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As transformações silenciosas

O díptico Equinócio de Primavera e Equinócio de Outono, exibido no Festival Ecrã, no Rio de Janeiro, introduz um novo tipo de estrutura na obra de James Benning. Quatro parâmetros geográficos são definidos para cada um dos seus planos de longa duração, mostrados na forma de cartelas: o horário, a temperatura, a altitude e a quilometragem de cada plano. Os filmes foram construídos no caminho de uma única estrada em Sierra Nevada, Califórnia, respectivamente no primeiro dia da primavera e no primeiro dia do outono. A obra se constitui assim, em um primeiro momento, como um estudo das imagens e sons resultantes do processo de variação de quatro magnitudes. Uma postura experimental e investigativa preside, portanto, o seu trabalho, onde se procura observar quais transformações qualitativas resultam das variações quantitativas dos quatro parâmetros. Os filmes compõem, contudo, um único projeto, quando vistos consecutivamente, baseando em uma espécie de simetria: os planos dos dois filmes foram construídos com a câmera fixa posicionada nos mesmos lugares, como não tardamos a reconhecer, mostrando a mesma paisagem respectivamente depois do fim do inverno e depois do fim do verão. A simetria, contudo, encontra-se invertida: em Equinócio de Primavera, subimos a serra, retrocedendo o horário, do fim da tarde ao amanhecer, enquanto que em Equinócio de Outono, descemos a serra, progredindo o horário, do amanhecer ao fim da tarde. A comparação das imagens passa a se basear agora, portanto, em um novo parâmetro: a data. O díptico nos convida, assim, a tentar recolher da paisagem os rastros do tempo.

A realização de ambos Equinócio de Primavera e Equinócio de Outono se baseia em um procedimento determinado, cuja origem se encontra no cinema estrutural dos anos 1960 e 1970: a construção de filmes partir da variação contínua de parâmetros numéricos, estabelecidos de antemão, que se atualiza de maneira em grande medida automática, predeterminada pelo conceito da obra. A trajetória artística de Benning tem se manifestado desde o começo como uma resposta ao cinema de estrutura da geração que o antecedeu, mas sua obra se define, sobretudo, pelas rupturas que introduziu. O díptico apresenta duas diferenças decisivas em relação ao cinema estrutural histórico. A primeira diz respeito à própria natureza da estrutura. Os parâmetros deixam de medir as propriedades imanentes ao aparato do cinema, como era, por exemplo, o caso da mudança da distância focal das lentes da câmera, a cada quatro fotogramas, em Serene Velocity (1970, Ernie Gehr) ou, ainda, o caso da variação da frequência da onda sonora no tempo, do grave para o agudo, em Wavelenght (1967, Michael Snow). Os parâmetros se tornaram agora as grandezas pelos quais medimos o mundo geográfico. A mudança marca a refuncionalização de um procedimento artístico, que originalmente esteve orientado por uma compreensão autorreferencial da forma, mas que se descobre agora como uma maneira bastante particular de se engajar com o mundo, pôr os pés no chão. O que cada filme individualmente pergunta é o que se transforma, em termos de paisagem visual e sonora, quando variamos o horário, a temperatura, a altitude e a quilometragem de um plano. Como em Serene Velocity e Wavelenght, variações lineares e contínuas de um determinado parâmetro podem esconder verdadeiras descontinuidades qualitativas, como se a homogeneidade da estrutura permitisse realçar a heterogeneidade do todo.

As respostas não são mostradas diretamente para o espectador, que precisa aprender a trilhar seu próprio caminho pelos filmes. As imagens parecem frequentemente tender à estase absoluta, enquanto o som ao silêncio, mas trata-se apenas de uma aparência. James Benning guarda a devida suspeita de conceitos negativos e abstratos como o de silêncio e o de repouso, que apenas mascaram as presenças para quais não se dedicou suficiente atenção: o observador está sempre convidado a encontrar a diferença, ali onde ele esperava tratar-se do mesmo. As transformações poderão se revelar interessantes para quem souber acolhê-las. Em Equinócio de Primavera, o som ambiente de altitudes mais baixas e do ápice do dia é mais denso, populado de cantos de pássaro agudos, curtos e repetitivos, assim como pela presença ininterrupta e regular de mosquitos; subindo à montanha, o som torna-se mais rarefeito, os cantos se esparsam e se diversificam, as frequências em geral tendem a ser mais graves, especialmente pelo aumento do vento, ao mesmo tempo que a luz torna-se menos amarela e mais opaca, fria. O mugido de animais de pasto podem invadir o som ambiente, sem que possamos suspeitar pelas imagens de vegetação natural da presença de zonas de produção agrária. No alto, o verde da folhagem pode se avermelhar, a neblina amorfa esmaecer os contornos das coisas, a neve deixar-se entrever sobre o solo. Quando menos se espera, havíamos, em um único dia de início de primavera, percorrido as quatro estações.

Equinócio de Primavera (2016), James Benning

Equinócio de Outono (2016), James Benning
                               Equinócio de Primavera & Equinócio de Outono (2016), James Benning

A segunda grande diferença do díptico em relação à tradição do cinema estrutural diz respeito ao lugar ocupado pelo observador. A obra recente de Benning tem deslocado a ênfase, dada historicamente no cinema de estrutura à construção de objetos fílmicos autocontidos, para o próprio observador, seja ele o espectador ou o próprio artista. As obras não devem ser pensadas à parte da prática de atenção à paisagem que Benning aderiu na própria vida. Os filmes são, na verdade, apenas o resultado visível de uma experimentação artística mais ampla, onde se tem exercitado, com grande inflexão política, a própria capacidade de ver e escutar o mundo ao redor. O grande ensaio crítico sobre o cineasta continua a ser o filme de Reinhard Wulf, Circling the Image (2003), onde o cinema de Benning é devolvido ao processo do qual ele nunca deveria ter sido concebido à parte: a experiência da estrada, a prática de observação, o demorado estudo da paisagem que precede a realização de cada plano. A obra de Benning é, assim, o resultado finito e provisório de uma prática transformada em forma de vida. Equinócio de Primavera e Equinócio de Outono são, do ponto de vista do espectador, antes que objetos fílmicos, ocasiões para a experiência. O espectador dos filmes recentes de Benning não existe de antemão, mas precisa ser inventado.  “Ver é uma disciplina” – escreveu o cineasta tantas vezes. Uma disciplina que se conquista aos poucos, para qual não estávamos preparados. Um corpo indisciplinado é, antes de tudo, um corpo fechado, para qual sempre há pouco para se ver e pouco para se ouvir. Os seus filmes são ocasiões, portanto, em que um outro espectador pode vir a produzir-se. A experiência do cinema de Benning é marcada por uma certa liturgia do exercício: um trabalho de invenção de si.

A experiência de Equinócio de Primavera e Equinócio de Outono é determinada, assim, pelo modo como procuramos aprender a observar o que ele tem para nos oferecer. O projeto pretende dar a ver, sobretudo, um conjunto de transformações discretas, diluídas e silenciosas demais para tornar-se objeto de nossa percepção: as marcas deixadas pela mudança do clima na paisagem. O que o díptico pergunta, quando tomado em sua totalidade, é o que muda na paisagem, quando passamos do início da primavera para o começo do outono. A transformação escapa profundamente da representação convencional que temos da mudança de estação. A grama parece ter crescido e se tornado um pouco mais selvagem, aparentando estar mais seca e amarelada. A mata silenciou-se um pouco, mas, talvez por isso, a presença de insetos parece curiosamente maior. Ouvimos alguns pássaros que suspeitamos não termos ouvido antes. Onde esperamos encontrar uma vegetação frondosa nos damos de encontro às vezes com meia dúzia de árvores sem brilho, que apenas em um esforço de memória conseguimos relacionar ao plano que conhecemos. O tempo passou, mas também passou a nossa lembrança. O que caracteriza processos climáticos como as mudanças de estação são o fato de serem processos ao mesmo tempo ubíquos e graduais. A mudança de estação está sempre em curso, alterando lenta e globalmente toda a paisagem, mas dificilmente a percebemos assim, em processo. A sua lentidão e ubiquidade a situa além e aquém de nossa capacidade de percepção. Quando nos damos conta, o tempo passou, e, com ele, a paisagem se transformou. A escolha em filmar durante os dois equinócios do ano reivindica a nossa atenção para o caráter propriamente transicional da mudança: trata-se exatamente do momento da alternância da direção do tempo, quando o jogo de transformações se inverte. O equinócio é o momento em que as horas de luz e as horas de escuridão no dia começam a aumentar ou a diminuir, revertendo a direção das mudanças climáticas, que encontram no auge do verão e do inverno os seus pontos de chegada, a sua polaridade. Um momento, portanto, de transição quase imperceptível, mas, ainda assim, decisiva. O que esse díptico nos convida a fazer, portanto, é observar, atenta e concentradamente, os rastros e os esboços das transições em curso, devolvendo à paisagem a sua mobilidade característica.

O desejo de ajustar a nossa atenção ao ritmo da paisagem esteve sempre presente no cinema de Benning, mas a obra que verdadeiramente antecipa os filmes em questão foi um outro díptico, One Way Boogie Woogie/27 Years Later (2005). Nesse trabalho, a visitação dos mesmos lugares no perímetro urbano do Meio Oeste americano, separada pelo intervalo de tempo de quase trinta anos, nos convida a interrogar a paisagem em seu processo de transformação: a paisagem apresenta-se, portanto, não mais como categoria espacial, mas como categoria propriamente temporal, na qual a história se expressa. O desafio colocado por Equinócio de Primavera e Equinócio de Outono revela-se, contudo, ainda mais exigente. As transformações que estão em curso, em um intervalo de tempo notadamente menor, não pertencem mais ao repertório conhecido da paisagem industrial e urbana, que eram facilmente legíveis para o espectador como paisagem histórica. As imagens dos filmes pertencem ao repertório da paisagem dita natural, cujos códigos e processos ainda não sabemos observar, de modo a revelar a sua historicidade. O barulho surdo da estrada não nos deixa esquecer em nenhum momento, contudo, que nos encontramos diante de uma paisagem histórica, modificada pela ação humana. Os filmes reivindicam a nossa presença nesse mundo, a despeito de mal termos começado a conhecer seus signos. Em um momento histórico em que a medida dos ritmos naturais e humanos tem começado a se confundir, quando a própria passagem das estações tem sido cada vez mais regulada por fatores antrópicos, os filmes de Benning podem vir se a revelar como exercícios de uma disciplina necessária para os tempos que virão.


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