História natural

novembro 25, 2013 em Em Pauta, Raul Arthuso

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Ten Skies (2004), James Benning

por Raul Arthuso

Até 13 Lakes (2004), a obra de James Benning encontra muito de sua força na atenção aos detalhes do quadro, nas peculiaridades esquadrinhadas no campo, seja nos objetos capturados pela câmera ou nos “acasos” ocorridos na duração do plano. É um cinema do “desenho” da cena, sua dramaticidade e força impregnados nas ocorrências e descrições que cada plano traz para a leitura do todo do filme. Com o díptico 13 Lakes e Ten Skies, ambos do mesmo ano, James Benning se coloca em pé de igualdade com os grande paisagistas da história da arte. Em especial, com um deles: J. M. W. Turner, aquele que melhor trabalhara com os mesmos motivos usados aqui pelo cineasta americano – a água e o céu. A novidade, ou melhor, o que ganha intensidade em 13 Lakes é a força do traço, da impressão, e seus recursos, como a cor, a luz e o movimento. Os elementos pictóricos sobressaem aos detalhes do retrato. Pois, a rigor, em 13 Lakes e Ten Skies pouco acontece com o que se vê, mas muito acontece com o visível.

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13 Lakes (2004), James Benning

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Monte Rosa (1836), J. M. W. Turner

Não se trata, contudo, de tomar 13 Lakes e Ten Skies como paisagens no cinema ou pinturas cinematografadas, comparando Benning a grandes pintores como se o dispositivo de seus filmes – em especial nesses dois filmes – permitisse uma simplificação de seus resultados como uma adaptação cinematográfica do gesto dos pintores de paisagens. Tanto em 13 Lakes quanto em Ten Skies, Benning faz com o cinema o que Turner realizara na pintura ao olhar uma paisagem: ambos resgatam, a partir dos elementos básicos de seu ofício, a especificidade do olhar artístico diante da natureza do mundo.

Benning já trabalhara com composições a partir de objetos (American Dream, de 1984) e paisagens (a trilogia El Valley Centro (2000), Los (2001) e Sogobi (2002), por exemplo), como forma de coletar as maneiras como uma história e uma cultura contaminam os espaços e as coisas, retomando assim o ideal fordiano de impressão do mito na superfície sensível do mundo. Por mais que se ignore a história de uma cultura, ela persiste diante dos olhos naquilo que é mais durável: o chão onde esta cultura se levanta. Como capturar essa história impregnada nas coisas? Daí, talvez, a retomada das experiências de duração dos filmes em 16mm de Andy Warhol, cuja influência é evidente no caráter imediato da obra e, também, declarada pelo cineasta. Porém, em Benning, a duração passa da experiência da duração em si para uma necessidade de persistência da visão a fim de “ler” essa história das coisas, escrita lentamente no decurso do tempo.

Em 13 Lakes, a câmera se coloca diante de uma paisagem com elementos reconhecíveis: água, pedras, mato, céu, nuvens, píers, pontes, barcos, carros. Os créditos finais dão os nomes dos lugares para os espectadores curiosos pela localização das belezas naturais captadas pela câmera. Pouco importa. 13 Lakes não se baseia na revelação de uma paisagem e as peculiaridades de seu entorno, mas sim de seus traços plásticos: a linha do horizonte, o brilho da luz, o formato das ondas de água, a cor da montanha ao fundo, os reflexos na superfície líquida, a intensidade do céu. É um filme da fisionomia. Por mais que certas perturbações transformem a apreensão momentânea da paisagem, os planos tendem à fixidez e, assim, se apropriam do ideal do instante pregnante das artes plásticas, ao imprimir esse momento único e significante na dimensão do tempo.

Ten Skies trabalha com o mesmo dispositivo para encontrar outros elementos, também básicos. Por um lado, há a repetição da preocupação com a luz, as linhas, as cores; por outro, há a questão do movimento e da agitação. Ten Skies faz-se da tensão do lado concreto do retrato do céu, que tende à abstração por focar-se apenas nos elementos primevos da imagem (formas, movimento, cores), mas que permanece o mais concreto possível. Um pouco devido ao trabalho sonoro, os elementos na tela (nuvens, fumaça, lua, pássaros, o céu em si) não deixam de ser o que são, por mais que o específico cinematográfico chame a atenção para os dados pictóricos do quadro.

Diferentemente de 13 Lakes, Ten Skies é um filme do movimento. Tudo está sempre em agitação. Até por isso, Ten Skies é um filme mais agradável de se assistir que 13 Lakes, cuja fruição é mais sentida. Em Ten Skies, há uma transformação constante do plano, por mais lenta e imperceptível que seja, tanto na imagem quanto no som. Ao final, um plano nunca é o mesmo que começou. Benning coloca o tempo na dimensão plástica da imagem.

“A paisagem é uma fisionomia, um rosto, que de repente em um ponto de uma região nos olha, como acontece com linhas emaranhadas de um trompe-l’oeil. Um rosto da região com expressão totalmente certa, embora indefinível, com um sentido distinto embora inapreensível”. Essas palavras de Béla Balázs expressam a sensação diante de 13 Lakes e Ten Skies. Nesse sentido é que os dois filmes marcam uma “arte do traço” na obra de Benning: a paisagem não se revela para a câmera, seus detalhes descritivos são secundários. A apreensão da relação entre a paisagem e a câmera toma a dianteira.

Em dado momento de 13 Lakes, já não há a certeza se quem observa é a câmera ou a paisagem. Existe, então, um desejo de tornar sublime não a paisagem em si, mas o momento do encontro, a duração, a relação. Benning conversa com os lagos. 13 Lakes e Ten Skies são, assim, filmes do entre, como as obras de encontro de Eduardo Coutinho. Enquanto o brasileiro busca na palavra a base desse “estado entre“, Benning faz da fisionomia e do movimento elementos fundamentais complementares de uma história natural através do cinema.

Ten Skies busca apreender o movimento do céu, mas ele é fugidio. Os céus filmados por Benning realizam uma performance – isso é evidente no plano da fumaça que, provavelmente, sai de uma chaminé de uma fábrica, mas que se nega a ser uma fumaça que sai de chaminé, e dança. Benning proporciona um encontro imprevisto, como um diálogo entre paisagem e câmera. Ou, como escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade em sua História Natural, “O mundo não é o que pensamos”.

O diretor Jean-Marie Straub confessara uma vez seu desejo de filmar como uma pedra qualquer na paisagem, mineralizando a narrativa ao mesmo tempo em que apreende um sentido natural do texto que encena, como se fosse possível retirar deles a camada de poeira depositada pela história. James Benning, nesses dois filmes, quer filmar essa pedra e “ouvir” sua versão da história. O que revela, então, na fixidez dos lagos ou no movimento dos céus, não é uma verdade essencial, mas uma história contada pela fisionomia, em 13 Lakes, e pela performance, em Ten Skies. Uma história natural. O interesse do olhar se volta para uma sapiência primitiva – das cores, das linhas, do movimento – da qual os lagos e os céus são oradores privilegiados. 

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