readers-cabecalho

Primavera, verão, outono e inverno

James Benning tem proposto a cada novo projeto um conceito simples e explícito, cuja execução desconcerta por sua literalidade. Os quatro planos em que consiste Readers, seu filme exibido este ano no Festival Ecrã, mostram sempre uma única pessoa lendo um livro, em casa, parada em silêncio, durante cerca de meia hora cada um, filmados de um ponto de vista fixo. Um trecho de cada livro é exibido em uma cartela logo depois de cada plano. E é só. A proposição conceitual do filme é, assim, obtusa e inequívoca como um fato. A característica mais marcante do seu formato é o monomorfismo, a ausência de segmentação e ordenação desigualada. O filme é um todo cujas partes são equivalentes, internamente saturadas e indiferenciadas, nenhuma mais importante que nenhuma outra. A recusa da modulação é constitutiva do trabalho: nem a definição das durações, nem a ordenação dos planos, nem composição interna da imagem permitem o estabelecimento de diferenças de acentuação, variações de intensidade e relações de hierarquias formais. O filme é plano, como água parada.

A proposta torna Readers um filme facilmente transmissível como ideia. A sua simplicidade permite que o espectador deduza o formato do todo prontamente durante a sessão. A maior parte dos espectadores talvez já entrem na sala conhecendo antecipadamente a proposição, sabendo, portanto, o que irão ver nas próximas duas horas. O início de cada plano reproduz, ainda, a previsibilidade do todo na escala de cada uma das partes. Cada plano informa, imediatamente, o que será visto pela próxima meia hora: este leitor, agora este, depois mais este, por último este outro. Sabemos que eles permanecerão parados no mesmo lugar, com o livro em mãos, o tempo todo, e que nada de extraordinário pode acontecer. A consciência do formato do todo se mantém constante durante toda a projeção. Ela permite que saibamos sempre onde nos encontramos em relação ao início e o fim do filme, como se estivéssemos diante de um relógio que marcasse o tempo a cada meia hora, cujo curso seria tão inalterável quanto previsível.readers-02

A primeira questão que o filme coloca é então sobre as razões para vê-lo integralmente, uma vez que a redundância lhe é constitutiva. A consciência do formato torna-se, na verdade, o fundo indiferenciado que permite dar relevo à diferença, o ponto de referência pelo qual a menor flutuação pode ser medida. O foco de interesse do filme reside, justamente, na não coincidência entre conceito e experiência. O desafio posto é a expansão virtualmente infinita deste intervalo.

A leitura é tida comumente como uma atividade do espírito, que se desenrola no tempo, antes que no espaço. O leitor seria aquele que, absorto no texto, esquece seu próprio corpo. O que observamos a cada plano do filme, contudo, é uma certa performance corporal, que tem sempre lugar em um espaço determinado. A performance é a da leitura solitária, privada, realizada no conforto do lar. Os leitores são rostos mais ou menos conhecidos, escritores e artistas de quatro gerações diferentes: Clara McHale-Ribot, Rachel Kushner, Dick Hebdige, Simone Forti, apresentados segundo a ordem de nascimento. A delimitação do campo revela muito pouco sobre os personagens, fora a posição que preferem ler. MacHale-Ribot, a mais jovem, encontra-se sentada no sofá com as pernas cruzadas, a coluna curvada sobre um romance, à vontade, como quem tem ainda o corpo flexível o bastante para qualquer posição ser confortável. Kushner está deitada numa cama de casal, uma aliança no dedo assinala um esposo ausente. Hebdige senta-se no sofá, coluna ereta, livro sobre os joelhos, como quem estuda seriamente. Forti encontra-se na sala de estudos, o livro aberto sobre a mesa, no único plano em que podemos ver uma estante de livros no mesmo ambiente. Qual a relação entre a postura que assumimos e o livro que lemos, o lugar que escolhemos e a experiência da leitura? Albert Manguel colecionou as confissões de leitores pela história a respeito de suas posturas de preferência, suas regras particulares, todo um saber difuso sobre as comunicações entre corpo e espírito, que o filme parece sugerir, discretamente.

A consciência da leitura como performance corporal é constitutiva da própria história da leitura. O ato de ler era um rito social na Antiguidade e no Medievo, a ser realizado sob os olhares e ouvidos dos outros, conduzido não apenas pela voz, mas pelo corpo todo do leitor. O corpo transforma com sua presença o texto em palavra viva. A transformação da leitura de uma cerimônia pública para uma atividade majoritariamente privada é em grande medida uma marca da modernidade, quando a leitura silenciosa e individual tornou-se disseminada. A figura do leitor solitário surge no Ocidente como um personagem intrigante, cujo recolhimento silencioso tende a se confundir com a própria ideia de vida interior. “Quando ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu coração procurava o sentido, mas sua voz ficava em silêncio e sua língua era quieta”, escreve Santo Agostinho, com espanto, a respeito de Santo Ambrósio, em uma das primeiras aparições do motivo do leitor individual na cultura ocidental.

A leitura privada no filme, contudo, é uma leitura performada para câmera, nela se confundem a consciência de ser observado e naturalidade de realizar uma atividade habitual. O filme remete ainda assim ao motivo do leitor solitário, que ele reescreve à sua maneira. A figura do leitor tem uma história longa na pintura, especialmente em sua encarnação feminina (a presença de três mulheres, entre as quatro personagens do filme, não me parece fortuita). Na pintura célebre de Pieter Janssans Eliga, a leitora é uma figura estranha e opaca, que surge de costas, oblíqua, retraída no quarto sombrio, com o rosto oculto, recusando-se a se submeter ao olhar que a perscruta, ao mesmo tempo que suscitando a imaginação de quem a vê, como se a ansiedade provocada pela leitura solitária se confundisse com o medo masculino de sua sexualidade. O filme de Benning parece bastante distante desta forma de representação. A câmera é sempre posicionada frontalmente em relação a seus modelos, nenhuma obliquidade, nenhuma sombra. A imagem é planimétrica, nada recua para as profundezas. O leitor, contudo, se mantém como uma figura de opacidade. A leitura manifesta a vida interior na mesma medida que a retrai, ao mesmo tempo marca e apaga a sua presença. A imaginação do espectador, contudo, se desdobra diante do menor sinal.

readers-01

O mundo ao redor de cada um parece deixado de lado, mesmo que por um momento. Os leitores não parecem ouvir o que ouvimos, os sons dispersos do ambiente, um avião, um carro. A gente também não escuta suas vozes, murmurando em silêncio textos que desconhecemos. O corpo, parcialmente esquecido, retorna como uma disrupção da leitura, um ligeiro desassossego. Coça-se a garganta, endireita-se a coluna, estala-se os dedos, estica-se os braços, muda-se de posição, ajeita-se na cama, perde-se a concentração. Os gestos às vezes podem delatar a história inscrita em cada corpo. A ordenação progressiva das idades é também a imagem do seu envelhecimento. MacHale-Ribot, a mais nova, balança-se distraidamente no sofá e, inquieta, verifica quantas páginas ainda faltam para terminar o capítulo; Kushner, em certo momento, molha os dedos na boca antes de virar uma página, um costume de outra geração; Hebdige mantém-se imóvel, com a concentração interrompida apenas pelo pigarro, áspero e ruidoso; Forti sublinha, com as mãos trêmulas de quem já não tem o controle dos seus movimentos, cada linha lida com os dedos, calma e pacientemente. A situação em que se encontram espelham a nossa. Também estamos parados, recolhidos em uma atividade que nos faz esquecer onde nosso corpo se encontra. A nossa mente também perde a concentração, deixando-se vagar até o momento quando, de repente, percebemos que havíamos nos ausentado.


Leia também: