Paisagens, elipses, repetições

novembro 25, 2013 em Em Pauta, Pablo Gonçalo

Casting a Glance (2007), James Benning

Casting a Glance (2007), James Benning

por Pablo Gonçalo

A tarefa da vida é fazer que coexistam todas as repetições num espaço em que se distribui a diferença”.

Gilles Deleuze

“The earth’s history seems at times like a story recorded in a book, each page of which is torn into small pieces. Many of the pages and some of the pieces of each page are missing”.

Robert Smithson

“How many saints can be and land be and sand be and on a high plateau there is snow and there is made to be so and very much can be what there is to see when there is a wind to have it dry and be what they can understand to undertake to let it be to send it well as much as none to be to be behind. None to be behind. Enclosure. Saint Therese. None to be behind. Enclosure”.

Gertrud Stein

Antes de ver, escutar. Logo no título “Eight Lines”, a peça acima evoca o número preciso de camadas e notas que o compositor intercala, separa, sobrepõe, mescla e harmoniza. Num primeiro instante, parece que estamos diante de uma fuga de Bach, como se uma frase melódica rimasse com a próxima, formasse um contraponto à anterior, e criasse uma sucessão de outras frases, encadeadas, tecendo um sentido sonoro sintético, acolhedor, que reconforta os ouvidos. No entanto, as rimas da fuga conduzem a uma abstração, a uma ideia, a um conceito harmônico que desgruda-se da premente materialidade de “Eight Lines”. A ênfase dessa peça – e de toda a obra de Steve Reich – recai menos na frase e nas melodias do que nas notas únicas, no ritmo, nas simetrias propostas e na cadência das paulatinas assimetrias internas à composição que são minuciosa e insistentemente costuradas. Uma nota é tocada e repetida, num ritmo (quase) constante. Talvez seja mais um toque, um gesto, um ato percussivo, do que precisamente uma nota. Pouco importa. Repete-se, este ato, e, não por acaso, numa cadência que parece, mas não é a mesma, varia-se, de forma imperceptível, e altera-se, sutilmente, o DNA original, criando algo inusitado que se alastra entre cordas sensóreas, numa catarse progressiva e cumulativa, donde emergem ondas que espalham-se pelo ambiente harmônico, ocupando-o, hackeando-o, modificando-o.

Steve Reich e todos os demais compositores minimalistas costumam levar ao paroxismo a redução da unidade da nota e da frase melódica. Caminha-se com certa cautela para traçar analogias entre artes distintas, mas, de alguma maneira, essa redução do átomo da música – esse esfarelamento da nota – está vinculada à ênfase minimalista do plano, do take e do shot que certos cineastas como os Straub, Abbas Kiarostami, Pedro Costa e James Benning realçam em algumas das suas obras. É claro que há diversas distinções na forma como o plano é composto entre cada um desses artistas. No entanto, tais planos demasiadamente fixos, descendentes diretos dos funcionários que saem das fábricas dos irmãos Lumière, conduzem a uma interação com o quadro que passa pela impaciência, pela imersão e também pela dispersão. Fixa, a moldura sugere geometrias dentro e fora do quadro, locais tecidos pela atmosfera sonora que transformam o espaço dentro do plano num pulsante cubo imaginário que, por sua vez, conecta as geografias captadas pela lente da câmera para espaços sugeridos, íntimos e afetivos, vinculados ao ato de ver aquela concreta locação. É assim, por exemplo, que situa-se a materialidade geográfica dos quadros fixos de No Quarto de Vanda (2000), de Pedro Costa, no qual o espaço restrito, uma espécie de claustro, o quarto do título, é pouco a pouco invadido pelos sons externos: as conversas com a vizinha, em off, o ruído agudo dos tratores que destroem, programaticamente, o bairro de Fontainhas, em Lisboa. É pelo som que a fixidez do quadro possibilita e inaugura uma paisagem, átomos de respiro frente ao acuamento daquelas máquinas vorazes e as ruínas do bairro. Instala-se um local que está presente, mas fora do quadro e que conduz para outras cosmologias – espaços ficcionais, que seja, espaços possíveis.

As paisagens costumam transitar entre movimentos internos e externos ao quadro e propiciam sinestesias que coligam agenciamentos entre o local filmado, o plano da câmera e o olho do espectador. Ainda no teatro, as apostas mais radicais dessa composição das paisagens estão vinculadas a uma dramaturgia que dissolve as psicologias – esse Ego do personagem exageradamente arraigado – e a centralidade dos sujeitos, demasiadamente humanos, que costumam passear entre o palco e as telas. Foi Gertrud Stein quem, talvez pioneiramente, radicalizou um experimento de engolir personagens pela geografia física e verbal que os rodeia. Em sua peça Four Saint in Three Acts (1928), temos figuras como São Francisco e Santa Cecília que literalmente dissolvem-se, pela palavra, frente as paisagens que os circundam. Stein ressalta um espaço físico e dramatúrgico que antecede à existência humana e permanece, latente, materialmente, desdenhando as passagens desses corpos pela terra. São paisagens compostas pelo céu, montanhas, pedras, pássaros, e que não são contemplativas, mas ariscas, perigosas, que desestabilizam, ameaçam, convidam a um abismo.

As paisagens em La Region Centrale (1971) de Michael Snow atuam de forma similar. Não por acaso, elas são inteiramente captadas por um braço robótico que gira, de forma vertiginosa e repetitiva, entre as figuras geográficas de um região remota do Canadá. A ênfase na máquina é central para compreendermos a perda do equilíbrio e do chão que essas paisagens impõem ao espectador. Ao colocar esse robô como um intermediário do shot e do take, Michael Snow minimiza, reduz à sua essência, o agenciamento humano da máquina e instala algo que radicaliza e ultrapassa o projeto da câmera-olho de Dziga Vertov. Acompanha-se, no filme, uma forma de ver prioritariamente automática, programada, indiferente a qualquer sensação, a qualquer emoção. Onde um plano é um plano é um plano é um plano. E essas paisagens, se realmente possíveis, constroem-se embevecidas de uma imanência do local, de uma imposição aderente à mídia, à mediação, nula, desdenhando qualquer interpretação ou ponto de vista que esteja fora do quadro.

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Michael snow e seu robô em La Region Centrale (1971)

É apenas parcialmente que as paisagens dos filmes de James Benning compartilham dessas inquietações de Gertrud Stein e Michael Snow. Se há uma tendência mais evidente na forma como suas topografias visuais são compostas, elas passam por salientar elipses, repetições e parataxes – e essas são três características intrinsecamente vinculadas umas as outras que buscam, sutilmente, agenciar o tempo do olhar, o tempo da modificação do quadro pelo contato, pela sua interação entre as figuras filmadas e projetadas nos corpos que observam. Na sua trilogia da Califórnia, composta por El Valley Centro (1999), Los (2000) e Sogobi (2001), Benning enfatiza paisagens que são alteradas pela atuação humana. São estradas, instalações industriais, caminhões, trens, plantações gigantescas, portos, complexos hidroelétricos, parques, jardins. São todas elas paisagens amplas, vistas como quadros dinâmicos captados em planos gerais que enfatizam tanto a profundidade de campo como os movimentos e acontecimentos, às vezes minúsculos, que grifam uma diferença visual e sensórea. Benning dialoga com paisagens que evidenciam um tempo profundo, que engendram camadas atávicas, de acontecimentos sobrepostos, anteriores e dinâmicos ao quadro. É um tempo que busca vestígios geológicos e geográficos e, pela câmera, inscrevem uma cronologia implícita de formas anteriores ao homem e formas escritas por suas mãos, por técnicas de modificação. Para Benning, olhar as paisagens é uma forma de olhar as formas, ou uma maneira de perceber o cosmos dos vestígios – físicos e humanos – que revelam-se, tal como um blow up, e formatam um mundo para quadro e olhos.

Los (2001), James Benning

Los (2001), James Benning

É em Casting a Glance (2007) que constatamos com mais exatidão esse tempo de construção de olhar para as paisagens tão caro a Benning. Sintomaticamente, o filme não é apenas dedicado a Robert Smithson, mas interage frente a frente, quadro a quadro, com a obra Spiral Jetty, que passa a habitar de forma inusitada o filme. Em 1970, Smithson ergueu essa espiral feita de sais, cristais, pedras, basalto e água e a instalou no Great Salt Lake, em Utah, nos Estados Unidos. Spiral Jetty transformou-se numa das obras seminais da carreira de Smithson e, de fato, é um marco para o movimento conhecido como Land Art. A obra é considerada uma escultura composta por elementos naturais que interagem com a paisagem local, grifando novas formas, diferenças sensíveis. Aliás, essa condução a um local, essa viagem a um espaço certamente inusitado, é uma das características mais marcantes da Land Art, que, num gesto narrativo, guia o olhar e a imaginação para espaços a serem descobertos junto com os artistas.

Casting a Glance (2007), James Benning

Casting a Glance (2007), James Benning

 

Benning compartilha diretamente dessas inquietações de Smithson. Suas filmagens estão sempre sugerindo movimentos implícitos, dentro e entre quadros, deslocamentos espaciais que o colocam no rol dos cineastas que engendram viagens, ao contrário do cinema de turismo, para ficarmos com uma antiga dicotomia de Serge Daney. Retornando a Spiral Jetty e Casting a Glace, vê-se como Benning combina de forma ímpar uma relação entre paisagens alteradas – na obra de Smithson que intervém e instala-se no lago – com o tempo das filmagens. 

Entre 1971 e 2007, Benning viaja e filma a Spiral Jetty frente a contextos os mais distintos: no inverno, sob um gelo concentrado, na primavera, num degelo anunciando-se e em momentos em que o sol brilha com mais força. Trata-se de uma maneira de enxergar as formas que exige paciência, pois em todas as filmagens da década de oitenta a Spiral Jetty de Smithson foi totalmente engolida pela profundidade do lago e, curiosamente, desapareceu naqueles anos. Ainda assim, persistente, a câmera de Benning registra esses momentos de dissolução. Lá permanece: filma, olha, capta os vestígios das pedras inundadas, da espiral contorcida, em estado de extinção. Não conformado, Benning realizou um minucioso estudo físico do terreno e das condições climáticas do Great Salt Lake e esperou, com rara tenacidade, o nível da água baixar para voltar a ver, de forma repetida e diferente, a nova configuração da Spiral Jetty. Vagarosamente, a escultura ressurge a partir dos anos 2000. Volta, pois, num plano geral, azul, amplo, pleno. Nesses instantes, aos poucos, entre takes, uma música aparece em off, talvez num rádio de um carro, distante, sim, mesmo que urdido na pós-produção: ouve-se “Love Hurts”, baixinha, na versão de Gram Parsons, amaciada por grilos persistentes, calmos. Às vezes, é preciso pouquinho para perceber as singularidades de um espaço como o Great Salt Lake, quando, mais do que ver a paisagem, Benning nos oferta, delicadamente, uma chance de escutá-la.

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Casting a Glance (2007), James Benning

Casting a Glance é uma das obras que melhor engendra elipses. Sim, elipses, esses pequenos pulos e cortes temporais que no documentário saltitam sempre impregnados de história. Basta lembrar da Elisabeth Teixeira filmada por Coutinho no seu Cabra Marcado para Morrer (1984); ou da elipse implícita em Santiago, de João Moreira Salles, um filme composto em dois momentos distintos, que sabe assumir seus intervalos como um ponto de partida criativo. No documentário, as elipses deixam às claras e evidenciam as rugas das faces de quem passa pela câmera. Como os diversos auto-retratos de Rembrandt, o quadro estático, quando repetido entre tempos distintos e cumulativos, expõem, quase cruamente, as rugas nas faces, os olhos já mais pálidos, de brilho atenuado. Em Casting a Glance não vemos rostos, mas as elipses de James Benning, que atravessam três décadas em pouco mais de uma hora, deixam evidentes algumas das rugas daquelas paisagens. Sejam as formas geológicas do Great Salt Lake, sejam na escultura Spiral Jetty, ambas envelhecem, perecem e ressurgem, revigoradas. James Benning dissolve ambas a formas, a escultura geográfica e a escultura de Smithson, entre as décadas que passeiam pelas suas lentes, para que elas possam ser repetidas, para que arranquem uma diferença dos nossos olhos.

Casting a Glance (2007), James Benning

Casting a Glance (2007), James Benning

Essa ênfase na repetição – do mesmo quadro, do mesmo plano, da mesma topografia, do mesma tempo no quadro e entre quadros – revela uma forma de compor obcecada por simetrias e parataxes. É como se um quadro, em termos narrativos, não pudesse se sobrepor a outro, não pudesse gerar hierarquias, atos, desenlaces, tensões, clímax ou catarses. Os quadros de Benning são isonômicos; possuem o mesmo valor – ou quem sabe, não transmitem valor algum. Apenas surgem, mostram, aparecem. A parataxe, em Benning, é uma forma de compor serena, um hábito de montagem, um gesto mais preocupado em aproximar, em gerar presenças, do que propriamente narrar, como se as paisagens que surgem diante de uma viagem fossem uma constante repetição não do que é visto, mas do próprio deslocamento, do corpo, do movimento na imagem que forma-se nos olhos. 

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11×14 (1977), James Benning

É curioso, nesse sentido, perceber como, em 11×14 (1977), esses passos já estão esboçados, embora a câmera também movimente-se, como em alguns belos travellings por cidades sem nomes, onde o que vemos são figuras traçadas pelo sol e pelas sombras de um dia a dia comum, no interior dos Estados Unidos. Todo o filme traça um percurso – sim, mais uma viagem – para chegar ao monte Rushmore, em Dakota, no sul dos Estados Unidos, famoso por ter esculpido os rostos de Lincoln, Washington, Jeferson e Rossevelt nas suas pedras. As imagens do monte Rushmore são repetidas entre fotos e outodoors até, finalmente, Benning nos conduzir ao local de fato e filmar o famoso monte. Contudo, o quadro e a chegada não representam um ápice ou sequer um objetivo conquistada. Filma-se apenas mais uma imagem, pela qual a parataxe de Benning insiste em não hierarquizar.

Numa das sequências mais interessantes de 11×14, vemos um casal nu acariciando-se com rara delicadeza, num instante de intimidade tão flagrado quanto performado, em que o homem toma um chá e a mulher, de costas, parece observá-lo. Nesse tableau-vivant, Benning instala um Bob Dylan, rodando na vitrola: escuta-se “Black Diamond Bay”, do álbum Desire, de 1976, surgido talvez no mesmo ano em que o filme foi rodado. A música é longa, é tocada integralmente e dura cerca de seis minutos. São instantes de observação do plano, do frame e da performance do casal, que, às vezes parece ter movimentado uma foto de Nam Goldin. No entanto, alguns planos depois – e não por mero acaso – a mesma música é repetida: agora a imagem é de uma ampla chaminé jorrando uma fumaça densa, que sai num ritmo tão destruidor quanto belo. E, mais uma vez, toca-se “Black Diamond Bay” inteira, nos seus longos versos e minutos. Essa repetição não busca uma rima, mas, pelo contrário, uma divergência, um choque entre quadros.

Essa ênfase na repetição e na parataxe dos quadros não levou Benning apenas a buscar exatamente o mesmo tempo dos seus takes em alguns do seus filmes, mas a também a descobrir sutis movimentos mais instalados entre repetições da mesma ideia, do mesmo um plano. Em Twenty Cigarrettes, por exemplo, vemos o ato de fumar por vários ângulos, entre diversos rostos, que refletem lugares (e paisagens ocultas) os mais distintos. Repetido à exaustão, despido de qualquer ênfase, esse ato tão banal e trivial como tragar e exalar fumaça transforma-se; assim, multiplica-se em gestos únicos, em instantes precisos de observação, intenções e interações, momentos em que um hábito é compartilhado com a câmera, colocada numa precisa equidistância entre a performance e uma certa reclusão, um certo passo para trás que o ato de fumar gera consigo. Vinte cigarros: um maço, um filme. Nada a mais. Nada a menos. Delicadamente, Benning revela instantes, segundos de diferença frente a atos tão automáticos e a rotinas tão arraigadas. Mais do que vinte cigarros, fuma-se. Mais do que mostrar um plano, Benning faz com que ele de fato seja percebido. Talvez estejamos diante de um curioso paradoxo. Afinal, é por meio da repetição que volta-se a ver.

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