Tim Maia, de Mauro Lima (Brasil, 2014)

março 1, 2015 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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O dever de fazer propaganda desse conhecimento
por Andrea Ormond

Parodiando Lúcio Cardoso: Tim Maia não era um homem, era uma atmosfera. Podia ser o gênio da música, a voz mais bonita do Brasil; mas, antes de tudo, uma personalidade. No início dos anos 1990, acabou redescoberto por uma nova geração adolescente – a minha, hoje a dos trintões – que entendeu a beleza transcendental daquele mulato obeso, suarento e intérprete de hits duvidosos. Junto com ele, reaprovou-se Jorge Ben (que cunhou o epíteto de “síndico” para o amigo), revalorizou-se a melhor fase de Caetano Veloso (a de Transa) e, sem querer querendo, criaram-se novos paradigmas para a história da música brasileira, que o tempo só faz repetir.

Nas eras pré-Internet, havia uma informação oculta em Tim Maia que só uma boa pesquisa nos sebos ou revistas antigas poderia desvendar: o crooner das dores de corno, toda semana alucinando pelos subúrbios, tinha atrás de si uma história fascinante e discos memoráveis. Então foi juntar os pontos e curti-lo ainda vivo e com (relativa) saúde. Ah, e assistir às suas inúmeras entrevistas hilárias, que ele dava a rodo, grande parte delas hoje eternizadas no YouTube.

Em Tim Maia, dirigido por Mauro Lima, fiquei com a sensação de que o diretor e roteirista quis ir direto ao assunto. O que interessa é o artista quando jovem cão e os anos 1960 e 1970 como um fetiche inesgotável. O coroa dos 1980 e 1990 não merece nem cinco minutos de explicações. Interessante que o filme sabe do que está falando. A recriação de época foi tão competente e caprichada que, de fato, estamos no século XX. Um deslize aqui, outro acolá: Elvis serviu o exército na Alemanha, nunca pisou na Coréia. Roberto Carlos pode ser um imbecil, mas George Sauma o faz parecer muito pior. O semideus botafoguense Carlos Imperial (outro homem-atmosfera), na falta de carisma de Luis Lobianco, emula um personagem do Porta dos Fundos.

Só que de repente aparece um Tim hippie saracoteando pelo Shopping dos Antiquários, em Copacabana, e a gente fica meio aéreo, meio bobo de felicidade. Eu não via a rampa do Shopping dos Antiquários no cinema brasileiro desde Dedé Mamata (1986). As moças se beijando em Londres, uma Tijuca de fábula, os livrinhos do Universo em Desencanto em todo o seu esplendor. Faltou apenas o Sig do Pasquim, o Benito di Paula cantando aquela música das borboletas ou um pulo nas dunas da Gal e provocar-se-ia no espectador uma íntima psicose. Alô, alô banda Vitória Regia: certas evocações do passado funcionam melhor que ácidos sunshine para entreter o respeitável público. Marxistas materialistas dizem que a história retorna sempre como farsa. É errado: ela pode retornar também como esquizofrenia hebefrênica, melancolia, conforto pueril.

Sebastião Rodrigues Maia era filho de um mundo que perdemos e é esse mundo pelo qual a câmera se apaixona, em uma bonita declaração de amor. Se apaixona tanto que comete o pecado de esquecer sutilezas. Uma delas, o humor carioca finíssimo do protagonista. Robson Santos e Babu Santana o transformam em um sujeito amargo, agressivo em demasia, com uma bizarra e ocasional prosódia paulista (?!?) que me deu ganas de levantar indignada da cadeira e cantar o hino do América tijucano. É nesse ponto que o salto temporal – mais ou menos de 1978 para a morte, no início de 1998 – mostra-se falho: onde foi parar o mito do Circo Voador, que faltava aos shows de Chico Recarey, arfante candidato ao Senado, que contava em entrevistas sobre a operação que havia feito nas partes baixas? O Tim Maia gozador, residente no Barra Palace, atolado em processos, explica muito de porque estarmos ainda interessados em sua biografia, passados 16 anos daquela triste noite em Niterói, quando todas as contas chegaram ao mesmo tempo.

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Um charuto às vezes é só um charuto, e um filme, só um filme. Nelson Motta, autor da biografia que serve de base para o roteiro, já sugeriu que a produção é apenas uma entrada para o som e o sonho do artista. Quem quiser saber mais, vá se divertir procurando. Porém é de se estranhar as idealizações excessivas. Nem em seus melhores triathlons, regados a pó, whisky e bauretz, o desajeitado gordinho conseguiria fidelizar um chuchu do naipe de Alinne Moraes. Cauã Reymond de Fábio também é excessiva bondade com o vilipendiado escudeiro do gênio. O som e o sonho eram habitados por porra-loucas e gente como ele mesmo. Forçar rostinhos globais nos papéis-chave rouba um bocado da sinceridade Maia: aquela que afirmava que gordo quando beija não penetra, ou que dizia sem escrúpulos ter levado um “alce canadense” de alguma “cumadre” nas quebradas da vida.

Outros momentos são de sinceridade absoluta, beirando o politicamente incorreto. O jovem Tim discursa sobre sua condição de mestiço, alienado das questões raciais. Lembra certas falas de Jimi Hendrix ali por volta de 1967, 1968, antes de ser abduzido pelos Panteras Negras. A questão é que, no outubro dos anos – de novo e de novo pesa a ausência desta fase – Tim articulou um discurso sobre a condição do negro bastante afirmativo (debochado, caótico; ao seu feitio). E a impressão clara é que o mais subversivo dos artistas da nossa música popular viveu sem se preocupar com isso, flutuando acima de todos os grilos possíveis. Boba mentira.

Ninguém deve deixar de buscar a imunização racional por conta dos detalhes terrenos. Fim das contas, Tim Maia é um belo espetáculo. Coisa limpa, coisa pura. Mensagens de um lugar superior. Os tempos são de mediocridade bem-comportada e acreditar em sujeitos corajosos faz bem ao fígado. Tim Maia era um desses. Mauro Lima quer celebrá-lo e ao seu tempo. Não à toa, “Você” é a canção que encerra os créditos. “Não vá embora, vou morrer de saudade”, diz a letra. O prazer de rever Tim, de ouvi-lo e recriá-lo em uma liberdade psicodélica, enriquece este combo iconográfico. Tenho certeza de que ele gostaria do filme e chamaria na chincha o diretor e roteirista: “Ô, Maurolima, assim você me complica! Vou ter que consultar meus advogados!”.

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