perspectiva histórica ao passado e suas imagens.

Existem três campos em The Second Game. O primeiro, dentro do quadro, é evidentemente o próprio campo de partida, no qual um jogo duríssimo que combina as dificuldades naturais (Adrian Porumboiu menciona várias vezes que, se a neve se intensificasse um pouco mais cedo, teria cancelado o jogo) com o contexto de um clássico decisivo naturalmente catimbado. O segundo campo é o contracampo nunca mostrado de pai e filho diante de uma TV a discutir o jogo – e é notável como Porumboiu transforma este fora de campo num espaço palpável, cuja presença e intimidade pai/filho transcende a simples conversa entre os dois que conduz o filme, como por exemplo na presença das frequentes interrupções de aviso de mensagem de celular que pontuam todo o filme. Por fim, há um segundo fora de campo, conjugado do encontro dos outros dois, que é justamente o imediato fora de campo da Romênia por volta de 1988, às vésperas da revolução.

Porumboiu tem o mérito de nunca pesar a mão no comentário histórico, mas, a partir do ponto que ele e o pai estabelecem que Steaua e Dínamo eram o time do exército e o da polícia secreta, toda a ação no campo ganha uma dimensão a mais. A partir daí, a deposição de Nicolae Ceausescu no ano seguinte se torna uma assombração que paira sobre o filme. A cartela de abertura reconta, em primeira pessoa, a experiência de Corneliu Porumboiu de atender um telefonema e ouvir uma ameaça de morte ao pai por conta do seu trabalho de arbitragem, e a opção por não afirmar a origem de tal ameaça reforça a impressão constante de que um clássico como este tem um investimento e paixão muito fortes de parte de muitas pessoas (incluindo o próprio ditador).

Com a partida se desenrolando cada vez mais como um embate de forças, cada carrinho e cada bola dividida ganham um peso a mais. O zero a zero entre Steaua e Dínamo é menos jogado do que lutado. Logo em uma das primeiras jogadas, o centroavante do Dínamo corta a testa e passa o resto do jogo com cabeça enfaixada; depois de um segundo choque, o ferimento volta a sangrar. Não se trata de um jogo comum: há literalmente sangue na neve. Adrian relembra que, sempre que a partida esquentava e havia um principio de confusão, o hábito da televisão estatal era de cortar para o público (prática que seria mais tarde importada por nossas redes de televisão capitalistas), o que empresta ao público, a cada novo corte, um humor amargo particular, ao mesmo tempo que é um lembrete engraçado e muito simbólico das várias outras supressões que marcavam a vida romena sob Ceausescu. O mesmo acontece, em uma outra chave, com as menções de Adrian à existência de times-satélite que reforçavam o caráter farsesco do futebol local (“estes eram mais honestos, venceram o Steaua uma vez”). A ausência de demarcações claras no campo coberto de neve, que torna confusa a experiência de assisti-lo (por parte do espectador) e de mediá-lo (por parte do juiz), aumenta ainda mais o caráter alegórico que a transposição para o cinema empresta à ação.

Porumboiu extrai muito da figura do pai como juiz: ele é aquele que precisa controlar tal batalha na iminência da revolução. Trata-se, afinal, de um jogo muito pegado, mas que flui muito mais do que o usual de partidas do gênero. Isso só acontece porque Adrian Porumboiu é um adepto da filosofia de conceder vantagem sempre que a sequência da jogada pareça possível, o que permite que o jogo corra mesmo com a violência dentro de campo. O ato de mediar um jogo de futebol, sobretudo em condições tão adversas, é carregado de uma potência simbólica que o filme explora ao máximo. O cineasta indaga o pai sobre seu desejo de manter sempre a bola correndo, sua tendência a não dar cartões, e sobre como a sua forma de conduzir a partida impacta a sua relação com jogadores, e a figura que emerge de mediador de um campo de batalha é cercada de possíveis leituras politicas. É um ato que o filme por vezes sugere não ser assim tão diferente de conduzir uma equipe de filmagem – ou, no caso especifico de The Second Game, o de mediar estes três campos de ação que correm de forma paralela.

Há um caráter provavelmente mais compreensível aos fãs de futebol, mas muito relevante à construção do filme, que é o da própria história do futebol romeno. Neste jogo tão lutado estava em campo, afinal, boa parte da geração de ouro do futebol romeno, a mesma que alguns anos mais tarde chegaria às quartas de final da Copa do Mundo dos Estados Unidos. Pouco depois da queda de Ceausescu, os torcedores romenos deixariam de ter a oportunidade de ver ao vivo craques como Hagi, Raducioiu, Belodedici e Popescu, que emigrariam para a Europa ocidental a partir dali. O Steaua era um dos maiores clubes europeus do período – campeão europeu em 1986 e vice em 1989 – algo inimaginável nos dias de hoje. Mesmo o clássico Steaua-Dínamo já não tem o mesmo espaço que á época.

O cinema novo romeno sempre manteve esta obsessão com o espaço entre os anos finais de Ceausescu (não por coincidência, momento que coincide com a infância/adolescência de boa parte de realizadores como Porumboiu) e a Romênia atual, e este espaço recebe uma das suas representações mais impactantes justamente na imagem desgastada de VHS que The Second Game resgata. A ambivalência deste retorno em vários dos filmes romenos da década passada encontra um paradoxo nostálgico na empolgação de Corneliu Porumboiu, que insiste em afirmar a habilidade e técnica daqueles jogadores – a nata do futebol romeno da sua juventude – diante de condições que tornam impossível observá-las.

Boa parte de The Second Game se revela um embate entre os pontos de vista de Corneliu e Adrian sobre a permanência do futebol, com o filho sempre pronto para exaltar a força daquela partida, enquanto o pai, homem muito mais prático, impassível na certeza de que aquele jogo fora há muito esquecido, sendo uma entre tantas partidas entre Steaua e Dínamo apagadas pela história, só mais uma estatística que não à toa permaneceu no zero a zero tão temido pelos fãs do esporte. A crença toda do filme é a de desarmar o pai e afirmar que sim, em meio àquela neve, àquelas jogadas truncadas, aconteceu algo que tem sim muito valor e significado. Este confronto de olhares vai ao pouco se metamorfoseando em um debate não só sobre a natureza do futebol, mas também sobre a do cinema.

A certa altura, Corneliu Porumboiu afirma,  de forma muito consciente, que aquela partida é exatamente como um dos seus filmes, justamente no momento em que procede em transformar aquele jogo de um arquivo televisivo num filme de cinema. Ao longo da partida, o folego de Adrian visivelmente se reduz e grandes entrechos do segundo tempo transcorrem com poucas interrupções de pai e filho, mas no lugar de somente reforçarem o caráter maçante do filme, estes silêncios e a possibilidade de acompanhar aquela partida sem maiores mediações também reforçam este processo pelo qual este arquivo e esta memória são transformados em um elemento cinematográfico. O futebol permanece, assim como mesmo uma fita de VHS de uma partida de futebol de 25 anos atrás pode ser recuperada por um olhar forte e se tornar ela também cinema. São as duas lutas que o filme empreende e afirma. A batalha do futebol jamais será só um jogo, assim como o caráter de permanência do cinema, sua capacidade de recuperar memória como história, será sempre um ato político.

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