The Treasure (Comoara), de Corneliu Porumboiu (Romênia/França, 2015); The Other Side, de Roberto Minervini (França/Itália, 2015)

agosto 12, 2015 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2015

The Treasure (2015), Corneliu Porumboiu

The Treasure (2015), Corneliu Porumboiu

Jornadas ao interior profundo
por Eduardo Valente (colaboração especial)

Esteticamente falando, há muito pouco que pareça aproximar os universos cinematográficos de Corneliu Porumboiu e de Roberto Minervini. No entanto, seus filmes mais recentes, ambos exibidos em Un Certain Regard em Cannes 2015, embora seguindo por caminhos bem distintos, acabam chegando bem perto um do outro, num retrato espelhado das almas mais profundas de dois países.

Porumboiu, já se sabe, faz parte da geração romena que ganhou força na última década ao esquadrinhar o mais coeso retrato de uma “sensação de país” sob o peso da passagem traumática do regime socialista-comunista para a abertura pós-Perestroika. Dentre os cineastas que surgem naquele momento, embora esteja totalmente filiado ao movimento de refletir muito frontalmente sobre um “estado do mundo romeno pós-1989”, ao mesmo tempo talvez sempre tenha sido o mais afeito ao ato de fabular. Sua ironia fina e bastante cáustica nunca se deixou distanciar por demais daquilo que retratava, e frente ao “realismo” quase obsessivo de alguns de seus colegas, talvez o seu sarcasmo, que poderia resultar em distância, curiosamente tenha dado origem a alguns dos mais realmente sentidos filmes a vir do país.

Nesse novo The Treasure, reencontramos muito do que nos fascinava nos filmes de ficção anteriores do diretor: um timing de humor raro, um prazer pelas cenas de diálogos longos circulando sobre aparentemente muito pouco, mas incutindo em cada gesto dos personagens um obsessivo olhar atento que nos aproxima mais e mais daqueles personagens pequenos. De fato, tudo isso talvez esteja ainda mais radicalizado aqui, e o que parece começar como um outro pequeno filme quase realista vai ganhando contornos mais e mais absurdos de uma forma quase imperceptível – até desembocar em um desbragado surrealismo que parece colocar o cinema de Porumboiu num espaço onde talvez ele sempre tivesse circulado sem nos darmos totalmente conta: o dos contos de fada, daqueles que devem obrigatoriamente começar com um “era uma vez”.

Ainda mais adequado, talvez, seja o fato de que esse caminho se faz aqui através de uma jornada física dos personagens, uma caça ao tesouro que os leva ao interior da Romênia. Nessa “viagem ao centro da terra (natal)”, é como se Porumboiu fosse se libertando de toda e qualquer necessidade de lidar com os dados da realidade, que de alguma maneira sempre deram o chão aos seus contos anteriores, ao mesmo tempo em que fizesse dessa “Romênia profunda” o espaço ideal para fabular sobre uma possível “alma nacional”. Todos esses são ambientes nos quais ele se sente muito à vontade, demonstrando uma confiança rara na capacidade de que da autêntica “não-história” que narra possa conseguir retirar tanta empatia.

The Other Side (2015), Roberto Minervini

The Other Side (2015), Roberto Minervini

O caminho dos filmes recentes de Roberto Minervini certamente reprisa esse trajeto de quem vai ao interior em busca da alma de um país, mas não é um mero detalhe diferenciador o fato de que o país em que Minervini mergulha (os EUA) não seja o seu de nascença. Igualmente não é nada desimportante o fato de que ele escolha o caminho do documentário nesse mergulho – ainda que sua aproximação com a linguagem documental seja uma que, de tão depurada na sua radicalidade de registro, termine fazendo o olho do espectador duvidar de uma realidade que tanto se aproxima do absurdo.

Se Stop the Pounding Heart (2013) se aproximava mais do sentimento difuso de uma “alma nacional” que se permitia ser vista através dos detalhes de personagens em seus trajetos (e muito nos seus ambientes, espaços, costumes, sotaques), em The Other Side as questões mais macro se impõem aos poucos, mas de maneira inegável, num turbilhão que vai se montando como uma série de ondas que começam pequenas e se tornam vagalhões sem que pareçamos nos dar conta desse aumento de volume gradual. De fato, a partir de um ambiente humano e geográfico similar, no interior de Louisiana, Minervini entrelaça duas narrativas cujo fluxo de uma para outra quase não percebemos acontecer.

Nos dois casos, o conceito de “marginal” parece o mais central componente – o que parece particularmente adequado nos sentidos distintos que o termo ganha em português. As margens ao princípio parecem ser mais uma imposição da realidade aos personagens, mas no lento movimento de uma história para outra vão ganhando outro ângulo: o de um auto-exílio voluntário de um grupo que precisa se definir quase independente de um país como forma de se declarer a mais profunda representação dele mesmo. É como se nessa enorme “margem” Minervini conseguisse encontrar o cerne, o centro de alguma coisa – ainda que essa coisa pareça permanecer difusa, talvez tão difusa e inconfundível ao mesmo tempo, como pode (deve?) ser a alma de um país.

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