Jersey Boys, de Clint Eastwood (EUA, 2014)

outubro 4, 2014 em Em Cartaz, Filipe Furtado

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Os rapazes da vizinhança
por Filipe Furtado

Diante de Jersey Boys, é útil destacar o que o filme não é: não se trata de um musical jukebox ou uma cinebiografia de Frankie Valli (John Lloyd Young) e os seus Four Seasons.  Seus hits mais icônicos estão ali registrados (“Can’t Take My Eyes of You”, “Walk Like a Man”, “Sherry”), mas Clint Eastwood opta por filmá-los no tom sóbrio que domina seus filmes desde o começo da parceria com o fotografo Tom Stern. Jersey Boys é um filme perverso, um musical que conserva a musica, mas perde os seus números. É somente nos créditos finais, com o filme já encerrado, que Clint Eastwood se permite presentear o espectador com a energia e alegria que associamos ao gênero, quase como se para deixar claro que, se fosse esta a intenção, seu filme poderia entregar um passeio alegre pelos sucessos de Valli. É interessante pensar que Eastwood sucedeu Martin Scorsese à frente do projeto, e a forma como o ecletismo e nervosismo estético de Scorsese é ao mesmo tempo o exato inverso da sobriedade excessiva do Eastwood tardio, sem que ambos não deixem de sugerir tiques similares e as mesmas redes de segurança que protegem seus últimos filmes.

Valli é uma figura fascinante para uma cinebiografia, menos pela sua vida do que pelo que representa culturalmente. Os únicos artistas a colocarem álbuns e singles nas paradas de sucesso norte americanos ao longo da década de 1960 com mais frequências do que os Four Seasons foram os Beatles, Elvis Presley e Ray Charles, mas pouco se pensa Valli em tal posição, já que, paradoxalmente, poucos artistas proeminentes no período parecem tão distantes do imaginário que se faz dele – ninguém afinal usa os Four Seasons em trilha sonoras de montagens sobre o período, e o grupo permanece à parte do seu contexto, a despeito de tentativas ocasionais de flertar com ele, como no álbum The Genuine Imitation Life Gazette, de 1969. Jersey Boys é bem consciente de tal espaço, não à toa se constrói não como um filme de nostalgia, mas de memória. Não é, portanto, um filme sobre a música, mas sobre como ela é administrada. Não há interesse particular nos altos e baixos da vida de Valli, até porque o livreto do musical original tem poucos interesse para com os fatos: Valli permanece ali como um conduto e é fascinante pela forma como uma série de elementos se reflete sobre ele.

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Se o filme foge de ser um musical ou uma biografia, sua preocupação  principal é a de estabelecer um mundo: o da colônia italiana de Nova Jersey nos anos 1950, seus hábitos e pequenos gangsters. Pode-se dizer que estamos menos num filme musical do que num filme de gangster nos quais os pequenos criminosos evoluem não para uma vida de grandes crimes, mas para a de pop stars. Jersey Boys dedica boa parte de suas forças a estabelecer aquele lugar do qual será impossível escapar, independente de fama e dinheiro. Trata-se, porém, um pouco como Honkytonk Man (1982) – a experiência anterior de Eastwood com o musical híbrido – menos de um filme de nostalgia do que de um filme memorialístico. Jersey Boys é dos trabalhos mais próximos de John Ford que o diretor realizou e parte da desgraça que abate Valli e seu parceiro de banda, Tommy DeVito (Vincent Piazza), é que, um pouco como o Huw de Como Era Verde o Meu Vale (1941), para eles é impossível abandonar Newark e deixarem de ser os garotos de recado do mafioso Gyp DeCarlo (Christopher Walken).

Clint Eastwood decidiu se manter fiel aos atores protagonistas originais da montagem musical, o que tem dois efeitos práticos. O primeiro é que, anos após a montagem, eles já estão um pouco velhos para seus personagens, sobretudo nas sequências iniciais nas quais John Lloyd Young, com seus 39 anos, interpreta o Valli no final da adolescência. O efeito de distanciamento é inevitável: o mundo de Newark se torna mais mítico e artificial. O outro é que Young é mais um cantor do que um ator, o que limita um pouco o impacto emocional do filme, que nunca alcança nas suas sequências-chave o peso de outros trabalhos do diretor, mas também serve para garantir uma distância maior entre o espectador e o personagem central. Jersey Boys é estruturado a partir da narração em primeira pessoa dos outros três membros originais dos Four Seasons, mas nunca de Valli, que segue inacessível, uma voz distante.

Still from Clint Eastwood's Jersey Boys

O filme conclui levando esta lógica do testemunho ao limite: os quatro membros originais dos Four Seasons décadas depois (os atores sob maquiagem pesada similar à de Leonardo DiCaprio em J Edgar, aumentando ainda mais o efeito de distanciamento) retomando novamente toda a ação com a perspectiva de mais duas décadas. Reforça-se a quebra da quarta parede: as ações que vimos até ali são sempre filtradas por uma perspectiva muito particular, marcada por anseios específicos, pouco partilhados pelos demais membros da banda. É somente depois de reforçar novamente como cada uma das suas imagens é construída a partir da memória, de uma recuperação particular do passado, que o filme se permite entregar o número musical e estabelecer a fantasia do cinema que recusara até ali.

Jersey Boys é um filme marcado pelo pragmatismo, e neste sentido não deixa de lembrar Invictus (2009), no qual Eastwood usava Nelson Mandela para lidar com o pragmatismo na política. É um filme menos interessado no processo criativo de uma banda do que no ato de participar de um grupo e as trocas necessárias para manter a convivência dentro dele. Boa parte do bloco intermediário do filme que lida com a ascensão comercial da banda envolve a disputa entre DeVito, o garoto do bairro, e Gaudio (Erich Bergen), o outsider, pelo controle do grupo – um controle que o filme deixa bem claro ter pouco a ver com o lado criativo (que DeVito entrega de bom grado ao companheiro mais talentoso), e muito com a administração de finanças e imagem dos Four Seasons.

Não deixa de ser notável, porém, que o filme consiga realizar estas observações sem com isso sacrificar o valor de Vali como artista. É um procedimento que chega ao ponto máximo no bloco que trata da criação de “Can’t Take My Eyes of You”, canção mais famosa do cantor. Sua primeira apresentação pública é o mais próximo que Jersey Boys chega de um triunfo pessoal, mas o momento é cortado pela sequência anterior, na qual Gaudio e Bob Crewe (Mike Doyle), o produtor e co-compositor da banda, discutem não a canção em si, mas a maneira com que poderiam divulgá-la para permitir que ela alcance um público mais amplo. É só após este momento de bastidores que é possível ver o triunfo de Valli como performer, vendendo a força da canção. É este, afinal, o seu papel dentro do desenho de Jersey Boys: o artista como intérprete de sentimentos do mundo ao seu redor.

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