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Coração no olho

Um bandido de meia tigela, uma cobradora de ônibus cansada de aguentar desaforo e uma aspirante a gênia do crime armam um golpe pra acertar a boa de uma vez por todas e meter o pé. Ao redor do trio principal, uma porção de gente toca a vida no bairro Laguna, entre juntar dinheiro pra trocar de carro e vingar a morte do filho assassinado. A crônica prosaica encontra o filme de ação, como já era o caso nos dois curtas cujos personagens fazem parte do mesmo universo dramático de No Coração do Mundo: Contagem (Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2010) e Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides (Gabriel Martins, 2011). Mas se Contagem era um filme memorável – no jogo de cena, no tratamento do espaço, no inventário das prosódias – a despeito de uma trama que concentrava excessivamente a atenção do espectador na função de decifrar as pistas narrativas, em No Coração do Mundo o apego à trama é rigorosamente descentrado por uma energia dispersiva no atacado e intensiva no varejo. A promessa do desfecho está sempre lá, assegurando o andamento, mas o acontecimento central é sistematicamente adiado e o filme desvia, se bifurca, quase para para tomar um café ou fumar um. A cada desvio, no entanto, a dispersão se transforma em concentração: quase todas as cenas se resolvem num único plano, que adensa a atenção no jogo de olhares, no embate entre os atores, na expressividade da geografia.

Na boca dos personagens, Laguna é fim de linha, bairro feio da porra, lugar de onde só se quer escapar na primeira oportunidade. Mas na carne de No Coração do Mundo, desde os primeiros momentos, Laguna é um território imantado. Já nos créditos iniciais, a música soa alto enquanto a montagem estica o retrato, mete uma câmera lenta, como se fosse custoso desapegar de cada um daqueles rostos, daquelas lajes, daqueles muros de chapisco. Mas nesse cinema, desde Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010), não há nem sombra daquela contemplação desafetada e autossuficiente que fez a glória passageira de tantos filmes brasileiros recentes empenhados em transformar a periferia em aquário, nem muito menos daquela outra cosmética devotada a fazer dela um inferno colorido de violência palatável. Só faz sentido filmar um muro se do portão sair um André Novais Oliveira versão regueiro, enquanto o plano prepara o desfecho mortífero de Beto (Renato Novaes). Só interessa descortinar o deslimite entre as casas periféricas numa panorâmica se houver não apenas a voz de uma mãe convocando uma menina que brincava com uma tartaruga usando uma máscara de cachorro – de novo uma bela homenagem a Killer of Sheep (Charles Burnett, 1977), como tantas vezes na filmografia da Filmes de Plástico –, mas uma fatia da trajetória de Marcos (Leo Pyrata). Por outro lado, só importa filmar o percurso de Ana (Kelly Criffer) e Marcos até a laje de casa pra uma conversa decisiva se a câmera puder se deter, por um instante que seja, na cantoria religiosa no quintal da Dona Fia (Gláucia Vandeveld). Só faz sentido narrar a gênese do plano cabuloso de Selma (Grace Passô) se couber também a deliciosa história do nascimento do filho de Vitória (Ana Lúcia Campos), ou a breve intervenção de um Geraldo Veloso convertido em mordomo. Em No Coração do Mundo o filme de gênero empresta o calor da ficção para a observação do cotidiano, no mesmo movimento em que a crônica é o que imanta o arco ficcional da ação.

Em Temporada (André Novais Oliveira, 2018), a ação era reduzida aos deslocamentos no espaço, enquanto o silêncio era o jeito de lidar com essas palavras entaladas na garganta, esses corpos que guardavam um drama interior que o cinema só podia tatear. Em No Coração do Mundo, acontece uma porção de coisas – briga, tiro, perseguição motorizada – e fala-se muito, o tempo todo. Mas essa expansão a que o filme de gênero obriga é sempre contrabalançada por uma atenção à espessura das prosódias, por um mergulho no espaço entre a voz e a boca. Por vezes a palavra decisiva custa a sair, a frase se arrasta num murmúrio quase incompreensível, cuja tradução formal mais eloquente é o extraordinário idioleto anasalado de Leo Pyrata.

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Desde o título, desde o prólogo – o aniversário de Marcos na praça do bairro, com direito a serviço de telemensagem –, o filme tem de se haver com um sentimentalismo latente que se derrama sobre tudo, da trilha sonora aos diálogos, da direção de arte às situações narrativas. Em várias ocasiões, tudo parece prestes a ruir num distanciamento cínico (nas mãos de outros cineastas, o prólogo talvez virasse puro paternalismo ou, pior, curtição com a cara dos personagens) ou a desandar num melô nostálgico, digno da obsessão do cinema brasileiro recente pelo karaokê. Mas o filme é formalmente vigoroso o suficiente pra desviar dos buracos e cavar um outro caminho. Se o cinema de Gabriel Martins, desde Filme de Sábado (2009), é governado por uma necessidade imperiosa de exacerbar o artifício no quintal de casa, aqui o encontro simultâneo com a grandiloquência obrigatória do filme de assalto e com a gravidade do drama íntimo dos personagens resulta em achados novos. O monólogo que dá título ao filme é piegas até o talo, mas o fundo falso, a direção de arte pronunciada e o movimento da câmera que nos faz ver o plano na telinha de um monitor sobrecarregam a cena de mediações, até o ponto em que, na décima dobra maneirista da encenação, podemos finalmente escutar o que Selma tem a dizer. A sequência do “Clair de Lune” em Alma Corsária (Carlos Reichenbach, 1993) ganha um remake à altura.

Essa corda bamba estética só funciona porque em cena há um elenco e uma direção de atores à altura da empreitada. Se o cinema de Maurílio Martins – de Quinze (2014) a Constelações (2016) – sempre apostou todas as fichas no jogo da atuação, é notável como, filme a filme, o grupo de atores que se consolidou ao redor da Filmes de Plástico – tanto os com formação teatral quanto os que começaram a atuar já nos trabalhos da produtora – cresce e assume desafios cada vez maiores. Só uma crítica refém de um palavrório condescendente baseado na “autenticidade” é capaz de ignorar a sofisticação atoral de uma performer paradigmática como Maria José Novais Oliveira: desde a cena com o fortão da academia em Quintal (2015) até o aniversário de No Coração do Mundo, sempre a encontrar um jeito novo de contrariar drasticamente o que se espera da entonação, sempre a corroer por dentro toda expectativa sobre o corpo de uma senhora de idade na periferia. Mas aqui há também um passo noutra direção: o elenco principal tem de lidar com um desafio e tanto, que é abandonar momentaneamente o regime da conversa informal que caracterizou esse cinema até aqui – esse terreno onde uma personagem como Brenda (MC Carol) brilha soberana – para dar voz a monólogos dissertativos, como o momento em que Selma vocaliza a teoria expressa no título. Com raras exceções, o elenco é tão bom que faz com que a exuberância vocal e corporal de uma atriz maiúscula como Grace Passô (a explosão na cena final no carro) se torne um momento entre outros. Ana, no ônibus, a falar sobre a vida passando pela janela: o diálogo meloso tem tudo pra fazer a cena desandar, mas a embocadura de Kelly Criffer encontra um jeito de domar o clichê. Bárbara Colen e Grace Passô conversando na rede: o plano longuíssimo, arriscadíssimo para um filme de ação, só não perde a energia porque a cada vez que o cigarro da cena ameaça apagar, uma das atrizes relança a chama do jogo. Numa cinematografia recente que muitas vezes transformou o plano longo fixo num automatismo, foi preciso um heist movie pra redescobrir as potências de uma conversa.

Se o gênio estranho de Ela Volta na Quinta (André Novais Oliveira, 2014) consistia em fabricar ilhas de calor no coração duro do filme – os ângulos frontais, as composições planimétricas, o quase obsessivo rigor arquitetônico –, o de No Coração do Mundo é diferente. A empreitada é soterrar debaixo de toneladas de emotividade – a trilha sonora sentimental que pontua os climas, o charme do sotaque, os lugares-comuns dos diálogos, a câmera suave à altura dos olhos – a natureza duríssima dessa história e desses personagens, que só emerge em momentos precisos pra nos puxar o tapete e nos devolver ao chão desse país arruinado. Numa cinematografia que se acostumou a uma simpatia pelo fracasso (os filmes de busca em que, quanto mais a estratégia der errado, melhor; as paródias que, de saída, pervertem o filme de gênero na precariedade dos meios), foi preciso apostar numa ficção maiúscula, construir um filme de gênero por vezes convincente, chegar bem perto de acertar a boa – para que a derrota voltasse a doer.

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Marcos, o incorrigível crianção, diz à namorada Ana que está “ficando pra trás”. O ritmo do mundo é acelerado demais para esse bandido com o coração de ouro. A energia se desequilibra entre o desejo dos personagens de construir para si uma ficção disparatada para escapar de um cotidiano hostil e a certeza doída de que o buraco é sempre mais embaixo. O tempo inteiro o coração no olho de No Coração do Mundo – uma víscera sofisticada, a quilômetros de distância de qualquer “verdade” imediata ou automática – bate fora do ritmo, entre a expansão e o retraimento, entre a necessidade de construir uma dramaturgia de ação e o gosto pela deambulação na rua de casa, entre a palavra que precisa ser dita e a voz que a impede de sair por inteiro. No Coração do Mundo é a invenção de uma disritmia.


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