Paisagens algo-rítmicas ou Mondrian, Edward Hopper e o portão vermelho

dezembro 4, 2013 em Em Pauta, Fábio Andrade

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One Way Boogie Woogie (1977) James Benning

por Fábio Andrade

James Benning é um cineasta da síntese. A princípio, a máxima pode parecer disparatada para quem se coloca diante do último plano de Rhur (2009) – tomada fixa e contínua que totaliza uma hora de duração -, mas a síntese, neste caso, precisa ser pensada não como depuração, mas como desdobramento hegeliano de uma constante dialética entre opostos – tese e antítese. Se os filmes de James Benning podem ser pensados como obras sintéticas, é por serem o resultado de quem assume a dialética como movimento criativo.

No trabalho de James Benning, antes de haver filme, há um conjunto de regras auto-impostas, de restrições deliberadas em cada uma das instâncias de produção (filmagem, montagem, edição de som) que o diretor se obriga a seguir com disciplina canina. Em Deseret (1995), por exemplo, imagens fixas captadas em 16mm por Benning ao longo dos anos são sincronizadas com a leitura em voz over de notícias sobre o estado de Utah, publicadas no New York Times entre 1852 e 1992. Cada plano dura o tempo exato da leitura de uma frase na banda sonora. A cada ponto final, um novo plano. Entre uma notícia e outra, são incluídas tomadas únicas de respiro, como se para “limpar” o filme de uma notícia, antes de passarmos para a outra. O primeiro plano de transição dura 30 segundos, e a cada nova passagem o diretor reduz, também deliberadamente, essa duração em três fotogramas. Passada toda a projeção, a última transição de Deseret dura cerca de 10 segundos.

Deseret (1995), James Benning

Deseret (1995), James Benning

Existe, portanto, uma rigidez prévia nesse sistema matemático (dado importante: antes de fazer um mestrado em Cinema, Benning se formou em Matemática) que pré-condiciona a realização do próprio filme. Como no cinema de Eduardo Coutinho ou no trabalho de um Matthew Barney, o gesto inicial do artista parte de uma limitação voluntária de seu próprio controle sobre suas possibilidades de criação. A idéia é que a restrição sirva como potência inventiva para impulsionar soluções que não necessariamente surgiriam em um ambiente de plena liberdade, mas que se fazem providenciais justamente pela fricção com essas “regras do jogo”.

Benning, porém, não é somente um articulador, um artista-curador – figura que se tornou cada vez mais comum no mundo das artes, mas cuja origem de montador já podia ser vista no trabalho de alguém como Dziga Vertov. Mesmo quando o diretor abandona as narrações em voz over e passa a se dedicar a filmes aparentemente menos sistemáticos e mais contemplativos, existe um intenso processo de recorte e de manipulação que não se dá só na filmagem, mas também na escolha do material bruto que entra ou não no filme. James Benning não nos submete a um dispositivo de filmagem; o dispositivo importa como etapa anterior e como método de realização, mas não exatamente como obra. Na sua essencial trilogia da Califórnia – El Valley Centro (2000), Los (2001) e Sogobi (2002) – 105 planos foram usados no corte final, de um total de 226 filmados (proporção de corte talvez não tão grande para filmes narrativos mais tradicionais, mas certamente surpreendente para um trabalho de viés tão marcadamente estruturalista quanto o de Benning). O que vemos, ao final, não é tão somente um relatório de um experimento matemático (embora também o seja), mas uma experiência sensível que desafia a percepção dessas regras, desse rígido sistema anterior que determina as escolhas do filme. Alguém que assiste à trilogia da Califórnia consegue perceber que todos os planos têm a mesma duração? Não seria uma das mágicas do filme justamente produzir sensações de tempo tão distintas, embora o tempo objetivo de cada plano seja o mesmo? Para um cinema extremamente dedicado não só a questões estruturais, como também à passagem do tempo e às potências da câmera fixa, os filmes de James Benning são de um dinamismo constante e surpreendente.

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El Valley Centro (2000), James Benning

A constrição matemática, portanto, é o traço que antecede o desenho, e que é lentamente coberto (mas não apagado) pelas cores e formas. Desse encontro entre a subjetividade do artista (aquele que escolhe onde colocar a câmera e quando começar a filmar, que demarca cada corte na montagem, que, inclusive, estipula as regras que seu filme deve seguir) e uma representação da objetividade mecânica do aparato cinematográfico (esse sistema de constrições auto-impostas – o dispositivo, enfim), surgem filmes que não são nem uma coisa, nem outra, mas a solidificação mesma de seu próprio embate de realização, uma negociação entre a imaginação humana e a indiferença da máquina.

Essa proposta de uma fricção conceitual é, no fim das contas, uma forma de trazer para a própria forma dos filmes uma questão que lhes é central também como tema: as relações entre o homem e o mundo natural. Seja em filmes mais claros quanto a essa interação – como El Valley Centro, RR (2007) e Rhur, todos compostos quase inteiramente de intervenções humanas em ambientes naturais – quanto naqueles que supostamente pesam a balança para um dos lados – como no díptico 13 Lakes / Ten Skies, de 2004, que já carrega esse binômio no próprio título, casando um número com um elemento da natureza – James Benning sempre projeta suas paisagens (nos filmes mais recentes) e retratos (nos mais antigos) para um imaginário que os transcende (a história do cinema, da arte e, em última instância, da própria América) e que se completa no espectador.

RR (2007), James Benning

RR (2007), James Benning

Voltemos a Deseret, o filme de fato e não somente a descrição de seus procedimentos, e fica claro como as escolhas de Benning – os “algoritmos” que ele “programa” e que “fazem” o filme – vão muito além de um jogo de coincidências. A começar pelo título: “deseret” era o nome original dado ao estado de Utah pelos mórmons. Estamos, portanto, diante de um filme que parte de um deslocamento no tempo e no espaço, filmando hoje uma terra que já não é mais – algo que será reforçado pelo jogo arbitrário entre o material preto e branco, do século XIX, e a chegada da cor, no século XX.

Deseret (1995), James Benning

Deseret (1995), James Benning

Essa primeira escolha impressa no título já determina, também, o teor da maior parte das notícias que Benning seleciona do New York Times – em geral, com tom de estranhamento (quanto não beirando o sensacionalismo) – diante da comunidade mórmom e sua relação com uma idéia de América nativa (os índios). Assim como há uma dobra do Leste (Nova York) sobre o Oeste (Utah), James Benning sincroniza as notícias com planos de paisagens do Utah, nem sempre relacionadas ao texto que é lido. O resultado é uma padronagem aparentemente mecânica (o plano que dura o exato tempo de leitura de cada frase) mas que subverte uma lógica de ordenação clara ou automática, desmontando para, em seguida, remontar o padrão, que passa a abarcar cada vez mais elementos – Utah é isto e isto e isto e isto, e assim sucessivamente.

O gesto do artista é justamente o de colocar uma colher na engrenagem, de criar um sistema aparentemente autônomo para, no momento seguinte, reafirmar o quão deliberada cada operação artística realmente é. No momento em que nos acostumamos com as paisagens naturais em preto e branco, Benning insere planos de fábricas, de ruas, de hieróglifos e até de locações de intensa carga cultural, como o Monument Valley e o Spiral Jetty, obra de land art de Robert Smithson à qual Benning dedicará um filme inteiro anos mais tarde (Casting a Glance, de 2007). O que parecia uma análise combinatória entre um determinado conjunto de textos e uma coleção de imagens começa a se firmar como uma complexa articulação calculada (no que casa e no que descasa) que nunca se deixa fixar, se decompor em um sistema… matemático. Benning é um artista, e não um cientista, justamente por o rigor do cálculo ser o princípio, não o fim.

Deseret (1995), James Benning

Deseret (1995), James Benning

Há, na forma de Deseret, a mesma sensação concomitante entre ordem (cultura) e aleatoriedade (natureza) exposta no tema, na relação entre a paisagem bruta (natureza) e o reconhecimento (cultura) que se dá tanto na esfera das imagens quanto na dos sons. Ao relacionar texto e imagem, Benning não só cria uma imagem de fato para o texto (não só ouvimos o seu conteúdo, mas vemos a duração de cada frase, como se vê um trecho de texto em uma folha de jornal – e, nesse sentido, a clara aceleração de ritmo na duração do filme pode render estudos sobre a diminuição dos períodos no texto jornalístico ao longo da História… Benning não é um cientista, mas não se furta em produzir matéria-prima para a ciência), como destaca os aspectos rítmicos da fala que se camuflam sob a aparente mudez do texto impresso. É como se o diretor dobrasse o filme em diversos pedaços, em uma espécie de origami – construção que é tão geométrica quanto intuitiva, física. Esse equilíbrio rítmico, por sua vez, envolve o espectador, como se estivesse a ver uma música (Benning frequentemente diz que escolhe o ponto de corte e a ordenação dos planos por razões sonoras, e não visuais) da mesma forma que o texto, grifado em tinta transparente em cada uma daquelas paisagens.

Se “música” e “ritmo” entram na equação, é inevitável que os filmes de James Benning nos tirem a imaginação também a dançar. Basta o contraponto entre Leste e Oeste, em Deseret, para que a sensibilidade do espectador adentre processos de associações e de desdobramentos que produzem sentidos e reinscrevem o filme na História. Essas associações são tanto de natureza cultural – não se filma o Monument Valley impunemente: permanecem, naqueles enormes rochedos, os rastros de John Ford – como também política. No filme de 1995, é especialmente curioso como, apesar das visíveis (literalmente) diferenças de estilo, algumas das notícias publicadas já nas décadas de 1980 ou 1990 se assemelham, em conteúdo, a notícias do final do século anterior – indicando não só que, no período, há uma mudança mais acentuada no Leste (pelo estilo do texto) do que no Oeste (o conteúdo das notícias), mas também que não há uma mudança significativa no olhar que o jornal do Leste tem sobre este mesmo Oeste. Quando essas notícias são contrastadas a montanhas ancestrais e lanchonetes do Subway – todas conviventes no mesmo Utah – o diretor reafirma a parcialidade de todo registro cultural (as notícias e o próprio filme).

Esse tipo de operação, capaz de estimular um desdobramento mental a partir de uma imagem concreta, torna James Benning um cineasta especialíssimo, por produzir um efeito raro e extremamente rico no espectador: uma contemplação ativa. Embora suas vistas primem pelo rigor de composição mais tradicional e uma fixidez que remetem à pintura, esse engendramento das paisagens escolhidas com precisão em um sistema de relações de origem matemática é o que permite ao espectador mergulhar nesses espaços e buscar o que permanece latente nas profundezas da imagem. Questão de melodia, mas também de percussão.

A pulsação percussiva é um dado importante para um cinema que se coloca no limite do contemplativo, puro e simples, mas que depende tão vitalmente da batida do corte para renovar essa contemplação como ativa, na virada de um plano para outro (ou na mudança dentro do mesmo quadro, como no recente Stemple Pass, de 2012). Na verdade, a montagem dos filmes de Benning se aproxima muito mais do timing da comédia, com o corte incidindo no ponto exato para montar a gag entre o fim de um plano e o princípio do seguinte, do que das estratégias em giro infinito da videoarte. Mesmo quando a duração dos planos é pré-determinada por um sistema, o ponto do corte nunca parece aleatório – mérito puro do estado de atenção que Benning produz no espectador, que passa a reparar em todas as rimas possíveis dentro de situações aparentemente esvaziadas de mise en scène.

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Stemple Pass (2012), James Benning

Stemple Pass (2012), James Benning

Não à toa, por mais que o cinema de Benning remeta a reflexões acerca da música minimalista e do estruturalismo, quando a música se torna de fato presente em seus filmes – nos créditos finais da trilogia da Califórnia ou em rádios que parecem tocar diegeticamente nos lugares filmados, mesmo que tenham sido adicionadas na edição de som – ele opta por canções populares, não por peças eruditas. Se Andy Warhol é uma referência constante ao cinema de Benning, isso não se dá apenas pela insistência na duração ou o mergulho na fotogenia em filmes como Twenty Cigarettes (2011) ou instalações como Two Faces (2010), mas pela reconexão entre o popular e o erudito, a banca de jornal e o museu. Parte da política do cinema de James Benning está justamente em colocar em relação as nuvens no céu e as explosões de um poço de petróleo, os cartões de memorabilia de beisebol e os diários de assassinos (American Dream: Lost and Found, de 1984), Lumière e Méliès (a coleção de esquetes que é One Way Boogie Woogie, de 1977), os filmes de John Ford e o cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. De um lado de sua fazenda, uma cabana à Henry David Thoreau; do outro, uma à Unabomber.

Em realidade, mais do que planificar, o movimento do cinema de James Benning é sempre para dentro, para o fundo. Benning, afinal, sempre foi um artesão dedicado a expandir ao máximo os limites do quadro cinematográfico (para os lados, para dentro, para fora, etc). Seu maior trunfo é saber mostrar uma paisagem e reconstruí-la, pelo cinema, de maneira a fazer ver que, nas profundezas daquela paisagem, se acumulam pilhas e mais pilhas de restos da humanidade. As nuvens estão nas explosões, que estão nos cartões de beisebol, que estão nos diários dos serial killers, assim como Lumière está em Méliès e John Ford está dentro de Straub & Huillet. Não lhe basta estabelecer uma genealogia; Benning quer toda a História, de uma só vez. Seu cinema é justamente a síntese desse acúmulo, dessas muitas fricções entre camadas que se colocam umas dentro das outras.

Em um texto chamado Off-Screen/Somewhere Else, publicado no primeiro livro inteiramente dedicado a James Benning, que carrega seu nome no título (org. Barbara Pichler e Claudia Slanar, edição FilmmuseumSynemaPublikationen, Vienna, 2007), o próprio Benning escreve sobre um plano – o primeiro – de One Way Boogie Woogie. É uma vista frontal de um portão de garagem vermelho, com uma grade verde ao lado e um pedaço do céu azul logo acima. “Se você aperta os olhos, você vê blocos de vermelho, verde e azul – um quadro de Mondrian. Se não, se parece mais com um Edward Hopper”. Em ambos os casos, tudo reside no duelo entre um olhar e a superfície sólida e prosaica de um portão vermelho.

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One Way Boogie Woogie (1977), James Benning

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