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Taxidermia do tempo

Nem um trajeto linear de uma visita a pé, nem mesmo um jogo de associações diretas. A dramaturgia do conjunto dos cinqüenta e quatro planos e setenta e sete minutos do filme História Natural (Natural History), de James Benning (EUA,2013) é justamente sugerir relações variadas entre as imagens através das durações. Ligações de sentido, para dentro e para fora de cada plano. Visões que se sucedem sem vínculo evidente começam a construir um primeiro estranhamento pelo tempo. Algumas duram poucos segundos enquanto que outras se aproximam dos cinco minutos de presença diante de nós. Animais empalhados, salas de trabalho, corredores, caixas, escadas, vidros com formol, portas, tudo isso faz parte da exposição que Benning realiza com seu filme. Pela escolha de elementos, é nítido que aqui se quer ir além do que esperamos ver quando visitamos um museu. Há uma clara mistura entre os elementos “pré-destinados” à visão, à exposição, e elementos que só quem trabalha na instituição tem acesso. Um dos trabalhos do filme é sugerir relações entre estes grupos aparentemente distintos, construir parentescos que transcendam suas funções imediatas e seus sentidos cotidianos. O trabalho de organização e mostração realizado pelo filme é uma dobra da operação que o museu já realiza, selecionando, dispondo e expondo. Filmar é necessariamente organizar as formas de uma visibilidade, no tempo.

O ímpeto de registro e catalogação, de prolongamento da imagem das coisas no tempo, é uma das características mais evidentes desta obra cheia de sutilezas (mas de poucos segredos). Trabalho de encomenda do próprio museu, a narrativa de Benning faz do filme institucional um veículo de pensamento, que reflete a função da instituição “contratante”, o Museu Nacional de História Natural de Viena, ao mesmo tempo em que é o discurso do “contratado”. As imagens de backstage trazem à tona a dúvida sobre o que faz, materialmente, com que este urso empalhado esteja exposto e não aquela porta. O jogo com as durações termina por revelar uma espécie de irmandade material das coisas, resumida às suas características visuais. É como se, pela duração, víssemos uma porta empalhar-se. A quase completa ausência de seres humanos contribui para esse efeito de um universo que nos questiona qual é o seu centro, qual é a sua escala. Uma atmosfera de múltiplos animismos contamina nosso olhar.

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O primeiro cinema, e mesmo o pré-cinema, é evocado como possibilidade perspectiva aqui. Deles temos a aposta pela tomada única como forma e sentido, o encanto primário da inscrição das coisas num suporte de reprodução, o interesse pelo movimento e suas decomposições, e uma inclinação pela forma das coisas, por uma espécie de anatomia geral do mundo visível. O “pré-cinema” do século XIX se encontra com o “pós cinema”, que circula nos espaços das galerias e se alimenta das experiências formais, herdeiras das neovanguardas dos anos 1960 e 1970 do século XX. A história natural de Benning faz convergir, através de sua construção, todas estas práticas em registros, a partir de pouquíssimos elementos e uma equipe de um homem só, da produção à pós.

O trabalho do diretor nos coloca em uma situação curiosa perante a história do cinema como repertório do nosso olhar. De certa maneira, ele suscita em nós esse prazer primeiro pelo fenômeno da imagem como um acontecimento ótico e auditivo. Por outro lado, nos sentimos convidados a tecer relações muito variadas com o ato de estar diante de uma tela, com os rostos voltados para um filme como História Natural. Cada plano é um evento em si, onde quem faz o movimento, em grande parte deles, é o nosso olho e nossas sensações, mesmo sobre uma imagem parada. O trabalho com a duração faz com que os planos variem entre a ilusão perspectiva que gera a sensação de profundidade, e a condição material plana do retângulo da tela, onde cada figura e cada contorno é somente luz e cor. A exposição dessas imagens no tempo as coloca numa tensão constante entre estes estados da imagem. Cada quadro é ao mesmo tempo transparente e opaco. Simultaneamente fotografia, pintura e teatro. É essa riqueza de sensações e situações, criadas com tão parcos meios, que faz de James Benning um artista essencial, como explorador das matérias, dos jogos de camadas das imagens e como um dos grandes cronistas dos nossos modos de viver e de perceber o mundo a nossa volta. E de como nossa percepção é agente neste processo. Uma vez finda a história, nada deve parecer natural.


No dia 22 de setembro às 19h, a Sessão Cinética exibe História Natural (Natural History), de James Benning (EUA, 2013) no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro. A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

História Natural será exibido em cópia digital, formato em que foi finalizado.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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