A trilogia da Califórnia: El Valley Centro (EUA, 2000); Los (EUA, 2001); Sogobi (EUA, 2002), de James Benning

dezembro 3, 2013 em Em Pauta, Rafael C. Parrode

elvalleycentro1

El Valley Centro (2000), James Benning

Arqueologia do olhar
por Rafael C. Parrode

“No method nor discipline can supersede the necessity of being forever on the alert. What is a course of history, or philosophy, or poetry, no matter how well selected, or the best society, or the most admirable routine of life, compared with the discipline of looking at what is to be seen?”

Henry David Thoreau, citado em Walden, de Jonas Mekas.

“E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.”

Rainer Maria Rilke, O Homem que Contempla.

O poeta e pesquisador tcheco Rainer Maria Rilke, em seus estudos sobre a história da paisagem na pintura ocidental, constrói todo um percurso, desde a antiguidade, acerca da construção do olhar e da tomada de consciência humana sobre a natureza e o mundo. Para Rilke, a gradual conscientização da paisagem como elemento autônomo dentro da pintura, apartada do homem, emancipada, só foi conquistada no que ele chama de terceira era da pintura, quando o elemento paisagístico passa a se realizar por si mesmo, desierarquizado do humano, sublime e indiferente. Nesse terceiro estágio, não há mais espaço para o drama humano. O cenário natural se torna deserto, desumanizado, é o fundo da imagem se tornando, ele próprio, espaço autoafirmativo. A pintura agora não se atrela mais a percepções e afecções, mas se constrói a partir de blocos de sensações, uma vez que, para Rilke, “a paisagem pura é a única coisa capaz de revelar a natureza inumana na qual o homem se instala”.

Essa evolução da autonomia da paisagem sobre o homem definida por Rilke ganha reminiscências notadamente no estudo da fotografia e alcança seu ápice – principalmente se levado em conta o cinema como sucessor da pintura – com a invenção do cinema pelos Lumière e a exibição de A Chegada do Trem à Estação (1896). Ali, a paisagem surge já soberana na tela e, a partir do movimento e da duração, consegue se reconfigurar quando, ao fundo longínquo da imagem, surge a locomotiva – símbolo máximo da revolução industrial – que irrompe a paisagem resignificando-a, com o quadro ganhando agora uma nova composição, contaminado pelo emaranhado de metal, fumaça e pessoas que toma de assalto o espaço.

ciotat

A Chegada do Trem à Estação (1896), Louis & Auguste Lumière

Há nesse curtíssimo, porém seminal primeiro filme dos irmãos Lumière, tanto elementos estruturais da pintura, especialmente da paisagem, bem como todos os elementos pelos quais se construiu toda a teoria e o pensamento do cinema até os dias de hoje. Não é por acaso, portanto, que James Benning retome os Lumière e A Chegada do Trem à Estação, em El Valley Centro (2000), Los (2001) e Sogobi (2002), filmes que compõem a sua aclamada “trilogia da Califórnia” e inauguram uma nova e radical fase em seu cinema.  É com esses três filmes que Benning começa uma relação quase que arqueológica com o cinema, escavando e restaurando ao máximo a ideia de um “cinema puro” que nasce a partir das vistas Lumière, e de uma ideia de registro direto, quase fotográfico dos lugares, com toda a amplificação que a possibilidade de apreensão do tempo, e da duração poderia proporcionar.

Há, principalmente em El Valley Centro, um desejo pelo registro do avanço da máquina sobre o humano. No primeiro plano do filme (um dos 35 planos de 2 minutos e meio que pontuam toda a trilogia), um grande buraco circular engole uma imensa quantidade de água de uma represa formada pela construção de uma hidrelétrica. Benning sabe que a potência desses filmes reside na escolha dos lugares e dos enquadramentos, uma vez que serão eles quem definirão a maneira como a espectador irá ver e interpretar cada quadro. O diretor estabelece uma relação dialética com os espectadores, uma vez que ele transfere para eles a sua contemplação diante do mundo, compartilhando esse exercício de olhar tão defendido por Thoreau.

Entretanto, são os planos seguintes de El Valley Centro que parecem se ligar intimamente ao cinema dos Lumière, principalmente a A Chegada do Trem à Estação. São vários os planos de campos e paisagens vazias, desérticas, que são invadidas por grandes máquinas que surgem longínquas, do fundo da imagem, até avançar para o espectador, como se fossem atropelá-lo, modificando toda a superfície da tela, reconfigurando toda a paisagem.

elvalleycentro2

El Valley Centro (2000), James Benning

Se El Valley Centro se concentra sobretudo na transformação das paisagens naturais pelo homem, em Los, segundo filme da trilogia, a paisagem já foi completamente contaminada, tomada por prédios, carros e pessoas que agora compõem o quadro. Aqui, o diretor intercala planos do centro de Los Angeles e de sua periferia, revelando como as paisagens se constroem hierárquica e socialmente. Benning se interessa sobretudo pelo registro dos estados de espírito daquela cidade, o registro das superfícies, dos blocos de ferro, concreto e asfalto entalhados sobre uma terra que não mais existe. Os corpos que ali vemos transitando por entre os prédios – ora decadentes, ora modernos e imponentes – movem-se robotizados, fundindo-se aos veículos e máquinas que ocupam a cidade. Em Los, já não há mais movimento reverso que possa desnudar a paisagem, nos revelar seu horizonte. Há um imenso muro de ferragens e concreto, desumano, que nos impede de olharmos para o infinito.

Los (2001), James Benning

Los (2001), James Benning

Sogobi por sua vez faz um retorno às paisagens naturais. Elas, agora distantes da civilização opressora, carregam em si uma melancolia e uma solidão desmedidas. Benning constrói uma arquitetura afetiva daquelas paisagens, registrando o mal estar e a desertificação dos espaços naturais. Em Sogobi, há uma negação completa da figura humana – há apenas a natureza e, vez ou outra, grandes máquinas que tomam de assalto o quadro – condensando todo o pensamento rilkeniano e dando à paisagem toda a autonomia necessária para desvelar-se. Benning se dedica a uma cosmologia dos lugares, buscando uma conexão espaço-temporal incisiva, revelando um legítimo herdeiro de Monet e Pissarro, contaminado pelo avanço tecnológico do cinema que lhe permitiu pintar com uma câmera e apreender a essência do mundo através da confecção das imagens.

Sogobi (2002), James Benning

Sogobi (2002), James Benning

Esse retorno de Benning à pintura e aos primórdios do cinema faz emergir uma série de questões imprescindíveis para a compreensão dos caminhos da imagem nos dias de hoje. Não é por outro motivo que Benning vem sendo considerado por muitos como um “filmmaker’s filmmaker”, o cineasta dos cineastas. A influência de Benning para o cinema contemporâneo é notável, uma vez que suas experiências deixaram marcas visíveis em cineastas decisivos como Abbas Kiarostami (que dois anos depois iria realizar seu Five: Dedicated to Ozu, repetição clara dos procedimentos já muito utilizados por Benning), Gus Van Sant (principalmente Gerry, mas também os outros filmes de sua “trilogia da morte”), Frammartino (As Quatro Voltas) Bela Tárr, Claire Denis, Grandrieux, Albert Serra, dentre vários outros cineastas que foram reconhecidos por Stéphane Bouquet, mais tarde, como cineastas do fluxo. Se para Rilke a evolução da paisagem na pintura se deu pela supressão dos dramas e narrativas humanas em prol de modulações da realidades que fazem emergir blocos de sensações, no cinema não foi diferente. As definições criadas por Rilke se alinham à própria concepção do cinema de fluxo delineada por Bouquet, com a diferença de que em diversos filmes de Benning não existem corpos nem uma (in)consciência humana regendo o todo, uma vez que o corpo é, para ele, a própria superfície do mundo e o homem é apenas uma pequena parte dele. Se o cinema de James Benning nasce desse encontro entre a pintura impressionista e o surgimento do cinema, é porque ele sabe que esses são pontos de partida e chegada, fim e início de uma constatação antes de tudo filosófica, na qual a expressão artística surge como uma consequência dessa forma de autoconhecimento e desvelamento do mundo, simples e límpida, desvinculada do pathos que turva a experiência do homem com a natureza, desequilibrando as forças que regem a vida.

Share Button