Deixe a Luz Acesa (Keep the Lights On), de Ira Sachs (EUA, 2012)

setembro 2, 2013 em Em Cartaz, Fábio Andrade

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Na beira, o abismo
por Fábio Andrade

Antes de nos apresentar personagens, locações ou qualquer elemento que constitua uma cena, Deixe a Luz Acesa recebe o espectador com uma montagem de pinturas ao som de “Close My Eyes”, bela valsa com sotaque country de Arthur Russell. Há mais a ser apreendido sobre o filme a partir desta abertura do que olhos já acomodados às introduções de Gus Van Sant podem enxergar, a começar pela escolha de Russell para não só abrir, mas de fato prover a música (não-original, mas usada como se fosse) de todo o filme. Pois a obra do músico entra não só como índice iconográfico do universo gay de Nova York que as pinturas tematizam e que o filme reverbera – começando poucos anos depois de sua morte, em 1992 – mas também por ser o trabalho de um artista que ambicionou reatar pontas entre a arte de vanguarda e as convenções da arte popular. À medida em que os arquivos de Russell continuam sendo publicados e conhecidos por um público mais amplo, fica cada vez mais clara a sua disposição em escancarar certas gavetas do universo da arte e misturar o que a história, por questões econômicas, optou por separar, sem reconhecer qualquer contradição entre um trabalho de “vanguarda institucional” – a curadoria musical da Kitchen, uma das mais célebres galerias do Chelsea; a parceria com Allen Ginsberg; a exploração sistemática e até certo ponto minimalista do eco e do delay como ferramentas de abstração e atonalidade – e a dedicação aos gêneros da canção pop que marca tanto sua produção de música disco quanto uma compilação como Love is Overtaking Me, disco póstumo de 2008 que passa pelo pop radiofônico, o folk, a new wave, o rock e o country da própria “Close My Eyes”.

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A abertura é significativa pois é, de fato, neste ponto de encontro fugidio da “vanguarda” com o “convencional” que Ira Sachs ambiciona se colocar, ao menos como princípio, como lugar de onde partir. Em primeiro lugar, isso se revela uma motivação temática, ou, ao menos, por uma compreensão possível (não exatamente a minha) de o que sua música buscava ou “representa”. Pois Erik (Thure Lindhardt) é, também, uma ilustração claramente delineada deste meio do caminho, dividido não só entre uma vontade de inserção no mundo da alta cultura (a fotografia que ele vê em uma galeria e deseja possuir, embora não tenha dinheiro para isso, mas também um estilo de vida que não dispensa as vernissages, os tapetes vermelhos, as festas regadas a vinho tinto e as relações sempre incestuosas entre arte e aristocracia que permanecem em vigília sob os tacos brancos dos lofts de Manhattan) e as exigências pedestres de sua família em relação à sua carreira como documentarista, mas também no desejo de constituir uma família mais tradicional ao lado de seu namorado, Paul (Zachary Booth), que ele conhece por um contato telefônico em busca de sexo. Como na obra de Arthur Russell, o desejo da convenção vem acompanhado de certa desfuncionalidade, de uma clara dificuldade de calar uma vida subterrânea (Paul é um bem sucedido agente literário, que esconde, entre os vincos da camisa engomada e o cabelo bem penteado, o vício em crack) em nome de algo aparentemente mais regrado, mais funcional, que seja compartilhado com tranquilidade em um jantar de ação de graças (e, no caso de Russell, o que é“convenção” e o que é “desfuncional” é escolha deixada para quem ouve). Em nome do direito de deixar as luzes acesas.

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Não se pára em terreno movediço, porém, sem que se sinta a terra a mordiscar a sola dos sapatos: até que ponto a vontade de deixar as luzes acesas não é sobrepujada pela obediência ao que é “socialmente aceitável” de se fazer com as luzes acesas? Ou, até que ponto o convívio entre a convenção e o desmonte, em Arthur Russell, era um meio-termo, uma diluição de extremos, e não uma tentativa de impor certa circularidade a uma trajetória tida como teleológica (marca de todos os grandes artistas modernos norte-americanos: perceber que a arte sempre retorna ao princípio após chegar o final, e que não há nada mais próximo do final do que o princípio)? Mais do que certa domesticação da vivência gay em nome de uma brincadeira de “papai e mamãe” – algo de que Felizes Juntos, de Wong Kar-wai, foi acusado com alguma frequência (e talvez com certa justiça) à época -, Deixe a Luz Acesa parece querer ilustrar esse limite, se colocar na zona fronteiriça em que um lado se mistura ao outro, mesmo que o resultado seja uma nem sempre bem vinda indistinção entre essas modulações. Nesse sentido, novamente, a figura de Arthur Russell é central justamente por sua ausência: Russell morreu por complicações decorrentes da AIDS, vírus partilhado pelo ex-namorado de Erik que o filme deixa sempre no extracampo, transformando esse desejo de canção em uma reação às consequências do desbunde que marcava o momento anterior – o mesmo terror que fazia uma mulher feita (Jane Birkin) se apaixonar por um garoto de 14 anos (Mathieu Demy) no primoroso Kung-Fu Master (1988), de Agnès Varda. Por vezes, o desejo de convenção é, também, questão de sobrevivência.

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Mas há uma imbricação mais significativa da escolha de Arthur Russell, que justifica a menção e a remissão do nome do músico como ilustração fo próprio trabalho formal do filme, extremamente calcado em longas elipses que saltam anos a fio, mas sem se permitir perder jamais o fio narrativo. Há uma estorinha bem clara a ser tecida e acompanhada, mas que, de tão arquetípica, já não precisa sequer se constituir como narrativa de fato para ser reconhecida e “efetivada”. O trabalho de Ira Sachs se concentra em jogar com o tempo e as intensidades dentro desses episódios, que são apresentados nem totalmente amarrados, nem brutalmente desconectados. Talvez estejamos mais próximos de uma versão mais sóbria de Em Paris, filme de Christophe Honoré em que a relação de um casal é esquartejada, via rememoração, em uma série de tempos fortes, de momentos pregnantes de amor e dor que não se descolam do típico “boy meets girl”, mas que tira das mangas uma infinidade de recursos que possam desfibrilar essa narrativa que. Talvez estejamos mais próximos de uma versão de Em Paris às avessas, em que só existem os tempos fracos, os intervalos, aquilo que será esquecido. Em comum, o desejo e o desfibrilador em punhos.

Mas, em Deixe a Luz Acesar, a forma de injetar vida nesses tempos fracos, tão indignos dos “boy meets girl” que se mostram exatamente como um “boy meets boy”, é de se embeber, em alguma medida, com as descobertas da vanguarda da mesma Nova York que Ira Sachs e suas personagens habitam – nesse sentido, estratégia até certo ponto parecida com a de Honoré, uma vez que Em Paris foi tão celebrado quanto criticado pela sua apropriação soft dos procedimentos da Nouvelle Vague. Há, portanto, uma chance de implodir o convencional por dentro, munido do aprendizado atento com aqueles que viveram a rebeldia formal antes que ela fosse transformada, também, em convenção – aqueles que Ezra Pound chamaria de “inventores”. A tentativa de desfibrilação aqui é de retomar, pela crueza à Cassevetes, uma dramaturgia calcada na intensidade e no vacuidade dos cortes; pelo excepcional trabalho de fotografia de Thimios Bakatakis, resgatar algo do uso do grão de um Robert Frank; pelo descolamento entre rosto e contexto, evocar uma atmosfera posada entre o realismo abstrato de Kenneth Anger e o jogo entre figura e fundo de um Robert Mapplethorpe; pela busca de certo artificialismo no natural que remete a Bill Viola; pelo encapsulamento em pequenas experiências entre quatro paredes e os saltos entre espaços fechados, redescobrir algo que Maya Deren já havia descoberto e, à sua maneira, repensar as intersecções possíveis entre essa memorável Nova York de um passado já distante, mas definidor, e a concretude de uma narrativa de um passado quase presente (os anos 2000), uma época que assassinou o desbunde como paródia (a época pós-AIDS) e reabilitou certos preceitos de transparência, ou ao menos uma busca de transparência dentro da opacidade.

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Em seu ímpeto de tirar um retrato já rasgado, pois só um retrato rasgado seria capaz de dar conta de uma relação em fragmentos, falta, ao filme, o mesmo que falta a seu protagonista, ao menos até o momento final: enxergar todas essas modulações em um mesmo contínuo, colocá-las em relação, estabelecer as pontes e as conexões entre tudo que se decide reanimar e reapresentar. Falta justamente a percepção – central para a arte norte-americana que Ira Sachs retoma, muito fundada na importância do pensamento de Clement Greenberg – de que o Moderno não se coloca como ruptura em relação ao Clássico, mas justamente como possibilidade circular de repotencializar os sentidos que o tempo e o mau uso das convenções terminaram por adormecer. Em seu ímpeto de inventário, de uma relação que acaba parecendo em alguma medida um produto de segunda mão, uma narrativa comprada em um brechó, Ira Sachs termina por fazer o contrário: ir buscar as tais pepitas adormecidas no cinema moderno americano… mas, ao reenquadrá-las dentro de uma convenção narrativa mais tradicional – de pensar esse “boy meets boy” por demais como “boy meets girl” -, o diretor termina por minar-lhes um tanto da força, por tirar a erupção e a disrupção de onde reside a maior parte de sua potência (a força do cinema moderno não está nas coisas, mas nos espaços entre as coisas, definiu Badiou). Restam os rostos bonitos, os quadros austeros, e a nuca de Erik ao final – que nos encararia, se fosse um filme de Edward Yang -, emprestando ao filme sua percepção particular de se estar a poucos passos do abismo – sem se decidir se salta, se se joga, se volta pra casa -, do abismo que separa o colecionador do curador, a catalogação da criação artística: a capacidade de, em um amplo sentido, estabelecer relações.

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