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As culpas dos velhos e os erros dos novos

As inflexões mais cômicas de A Mula fazem-se evidentes nos momentos em que seu tema principal salta à vista: o descompasso entre as imagens preconcebidas que fazemos de alguém ou de algo, com os devidos papéis e lugares que estas devem ocupar no mundo, e sua materialidade ou existência objetiva que frequentemente as desloca. Um exemplo ilustrativo – o agente Colin Bates (Bradley Cooper) sabe que o traficante que procura na estrada dirige uma pick-up preta; ele passa por diversos carros como este, observando e comentando a fisionomia de quem o dirige para tentar decifrar o criminoso, até decidir-se por um que julga ter o perfil (de mexicano, mas o espectador sabe que ele está equivocado). O suspeito sai do carro assustadíssimo com a abordagem policial, e diz coisas como “por favor, não atirem”, e “estatisticamente falando, estes são os cinco minutos mais perigosos da minha vida” (pela narrativa, sabemos também da índole deste agente em específico, e que ele não se encaixa nas tais estatísticas). Os policiais pedem calma, o que só o deixa mais tenso, até que um deles pede em espanhol para ele respirar. Ele retruca, “não falo espanhol”. O brilhante da encenação de A Mula é este jogo de expectativas que ela cria e desfaz a cada instante como gatilho cômico e dramático, causando um grande desentendimento entre os personagens, constatando a impossibilidade maior retratada – a dos conhecimentos fáceis, rápidos e pragmáticos das coisas, a dos saberes atropelados e dos manuais de conduta que o mundo virtual e a internet no legaram.

É contra estes aspectos de um mundo em transição que Clint Eastwood se insurge, fazendo do seu próprio corpo a encarnação de valores e temperamentos que opõe-se a essa pressa – não atuava em filme próprio desde Gran Torino, com o qual este resguarda semelhanças (também do mesmo roteirista, Nick Schenk). Earl é, acima de tudo, uma figura démodé sem potências ou vontades de adaptação: perde o cultivo de flores artesanal para a venda na internet, tem dificuldades em manusear um celular, sua predileção de diversão é por estabelecimentos tradicionais à beira de fechar as portas, desconhece as palavras com as quais deveria se referir a grupos vítimas de preconceito – seu conservadorismo é sobretudo um gosto fetichista pelo old fashioned e uma leve desconsideração por novidades ou efemérides, numa espécie de valoração das formas mais tradicionais de transmissão do saber. É adversário das virtualidades contemporâneas, sempre retificando os seus déficits em relação à humanização, ao prazer cotidiano com a vida, ao conhecimento transmitido entre gerações, à sua capacidade de mapear informações e dados, mas incapacidade em resolver os dilemas mais básicos e de compreensões bem rudimentares de individualidades, circunstâncias, ou simplesmente sobre coisas básicas como trocar um pneu. No entanto, este passadismo não é letárgico ou um pé-na-cova – o tom revisionista de A Mula não poderia estar mais longe de um canto do cisne (Clint começa o filme plantando, e termina o filme plantando – pagando os seus pecados, mas ainda cultivando algo). Ironicamente, Earl se verá dedicando-se à lida com todas estas ferramentas e modos de operação (o carro novo, o celular onipresente, o horário apertado) para ganhar dinheiro e continuar a sobreviver, numa espécie de adaptação forçada, a um mundo ao qual ele sempre nutriu aversão.

O que traz força ao longa-metragem é menos a consagração do protótipo eastwoodiano do homem de crenças fortes, e mais o processo pelo qual tais certezas são, com tamanha facilidade, postas à prova e tornam-se, na mise-en-scène, incertezas, vulnerabilidades e a exposição sistemática de equívocos pessoais tão declarados. Há uma flâneurie do personagem central por um terreno de convicções opostas às suas – encontros que sabotam as imagens que fazia das coisas – e que ele se esforça dedicadamente em retificar, mas há também as lições que aprende ao longo do caminho. Menos o senhor irascível de Gran Torino, cujo ímpeto de mudança individual não poderia senão ganhar as conotações dramáticas de um martírio em nome do mundo; mais um bon vivant solitário, em alguma medida orgulhoso que sua experiência ainda tem valor no presente, e, por outro lado, disposto a ouvir e se adaptar às transformações que lhe são impostas. Não é à toa que se Gran Torino era um filme sobre salvar um bairro familiar (um microcosmos da velha América fechado a ser mantido intacto), este é um road movie (onde todo espaço é cambiante) sobre salvar a si mesmo e suas paixões.

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Se o road movie é essencialmente ferramenta narrativa do lançar-se ao mundo, ora palco da mutação individual do protagonista, ora ambiente hostil de desencontro e angústia, aqui estamos menos próximos de uma jornada de redenção (no primeiro caso) ou saga existencial (no segundo). O gênero é praticamente transformado em metáfora do fazer artístico no sistema hollywoodiano – o verbo dirigir referindo-se a dirigir um veículo tanto quanto dirigir um filme. Há o capital e o sistema de permutas envolvidos no trampo, os bandidos que o vigiam para que as viagens de Earl não fujam do script, os “surtos” de liberdade que, ironicamente, terminam por fazer do protagonista a mais confiável e invisível das mulas do esquema de tráfico (ao ponto de, num destes, abrir a mala, onde estão as drogas, na frente de um policial para lhe dar um presente). Diante dos cálculos de produção das viagens, o alter ego de Clint procura tempo para saborear as coisas com calma e resolver os dilemas com sua própria sapiência, o que lhe é frequentemente negado pela sistematização e virtualidade das experiências nesta liturgia mais moderna que a sua – problema elevado ao paroxismo nas centenas de ligações não-atendidas no leito de morte de sua ex-mulher. Enquanto os desenganos das representações se mostram como tema mais direto, este outro, sobre o abismo da experiência temporal entre estes dois mundos (a lentidão dos microcosmos bairristas da velha América versus a fluidez de um novo país) está lá mais subrepticiamente, sempre pautado por uma nostalgia do não-vivido. Isto é muito curioso vindo de um cineasta como Eastwood, para quem, ao longo de sua carreira, disseminou uma concepção temporal radicalmente oposta, e talvez justamente daí que advenha o caráter revisionista e a aceitação da própria culpa.

No universo de Clint, o tempo é sempre escasso para se fazer justiça às coisas, decisões de vida-ou-morte são tomadas em milésimos de segundo. Na maior parte das vezes, são produtos do acaso, não obstante toda a preparação na qual se engaja. É uma espécie de ethos eastwoodiano, quiçá herança da sensibilidade rudimentar dos westerns clássicos de Ford ou Hawks: a decisão do pouso forçado de Sully, o passeio relâmpago pelo zoológico em Crime Verdadeiro ou a arma de um terrorista que falha no momento decisivo de 15h17 – Trem para Paris. Há algo de um correlativo estético na forma como boa porção dos filmes de Clint apostam numa narrativa mais célere, fluida e intensa, um esforço de retificar ou comentar socialmente o mundo e as questões de seu tempo, mas de fazê-lo o mais rápido possível, em cenas dinâmicas, como se houvesse sempre muito a se falar e pouco tempo a se perder – a pressa é a própria marca da genialidade dos “heróis comuns” do diretor, e os atos calculados improdutivos, demorados demais para resolver os impasses que se apresentam. As tomadas rápidas de decisão são as únicas possíveis em qualquer instância, ainda que, eventualmente, não sejam as melhores (é o tema em torno do qual gira o julgamento de Sully).

Mas não há aqui espaço para a auto-complacência ou o elogio de si mesmo. Em A Mula, o protagonista toma consciência dos seus equívocos, e se entrega à justa condenação por eles. Não sem antes disseminar seus conselhos aos dois mais jovens. Se estes não reverberam em Rico (Victor Rasuk), cuja alcunha revela sua síndrome de Ícaro, porque está emaranhado nos quiproquós da disputa de poder, já no Agente Bates – aquele que talvez representa o próprio Clint Eastwood de antigamente, policial heroico e dedicado – ecoam como forma de identificação justamente quando, numa das cenas mais bonitas do filme, despidos das representações (não sabem que são caça e caçador), os dois tomam café-da-manhã juntos em um restaurante de beira de estrada. Contra o elogio da pressa, uma ética do relaxamento.

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E, no entanto, não é de modo algum da natureza da trama que vem o brilhantismo de A Mula. É dos modos de dramaturgia. Mesmo lidando com as cenas com certa celeridade, sua escrita cinematográfica não é por isto despojada ou atropelada, mas precisa e articulada, tamanha a capacidade de sua mise-en-scène em abarcar as contradições das situações em jogo. O ofício de Clint Eastwood de comentador social raras vezes revelou tão claramente, em sua encenação, a vocação arqueológica: nada que é dito pelas personagens pende para um dos lados na balança moral, mas, pelo contrário, são entrevistos como produto de uma experiência de vida, de uma construção social de subjetividades, as palavras sendo frutos de um modo de ser e estar no mundo – como sempre o foram nos melhores filmes do diretor. A Mula configura-se como um road movie de encontro de contrários, indivíduos com raízes e bagagens diferentes (que o filme frequentemente ressalta), e a encenação consiste menos em escolher uma ou outra como tônica, e mais em ressaltar a distância material e linguística delas. Earl avista uma família com o carro encostado na estrada e decide ajuda-los a trocar o pneu furado. “É bom estar ajudando a vocês, negros [negroes]”. A palavra evoca desconforto. “Preferimos ser chamados de pretos [blacks]. Ou seres humanos [people]”. A ambiguidade das cenas se tornam revelação da distância entre o que é dito, por quem, e o que cada um espera da imagem do outro.

Quem valora na obra o ethos que o artista expressa publicamente, para além dela, não terá muitas dúvidas sobre a leitura de que A Mula é um filme dirigido por um declarado republicano, e a expressão de valores morais em alguma medida conservadores. Haveriam até indícios disso a serem localizados nela. Mas uma obra de arte, em seus melhores casos, não é o espelho perfeito de um conjunto de crenças tanto quanto um árduo embate entre elas e o mundo, o ideal e o real. Não o fosse assim, para que ver filmes? Apenas para ver desenhado na tela aquilo no qual já acreditamos? Deveríamos aceitar a verdade de Jacques Tourneur: nem o mais inquebrantável dos seres humanos está isento de equívocos ou de ser, momentaneamente, vítima ou algoz por conta de suas aleatórias paixões. Somos sempre uma trágica equação, perpétua e irresoluta, entre o bem e o mal, o certo e o errado, o feio e o belo. Assentemos isto em outras bases: nenhum verdadeiramente grande filme é moralmente perfeito. Ele é uma coisa ou outra. Por que ou ele nos revela o que gostaria que o mundo fosse, ou uma parte do que o mundo é. Deveríamos aceitar a confissão de Clint: se errei, foi menos por má fé, e mais por pressa. Por estes motivos que tamanha franqueza do diretor é tão comovente – ela não é desonesta e, inclusive, nos permite discordar ou vislumbrar na mise-en-scène aspectos mais progressistas do que muitos filmes que se autodeclaram como tal. É por estes motivos que poucas obras americanas dos últimos anos atingem tão desconcertante nível de auto-exposição quanto A Mula e porque Clint Eastwood segue sendo um mestre incontornável.


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