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O fundo do ar entre duas carrocerias

Logo que a greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, bloqueou inúmeras rodovias do país e se fez assunto incontornável – por efeito cascata, percebida no desabastecimento de produtos e nas filas de carro infindáveis por combustível –, muitos interrogaram sobre o locaute articulado pelas empresas distribuidoras, instrumentalizando os caminhoneiros como “massa de manobra” de intenções patronais na diminuição do preço combustível. Imbuída da postura crítica que “vê aquilo que está por trás das aparências”, essa versão deu a tônica para que setores do campo da esquerda se distanciassem e não se implicassem no turbilhão de informações atravessadas da greve, que se expandia pelo território travando a cadeia de distribuição, sem centralização ou liderança identificáveis.

Como não trazer nessa enunciação uma espécie de injunção sobre a participação dos caminhoneiros como analfabetos políticos, incapazes de realizar o exercício político de tomarem para si a tarefa de ditar o ritmo e deslocar a visibilidade sobre a ordem geral de funcionamento das coisas? Em meio ao embate de narrativas e realidades paralelas que tomaram o ambiente político brasileiro, como então inserir um filme como Bloqueio, filmado em três dias, montado em outros dez e lançado dali quatro meses em plena campanha presidencial? Onde está o acontecimento e onde está o filme, e como não confundí-los a todo momento para se pensar obras que tematizam assuntos de escala nacional? Como um filme feito nessa velocidade pode se descolar do imediatismo?

Muito foi dito aqui sobre o esforço em dar forma aos recentes acontecimentos da política nacional (aqui nos textos de Rodrigo de Abreu Pinto; Patrícia Machado e Andrea França). Em um ambiente de recepção em que todos somos especialistas da política nacional (Juliano Gomes traz ideias sobre o atual ambiente de recepção no seu texto sobre o Divino Amor), cada tentativa em elaborar em filme sobre esses grandes fatos é de prontidão confrontado com o argumento do ideológico, da parcialidade, da imprecisão, e mesmo da desonestidade. É sob essa régua que os vários filmes que abordam o impeachment de 2016 são confrontados no debate geral, entre mídias sociais e imprensa. As imagens desses acontecimentos nunca estão sozinhas; elas estão sempre acompanhadas de outras imagens, palavras e molduras que permitem a circulação em determinados ambientes e constituem sensos comuns que definem o que pode ser dito sobre, e como devemos ler essas imagens.

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Bloqueio experimenta outra postura, ou talvez, de pressupostos incertos, em que não se trata de definir onde situar a greve dos caminhoneiros, entre sua legitimidade ou dissimulação, entre o bolsonarismo ou a tomada de consciência. Se trata mais simplesmente de tomar o impulso de ir até um ponto de bloqueio, em Seropédica no Rio de Janeiro, ligar a câmera e o microfone, e encontrar tudo ao mesmo tempo muito. Os modos de fazer do bloqueio, a estética das falas, bandeiras, palavras de ordem, orações e celebrações musicais. Entre a espera messiânica de algo que não vem e a certeza viva de participar de uma brecha do possível, em que depois disso não existe volta.

As cartelas iniciais anunciam que a equipe de filmagem chega no sétimo dia de greve. No primeiro plano do filme, vemos através do vidro dianteiro do carro que avança pela estrada vazia. Do horizonte, começam a surgir caminhões parados no acostamento. Um, dois, e então muitos: o carro chega ao ponto de bloqueio e manobra para estacionar, balançando a câmera e revelando o interior do carro.

Três parceiros instalam um chuveiro na carroceria do caminhão, enquanto explicam a reivindicação de diminuição do diesel; alguns fazem churrasco, outros penduram as roupas. O hino da Independência – “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil” – sai dos alto falantes de um porta-malas, as bandeiras verde e amarelas são estiradas nas janelas ou envolvem os corpos, adesivos bem produzidos pedem intervenção militar, a oração-jogral clama a cura do país, a teoria das urnas fraudadas circula nas conversas. Os realizadores interpelam alguns personagens, perguntam o que esperam dos militares, eles dizem ser a única opção. Eles também se colocam diante da câmera, mandam recados para “a nação”. Há ali um corpo vivo de interações entre muitos motoristas de caminhão, de evidente maioria masculina, “que deixou sua família, para dormir na beira de estrada e mudar o país”.

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Está tudo ali. Todo o simbolismo bolsonarista está presente, e é possível imaginar uma reportagem da TV Folha com um tratamento breve que desse conta da iconografia e falas destemperadas, com brevíssimas e entrecortadas entrevistas, dando foco aquilo que se tem de mais alucinado. Mas ali onde a reportagem cortaria para a próxima fala “significativa”, o plano de Bloqueio dura, perde o foco, reenquadra, filma mais alguém que chega e quer falar, deixa o silêncio acontecer e espera o personagem voltar a falar sem um nova pergunta. E então o caminhoneiro que acaba de dizer que não vê outra opção que não a intervenção militar, diz em seguida que tiraram a Dilma por muito menos do que o Temer fez. Ou o outro, vestido de couro e óculos escuros, chama os políticos de fascistas, e em seguida lança um “Brasil acima de todos”. Uma fileira de homens está diante de alguém com um celular, e o jovem no meio convoca a todos a continuarem a greve. E então puxam em coro “Fora Temer” até que outro caminhoneiro o interrompe e pedem para eles saírem da via, para não terem problemas.

A presença da equipe no bloqueio coincide com a chegada dos militares e, na relação entre os manifestantes e militares, encontra sua estrutura narrativa. No primeiro dia, um áudio de whatsapp anuncia que eles agora “são responsabilidade do exército, parceiro…”. Em um dos poucos momentos em que a imagem se desvincula do som direto, vemos uma sequência de pessoas no celular, como se ouvindo esse mesmo áudio. O exército estaria pagando as mercadorias do caminhão, fornecendo refeições aos grevistas e enviando as mercadorias escoltadas até Salvador. Quando os tanques chegam, os personagens se colocam na frente e tiram selfie, o tanque abaixa o farol para não atrapalhar a foto. Já no segundo dia, um representante da Polícia Rodoviária Federal os notifica de multa diária de 10 mil reais por dia, mas que “se os senhores não quiserem sair, ok, mas infelizmente será aplicada a multa (…) Quem não quer ser multado, aproveita esse intervalo nosso de conversa e já começa a sair”.

Avança no espaço a presença silenciosa dos militares – vários garotos muito jovens de cara fechada e armados com fuzis, rondando entre as carrocerias. Helicópteros monitoram a área. Dois colegas falam em pressão psicológica para saírem. Outro grupo diz que não vai ficar para tomar bala. Um caminhoneiro de gorro reclama da abordagem do oficial e o militar lhe sugere uma ouvidoria e lhe dá as costas.. O jogo de posições se redistribui e adensa a tensão.

Bloqueio usa de estratégias que reportam a tradição do cinema direto – grosso modo, câmera que observa sem se anunciar, passa silenciosa entre situações, sem formulações de uma voz narradora que lhe atribua uma leitura coesa, montagem que evita intervenções no vínculo entre imagem e som direto. Em suma, uma aposta de que o que acontece diante da câmera possui uma intensidade que dispensa interpretações, evidenciando por si só as contradições de um mundo que se apresenta para a câmera.

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Essa estratégia já foi vidraça do argumento de que não há imagem sem ponto de vista, de que o enquadramento sempre é uma decisão de recorte, de que forjar espontaneidade diante da câmera é escamotear as dimensões de encenação que se configuram na presença do aparato de filmagem e, no limite, faltaria honestidade do realizador que não se anuncia. Esse entendimento participou dos desdobramentos históricos do documentário e produziu novas formas que pensaram esse problema através de estratégias reflexivas. Mas hoje, depois de tantas voltas de descrença e crença na imagem, é curioso que, paradoxalmente, quem anuncia esse argumento percebe sim esse ponto de vista do realizador por trás das câmeras, e o denuncia prevenindo o engano dos desavisados.

Então como Bloqueio constrói o olhar sobre o que encontra? É através das durações, proximidades e distâncias que o filme consegue dar o salto da reportagem e estranhar as narrativas. É quando adere a alguns personagens e âncora ou desloca nosso olhar – como a jovem motorista entre os tantos homens de meia idade, que se entrepõe diante dos tanques para tirar selfie e se pergunta se “eles estão aqui para tirar a gente ou proteger a gente?”. Estratégias de identificação que estabelecem uma relação problemática com os personagens, contradizem a expectativa do olhar, desafinam a coesão dos discursos sobre a greve e desestabilizam o juízo rápido.

São questões que atravessam também o debate público francês em torno dos coletes amarelos, que colocam bons problemas sobre a relação da esquerda na relação com o coletivo difuso de manifestantes, e nos botam a reflexão sobre a identidade do trabalhador em um momento de passagem do mundo do trabalho, em manifestações que escapam da lógica sindical e partidária. Empresto desse debate perguntas postas por Julien Talpin e Jaques Rancière.

Bloqueio é um entrave para o espectador que se satisfaz com o “Fora Temer” e rechaça o “Brasil acima de todos”, porque na ansiedade da identificação e legibilidade, o que está em jogo é justamente a própria identidade do sujeito histórico da esquerda. Ante a falta de qualquer esperança revolucionária, a intervenção militar toma o espaço no sentimento de abandono. O gesto do bloqueio é a um só tempo movimento e também suspensão, onde o caminhoneiro abandona o trânsito de sua ocupação solitária e encontra um coletivo paralisado, em que experimenta aquilo que não é e pode ser, botando no centro da visibilidade o abismo entre os que seriam capazes de governar dos que não seriam, e também entre aqueles que reivindicam lhes representar mas já estão tão longe. Na suspensão do olhar do bom senso crítico e na indeterminação dos efeitos, Bloqueio consegue chegar um pouco mais perto.


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