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A Chance de Um Milhão de Dólares

Erasmo Carlos sempre foi uma espécie de “patinho feio” na história da música brasileira. Noves fora sua imagem de sujeito bonachão, coautor das canções que Roberto Carlos imortalizou, a narrativa consagrada de Erasmo é a de uma espécie de Pete Best ao contrário: o que permaneceu no lugar certo na hora certa, mas que nunca conseguiu devolver em sua própria carreira a complexidade que o amigo de fé, irmão camarada, esbanjou até se tornar uma caricatura. Em meados dos anos 1970, para um desavisado, Erasmo já parecia o apógrafo que Roberto viraria a partir dos anos 1980.

Nada mais injusto. A verdade é que o Erasmo setentista (e, sim, oitentista) gravou alguns dos melhores discos das décadas e, no resguardo de uma imagem ainda “rebelde”, contrabalançava o ultrarromantismo que Roberto Carlos diluía. Foram inúmeras as vezes em que a imprensa declarou a “volta por cima de Erasmo” – a mais notável quando lançou o hoje clássico “Erasmo Convida” (1980) e concedeu uma entrevista para Ruy Castro na revista Playboy. Como poderia “voltar” um artista que lançava praticamente um álbum por ano, quase todos excelentes?

Minha Fama de Mau (2018), filme de Lui Farias, é tão mal explicado e contraditório quanto o biografado. Não esclarece muita coisa se for visto somente pelos aspectos superficiais. Estão lá todos os elementos que lotam os shows do artista de saudosas fãs da Jovem Guarda: o Tremendão, a histeria pastiche da beatlemania – que era um pastiche das bobby soxers de Frank Sinatra, ou das fãs de Rodolfo Valentino – os carrões, a brodagem com o Rei. Acrescidos a esses velhos elementos, outros que são a cara do século XXI. Tim Maia, que antes era um elemento cabalístico na gênese dos rapazes, passou de maldito a coadjuvante luminoso. A prosódia carioca dos anos 1950 – não custava uma pesquisa – dá lugar à fala corrente da Zona Norte atual. Desde Cidade de Deus (2002) que o cinema brasileiro vem desaprendendo a recriar prosódias datadas. Zé Pequeno falava como um garoto do século XXI. Agora Tim Maia parece que, a qualquer momento, vai puxar o celular e repassar fake news no WhatsApp.

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Se abstrairmos liberdades lacradoras, conseguiremos chegar ao ponto interessante: a mítica Tijuca. A “Zona Sul da Zona Norte” foi berço daqueles artistas, mesmo os que não residiam lá, e existe toda uma tentativa de recriação do ethos tijucano. Mistura de classe média com lúmpen, mansões com turbas corticeiras, aos poucos a Tijuca foi estrangulada pela decadência da Guanabara, por isso olhá-la em ótima forma soa reconfortante. Logo chegaria um herói gordo e civilizador, Carlos Imperial, vindo de Copacabana, que ofereceu aos bárbaros uma chance no outro lado do túnel.

Imperial, recriado por Bruno de Luca, soa mais verdadeiro do que o Imperial porta-dos-fundos de Tim Maia (2014), vivido por Luís Lobianco. O mesmo não podemos dizer do próprio Erasmo, reinventado pelo galãzinho Chay Suede. Sorte do filme que Suede, além de bonito, é bom ator. Quase esquecemos que ele faria um perfeito Bruno Lomas – o Elvis espanhol – e causa estranhamento vivendo um tipo brasileiro, de família baiana, como Erasmo.

Segurando as pontas, Suede bate bola com Gabriel Leone, de Roberto Carlos, e Malu Rodrigues, de Wanderléa (?!?). O desfile de gente fresca, bonita, é intencional. Porém grande parte do charme dos ídolos (e da própria Jovem Guarda) estava justamente na naturalidade de suas personagens. Wanderléa nunca foi Sophia Loren, ou Brigitte Bardot. Era a “girl next door” versão mineirinha. Roberto mancava da perna mecânica. Erasmo, ares de quem nunca foi a Paris, devia ser malvisto à boca pequena pela juventude de Garota de Ipanema (1966). Fundamental imaginá-los nessa constante mudança do status quo através do talento. “Um homem é seu estilo”, diria o magrelo Sinatra, cercado por lascivas bobby soxers. Sem aceitar a precariedade e o provincianismo, o filme rouba parte do encanto, deixando o quesito “fora dos padrões estéticos, porém gênio” somente para o gordinho Tim Maia. Aguardo aflita o dia em que também vão transformar Tim em gostosão plus size.

E temos Bianca Comparato, igualmente perfeitinha, na pele de várias mulheres que passam pela vida do jovem Erasmo. A história termina com Bianca, de forma poética, e evita as profundezas nubladas dos anos 1970, que são o elo perdido, o verdadeiro apogeu – do homem e do artista. Continua faltando mostrarem em imagens a vida de Erasmo entre festivais bicho grilo – como registrado no documentário Ritmo Alucinante (1975) – e canções aristotélicas, em que a Tijuca assumia formas de “Penny Lane”, como “Largo da Segunda-Feira”. Sobrará ainda assunto para o Erasmo dos anos 1980, 90, para as tragédias que nem são mencionadas.

Por mais que divirtam, alguns revivals biográficos – livros, filmes, shows, entrevistas, quermesses – da turma da Jovem Guarda pecam sempre pelo aspecto chapa branca. Mesmo quando almejam parecer “sinceros” é uma sinceridade superficial, escolhida a dedo. Em voice over, o domesticado Erasmo chega a se desculpar pela barra pesada “Tijuca, Zona Norte”. Duvido que um moleque tijucano da época pedisse desculpas por qualquer coisa. Falasse um troço desses da Tijuca na frente daquela turma, Chay Suede terminaria moído nas sarjetas da rua do Matoso. Que falta faz no Brasil a cultura das biografias não-autorizadas, sem a benção de anciãos refastelados em coberturas da Vieira Souto.

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Interessante estabelecermos paralelo entre o livro e o filme homônimos de Erasmo e o livro autobiográfico de Wanderléa, lançado em 2017. Contando com o trabalho de Renato Vieira, um dos melhores jornalistas e pesquisadores do país, Wandeca mostra que também visitou céu e inferno, que conseguiu reinventar-se “Maravilhosa” – ouçam o disco de 1972 – e abraçou a maturidade artística, pessoal, feminina, fazendo por merecer uma versão de si mesma para os cinemas. Queremos Wanderléa inteira, pois sua vida é maior do que as jovens tardes de domingo.

O mesmo poderíamos dizer de Minha Fama de Mau: essa foi a “chance de um milhão de dólares” para Erasmo finalmente se libertar dos paradigmas. Paradigmas, como neuroses, são mentiras esquecidas que ainda insistimos em acreditar. Só que tudo virou imensa zona de conforto, celebração com auxílio luxuoso. O Tremendão voltará ao RC Especial no fim do ano. Vão cantar “O Calhambeque”, renovar os votos de companheirismo e senhorinhas baterão palmas ensaiadas. À la recherche du temps perdu.

Roberto Carlos foi abduzido ali por 1987, mas Erasmo – e Wanderléa – prosseguem fazendo shows espetaculares. Confesso que chorei na apresentação de Wandeca em julho de 2016, no Teatro NET Rio, recriando Feito Gente, seu LP de 1975. Nessas ocasiões temos o deslumbre do quanto eles valem a pena. Já ao pregarem para convertidos merecem, quando muito, apenas um sorriso de simpatia. Minha Fama de Mau provoca exatamente esse sorriso. Às vezes, um esgar de fastio.


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