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A burocracia não nos servirá em tempos de guerra

Estamos situados em uma sala escura. Nela, dois corpos posicionam-se um diante do outro. Raros os planos em que ambos serão dispostos no mesmo quadro, mas é a partir da interação entre eles que acessaremos um dos momentos mais paradigmáticos da história recente do país, seus ecos e seus fantasmas – atualmente sempre à espreita, em busca de um corpo no qual encarnarem. O momento: aquele Brasil pós-1964, os interstícios de uma guerra travada entre as forças do Estado e qualquer uma que ousasse contestá-las. O acesso ocorrerá mediado pelos relatos de Cláudio Guerra, antigo delegado de polícia responsável por executar e incinerar corpos de desaparecidos políticos na época do regime militar. Hoje pastor evangélico, Cláudio percorrerá suas memórias a partir das intervenções de Eduardo Passos, apresentado pelo letreiro como psicólogo e militante dos direitos humanos.

Se resta em nós algum assombro após concebermos um contato com esse risco de temperatura, após imaginar a respiração consciente e comunicante de uma biografia como a que Cláudio encarna, nos perguntaremos aqui em que medida o filme Pastor Cláudio tornou esse assombro mote para criar uma forma de aparição à altura da complexidade dos atores em jogo. Até que ponto a tarefa de construir o filme com um adversário, um carrasco, um pastor e um homem, afinal – acompanhado por toda a sua contraditória franqueza – foi assumida com o fôlego que ela nos demanda ou enrijeceu-se numa cautela viciada por reproduzir formas de contato que mantivessem as águas quietas, a nau segura.

Falando em nau, na escolha do material dessa que conduzirá a travessia do filme, a economia de elementos foi concisa: aos dois homens que interagem e às paredes negras soma-se apenas o recurso da projeção que se alterna entre fotografias, filmagens, antigas fichas do DOPs – e essa opção abre o filme para uma espécie de zona intercambiável, na qual uma variedade de outras cenas da vida social, que se organizam no espaço de forma semelhante, se insinuam a comparecer. Entrevista de jornal, sessão de terapia, interrogatório de polícia, confissão religiosa, depoimento ao tribunal. Todos esses arranjos pairam entre a conversa e dão abertura para que possam ser recombinados infinitamente a depender do que precise ser acolhido ou provocado a cada instante. Pastor Cláudio, contudo, rejeita o experimento e opta por um método de abordagem bastante uniforme cuja atenção se direciona rigorosamente aos relatos que adquiram valor de documento.

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Assim, Cláudio Guerra é interpelado enquanto testemunha participante do aparato de perseguição e execução do regime militar. Suas informações secas e objetivas darão conta de nomes, datas e mecanismos de poder ocultos da ditadura. Com elas nos será confirmado que Nestor Vera foi barbaramente torturado pelo aparelho do estado, que o conluio entre militares, empresariado nacional e governo norte-americano nunca se restringiu ao apoio em ações oficiais ou influencia política em decisões estratégicas, mas articulou uma rede de cooperação que trabalhava silenciosamente, dia após dia, pelo êxito das práticas de espionagem, tortura, assassinato e obliteração de corpos ao longo do período.

De sua boca escutamos que os grandes fazendeiros simpáticos ao governo ganharam armas diretamente do Estado com incentivo da União Democrática Ruralista (UDR). Descobrimos que as gratificações clandestinas recebidas por funções extra-oficiais (tarefas como pendurar uma professora nua no pau-de-arara, atear fogo a um corpo mutilado e irreconhecível ou vigiar as reuniões de sindicato de um metalúrgico suspeito) eram movimentadas através de contas fantasmas dos agentes em bancos estaduais parceiros do regime. Confirmamos que a CIA e o serviço de inteligência inglês deram dinheiro e instrução aos militares por meio de cursos ofertados em terreno brasileiro para repassar métodos de tortura desenvolvidos nos seus respectivos países. E acessamos o fio de relato sobre uma seita de homens participantes do regime, ainda hoje em atividade, cujas reuniões determinavam os rumos do aparelho persecutório da época.

O conteúdo das informações trazidas por Cláudio, nos entregam à convicção de estarmos diante de um documento histórico. É nessa convicção que se concentra a energia investigativa do filme e sua razão de existência. Existir para comprovar um testemunho intimamente conectado com os conflitos que hoje se deflagram. Porque quando assistimos nacionalmente discursos nostálgicos à ditadura militar ganharem adesão amparados, sobretudo, numa ideia de homens íntegros e incorruptíveis comandando a nação, é preciso levantar memórias que atestem o quanto essa versão do passado não passa de uma fantasia tão ingênua quanto conveniente a determinados interesses em disputa no tempo presente. Ainda assim, para nos implicarmos efetivamente nessa batalha, a constituição e apresentação de provas já não se basta. Pois quando o véu cai, os inimigos se tornam mestres na arte de performar sua crueldade em imagens que não a minimize, mas pelo contrário, a torne palatável a quem assiste – matéria de contágio inclusive para nós que as replicaremos sentindo o mesmo gosto odiento que invadia a boca de quem as produziu. Se alguém duvida é só retomar a sequência que tornou presidente da república aquele que durante o impedimento de Dilma Roussef dedicou publicamente seu voto ao agente responsável por torturá-la durante o regime militar. Aqui, a exposição da perversidade como um fim em si mesmo pode sair um tiro pela culatra. Quem sabe, nesse momento, a tentativa mais frutífera esteja em fazer as imagens deles falharem. Tratando-os como sujeitos e não mitos.

No caso de Pastor Cláudio, tensionar os limites do tribunal, da confissão, da entrevista jornalística, fazer borrar os regimentos poderia ser uma operação proveitosa, mas não é levada em consideração. O personagem repetirá o que provavelmente ele já declarou em seu depoimento à Comissão Nacional da Verdade e o filme se contentará com isso. Tanto pelo rumo das perguntas quanto pelo que a montagem nos oferece, manifesta-se em Pastor Cláudio uma trava significativa na lida com o pedaço de humanidade que Cláudio carrega. Os afetos motivadores ontem e hoje, as reflexões formuladas interna ou externamente para dar conta daquilo que se praticava, e mesmo os desdobramentos imprevistos que a conversa adquiriria caso estivéssemos dispostos a correr o risco de perguntar aquilo que ainda não sabemos – ou, ainda mais perigoso, construir um saber em parceria com aquele que está diante de nós – são presenças sufocadas pelo filme. A despeito de um ou outro momento relâmpago, como quando o psicólogo pergunta a Cláudio se ele sentia medo e logo depois dá prosseguimento às perguntas de modo que nada precise mudar a partir dali, a interação o posiciona sistematicamente na condição de um banco de dados do qual extrairemos informações. Sua narrativa não trinca, não treme, não se contradiz, não nos entrega qualquer material mais intrigante à construção da imagem que constituímos dele e dos seus pares. A nau foi erguida, mas não se atreve a sair do seu ponto partida.

Expressando, na sua imobilidade, o medo profundo de que a separação entre a nossa posição e a dele se balance. Não à toa, a fotografia trabalha evitando que os dois homens se juntem num mesmo quadro, pois é nessa disposição que a distância entre os eles se torna exclusivamente imaginária. Ao mesmo tempo, são constantemente valorizados enquadramentos em que a luz da projeção, interrompida pelo corpo de Cláudio, desenha na parede a silhueta de uma sombra que fala – gesto emblemático da ânsia do filme por fixá-lo na sua condição obscura. Tal incapacidade de Pastor Cláudio de mover-se dos lugares que ele demarcou se vincula diretamente a uma espécie de institucionalização da cena – mordaça que acometeu documentários dispostos a retratar nosso momento político como O Processo (Maria Augusta Ramos, 2017) cuja mise-en-scène não consegue descolar suficientemente seu material daquele jogo de encenação que fora armado nas casas legislativas e que o próprio filme denuncia. Ou mesmo a feição legalista que boa parte da esquerda nacional assumiu ao prezar pela disputa judicial e o jogo republicano como as arenas de embate prioritárias em meio às lutas travadas de 2013 para cá. O pavor burocrata diante do curto-circuito.

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No caso de Pastor Cláudio, a incapacidade de desprender-se da institucionalidade que paira sobre a cena – debilitando a diferença entre a conversa que assistimos e entrevistas realizadas no contexto de iniciativas de governo como a Comissão Nacional da Verdade – desperdiça um momento raro de aprendizado daquilo que um inimigo politico pode deixar escapar. Ainda mais urgente do que registrar a exposição dos nomes e sem dúvida mais radical do que ratificar a não-aliança, filmar, como diria Jean-Louis Comolli ”a ameaça da aliança”. Ou seja, uma forma de aparição que considere o inimigo em sua inteligência e vigor, correndo todos os riscos que um gesto como esse pode conter [a exemplo dos pontos cegos do adversário filmado se incorporando aos pontos cegos da própria narrativa do filme como na experiência recente de Por Trás da Linha dos Escudos (Marcelo Pedroso, 2017)], ao invés de ceder ao espectador e a si próprio um afeto tão miserável como a mera crença de que somos um gênero de pessoas diferentes, inaproximáveis desse homem que acabamos de conhecer. Mesmo porque é provável que essa crença seja surpreendida pouco após o término da sessão.

Se podemos encontrar casos emblemáticos dos últimos episódios da política nacional que confirmam o desastre tático causado pela figuração monolítica de um inimigo, em Pastor Cláudio a armadilha dessa estratégia está pedagogicamente apresentada: Cláudio se manterá na sua posição soberana de narrador, confortável por não se deparar com qualquer pergunta que fissure a ordem dos acontecimentos previamente articulada e repetida por ele – lembremos que nosso personagem tem participado de programas de televisão e já escreveu um livro para relatar essas memórias trazidas pelo filme. Na outra mão, o entrevistador se satisfará com a estrutura dada dos relatos, posto que mencionam o horror que a obra anseia documentar. Quando nos damos conta, esse horror está em pleno acordo com a retórica de conversão evangélica nas quais existe uma relação diretamente proporcional entre o quão mais atroz tiver sido o sujeito antes da conversão e a prova do milagre divino. Cláudio atravessa o depoimento inteiro com uma bíblia entre as mãos e o gesto existe para não deixar dúvidas de que a emergência de suas revelações está muito mais orientada pela teleologia das narrativas individuais estimuladas nas igrejas neopentecostais do que pelas provocações do filme.

Ao abdicar do esforço criativo de inventar uma nova forma de acesso e às verdades que o personagem carrega, Pastor Cláudio não só ignora o poder de mobilização de um inimigo, mas bloqueia a sua sensibilidade a questões tão inquietantes quanto a condição humana dos sujeitos que levam à cabo atos sanguinários amparados no mesmo lamento comum que balbucia “eu estava obedecendo ordens”. Essa obediência cadavérica, – segundo Hanna Arendt esse era o termo utilizado por Eichmmann, funcionário público mediano e burocrata que obedecendo não só ordens, mas leis, enviou mais de milhão de judeus aos campos de extermínio durante a Alemanha nazista – não chega a se tornar assunto exceto por um momento quando Cláudio ensaia uma reflexão a respeito das suas bandeiras (a transição da bandeira de “obedecer ordens” para a “bandeira de Jesus Cristo”), mas que, por falta de estímulo acaba se evanescendo. “A justiça exige que o acusado seja processado, defendido e julgado, e que fiquem em suspenso todas as questões aparentemente mais importantes” escrevia Hanna Arendt na sua reportagem sobre o julgamento de Eichmann. As convenções do tribunal ordenavam a suspensão, que ainda assim teimava em ser inevitavelmente desacatada no decorrer do tribunal. Para o cinema, contudo, não existiria uma suspensão prévia de qualquer natureza a não ser aquela que nós mesmos nos instituímos quando subordinamos a nossa libido criativa aos ritos burocráticos.

Ao assumir a tarefa de exumar esse passado que não passou, carece ao filme abrir seu corpo para os ecos daquela astúcia guerrilheira presente em Iaras, Heleniras e outras companheiras que saberiam se atentar aos movimentos do inimigo, compreender o potencial investigativo de cada contato e jamais deixar de encarar o adversário nos olhos. Só abrindo o corpo para esses ecos é que um filme sobre o regime militar consegue romper a narrativa que acusa os militantes de esquerda da época de quererem apenas tomar o Estado para si tal como os militares terminariam por fazer. Pois há ecos que sussurram a história de homens e mulheres não apenas comprometidos em combater ou disputar um Estado autoritário, mas dedicados a colocar em circulação uma imaginação política capaz de nos fazer pensar sobre outras formas do que seria uma vida democrática. No cinema, essas outras formas tem menos o que ver com a institucionalidade e a burocracia – posto que são ferramentas úteis apenas à gestão do poder como o conhecemos – e mais com o risco, a coragem e a energia criativa (aquilo que Marighella em carta ao PCB certa vez nomeou de “elã revolucionário”). As imagens nascidas a partir desse ímpeto terão de reacender sua vocação para a curiosidade ao mesmo tempo que uma consciência brutal do perigo. E assim decidir com quais espectros desejam lutar.


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