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Mecânica e pulsação

  1. A silhueta de um mistério

No ano passado, Kaili Blues (Lu bian ye can), longa de estreia do jovem diretor chinês Bi Gan, se impôs como uma das mais alardeadas novidades cinematográficas do circuito de festivais. Vencedor do prêmio de melhor direção da seção Cineasti del Presente em Locarno, o filme arrebanhou adjetivos generosos de revistas como Cahiers du Cinéma, Cinema Scope e Film Comment, e foi aclamado pelo crítico J. Hobberman – não exatamente um acadêmico subserviente aos ideais da alta cultura – como “o mais elusivo e memorável filme que assisti em muito tempo”. A estreia em Nova York veio na ponta de lança do New Directors/New Films – tradicional festival em parceria do MoMA com o Lincoln Center, que, como sugere seu próprio nome, assume a responsabilidade de revelar, hoje, o futuro do cinema – e pouco depois teve lançamento exclusivo no Metrograph – recém-inaugurada sala de repertório de programação criteriosa que mira na cinefilia gourmet da cidade.

O prólogo por si só joga luz nessa enxurrada de adesões: uma lenta panorâmica da direita para a esquerda descreve as paredes de um consultório médico, coreografando o rigoroso movimento a uma sinfonia (de câmara) de reflexos, texturas e luzes que oscilam e piscam, trazendo modulação à movimentação mecânica e dramaticamente injustificada da câmera, que contrasta com a organicidade das entradas de cena dos dois personagens. Um médico conversa com um paciente (que mais tarde descobriremos ser também médico que trabalha na mesma clínica, mas em turno diferente), fazendo menções breves a seus encontros passados, aludindo a uma backstory que o filme não mostra – um casamento, uma última enfermidade, um blackout recente – mas que aparece ali como afirmação de um mundo que quer parecer já existir antes de o filme começar.

A câmera encontra Chen Shen (Chen Yongzhong) – ali, paciente – e repousa por alguns segundos, contemplando sua presença. O homem analisa a prescrição de seu colega, até que seu olhar direciona a câmera a retomar o movimento – sim, o movimento espontâneo agora ganha uma motivação, um olhar diegético ao qual se submete, passando da objetividade à subjetividade – continuando a panorâmica até revelar uma espécie de bacia de metal que pega fogo do lado de fora. A câmera passa então a fazer um dolly frontal, indo do interior fluorescente para o calor ruivo do fogo, em um grifo de intensidade, feito mosquito atraído pela luz. Essa súbita reorientação do movimento para o eixo Z marca a entrada de um cachorro em cena, aludindo a um extracampo mais amplo, que se põe a rondar o médico que olha para fora, debruçado sobre as grades da varanda, até o corte para a epígrafe que separa o prólogo do filme.

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Kaili Blues (2015), Bi Gan

É um plano que chama a atenção pelo rigor com que constrói o seu aparente mistério a partir de pouquíssimos elementos – uma luz que falha, uma parede fotogênica, uma fogueira na varanda – e que quase poderia estar em um filme de Jia Zhang-ke (ecos da abertura de Em Busca da Vida não soam despropositados), Hou Hsiao-hsien (até Adeus ao Sul) ou Apichatpong Weerasethakul (Phantoms of Nabua; Carta para Tio Boonmee). Quase, mas não exatamente. Sob a aparente segurança da direção e a discrição respeitosa com que o filme se filia a alguns dos mestres do presente, reside um incômodo: o que tudo isso tem a dizer? O que esse mostruário de texturas, movimentos e variações produz de fato? Qual o sentido encarnado ou produzido por todo esse balanço?

O mistério “elusivo” de Kaili Blues é fecundado neste primeiro plano, mas essa inseminação não é a torneira que se abre para deixar vazar o gás lentamente, em um crescendo asfixiante – na gramática de um cinema dito “sensorial”. É, muito menos, o inciting incident que disparará os planos seguintes, em uma espécie, ainda que difusa, de narrativa – falando em termos dramáticos. Tampouco, o mistério, aqui, se apresenta como um quebra-cabeças emocional que só se completa com a participação efetiva do espectador – pensemos em O Intruso (2001), de Claire Denis, e a forma como ele surrupia uma atmosfera de filme de mistério para se efetivar como um filme-mistério. Em verdade, diversos dos planos de Kaili Blues repetirão esse mesmo procedimento, independente de onde se localizam na timeline: traçar, com rigor e convicção de olhar, a silhueta de um mistério, articulando conceitos tão nobres quanto genéricos – tempo, passado, vida, morte, memória, obsolescência, primitivismo, a cidade em ruínas, o lúdico desinteressado, etc – que funcionam como boi de piranha intelectual para um jogo de fumaça que despista a falta do que dizer: um não-dito rigoroso, imersivo e profundamente insignificante.

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Talvez tomar um filme insignificante de talento como sintoma de um fenômeno mais amplo seja lhe conferir, injustamente, demasiado significado. Mas Kaili Blues se faz um bom exemplo justamente por sua “excelência”: há um vocabulário caro ao cinema contemporâneo sendo aludido, uma aparente segurança na articulação desse repertório, um quase flerte com o cinema de gênero (um filme de viagem no tempo) e um olhar de evidente apuro que fundamentam a solidez da enunciação. Falta-lhe, “apenas”, um enunciado. Em seu lugar, o filme oferece exercícios, contraposições, articulações, alusões, dialéticas que não geram síntese – estamos distantes, portanto, da dramaturgia via acúmulo de esquetes, seja nas mãos de um Wong Kar-wai ou de uma Athina Rachel-Tsangari – mas que fundamentam a aparência de um sentido: um globo de espelhos em um apartamento em ruínas; um parque de diversões semiabandonado; acenos higienizados ao budismo (a espiritualidade secular se apropriando do vocabulário da religião); afirmações de diferentes memórias afetivas; escavadeiras, trens e muitos relógios – índices linguísticos que, como se carregassem sentido em si mesmos, se acumulam em rocambole de prosa pseudo-heideggeriana que queima muita linguagem com o pouco que tem a dizer. “Memorável”, pois visualmente robusto; “elusivo”, pois ausente de maior sentido. Temos, aí, uma linha reta para o prestígio.

Essa aparência é construída por uma dedicação bastante focada a uma certa mecânica do mundo, que dá a Kaili Blues uma obstinação maquínica, um azeitamento rítmico que, em uma quase-narrativa sobre remorso e abandono em cenário pós-apocalíptico, não deixa de parecer ironia um tanto perversa. Koyaanisqatsi (1982) da terra arrasada: escavadeiras descem de caminhões, em um malabarismo circense; luzes de Natal trazem ritmo e colorido a interiores decrépitos; trens carregam consigo a mais-valia da história do cinema; um relógio é oferecido a uma criança como sedutora promessa de um outro mundo possível. E embora esse encantamento vertoviano com a mecânica do mundo traga, em si, certo fascínio visual, criando uma esperta mise en abyme com a própria materialidade da experiência cinematográfica, nenhum mistério de fato repousa sob ou sobre a casca da superfície. O que sobra é um embevecimento com uma máquina que funciona, mas que nada produz: uma máquina proto-estética.

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Nesse sentido, nenhum plano é mais eloquente do que o tour de force que toma boa parte da metade final do filme e que sela as páginas barganhadas nos cadernos de novidade. Em tomada única que dura mais de 40 minutos, em constante movimento, Kaili Blues passeia de motos (uma delas estraga, então é preciso pegar carona em outra), caminhonete, barco, caminha por exteriores e interiores diversos, cruza um rio pelo menos duas vezes, troca de roupas (deixando à mostra inclusive o microfone de lapela colado ao corpo), acompanha um rápido corte de cabelo, muda de ponto de vista vezes suficientes para fazer corar Brian de Palma, e chega ao seu adiado destino bem no fim da passagem de som de uma banda que se prepara para tocar na rua, a tempo de dar uma palhinha no microfone.

É um plano impressionante, sem dúvida, por toda a mecânica e coordenação que se esparrama ao longo de uma parte tão substancial do filme. Mas é também um plano revoltante por ser muito pouco além disso: uma mecânica de coordenação que transforma a mise en scène em uma modalidade olímpica na qual mais importante do que a construção de sentido, de presença ou de pura vibração, é cruzar a linha final do desafio auto-imposto. Nesse sentido, quanto mais melhor: importa pouco que a câmera pegue um barco para cruzar um rio, comprar um cata-vento de uma vendinha improvisada e depois tomar a ponte para cruzar o rio de volta. Sim, havia uma ponte, desde o princípio, e o cata-vento, de tão supérfluo (e ironicamente metafórico), é apenas a motivação dramática encontrada pelo caminho para justificar o movimento. Mas vejam só, a câmera pega um barco. Nada mais importa, pois nem mesmo a técnica se coloca como ambição; o que se impõe é a mecânica de um plano que, de tão elaborado significante, torne o significado irrelevante. O que importa é que os planos registrem o virtuosismo mecânico de sua própria realização.

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Bi Gan se coloca como um cineasta à espera de um filme, um olhar carente de matéria, uma coleção de expressões que aguardam um sentido. Enquanto espera, atua como DJ dos distintivos de cultura, apertando os botões certos nas sensibilidades cultivadas: uma manipulação hábil das durações, uma convivência entre diferentes esferas do mundo em uma mesma cena – aqui, mais pela montagem do que pela encenação –, um inventário de imagens e artefatos de aparência imediatamente evocativa e um rigor pictórico perto do exemplar (mas tão distante, pois no cinema de um Hou Hsiao-hsien, por exemplo, tão sustentado na fluidez interna do plano, não existe próximo ideal que não seja extremamente preciso em sua especificidade). Se tais credenciais parecem suficientes para colocá-lo como um cineasta promissor – e de fato o é – o entusiasmo geral com a promessa parece afirmar a triste autossuficiência do cumprimento de uma cartilha de expectativas em época que os festivais de cinema e a critica que os corteja se mostram cada vez mais satisfeitos em alardearem portfólios. Mas no papel envernizado permanecem os traços esboçados que fazem da mecânica do relógio, aquela que impõe o passo do presente com a regularidade de um metrônomo, a mesma intestina aos moedores de carne.

  1. A câmera que pulsa

Elipse: sala vazia de um multiplex em Times Square, o coração vulgarizado da cidade turística, poucos meses depois. Após meia-dúzia de trailers de novos lançamentos chineses, em sala hoje ocupada com Star Trek: Sem Fronteiras, Esquadrão Suicida Sully, escondia-se Three (Saam Yan Hang), quinquagésimo terceiro (número nada confiável, a despeito de toda conferência) longa para cinema de Johnnie To. Vindo do razoável prestígio crítico de Office (2015) – seu musical em 3D todo passado em um conglomerado distópico de escritórios – To localiza seu mais recente filme de ação inteiro em um hospital, se não exatamente realista, certamente com algum compromisso com o mundo tal como conhecemos hoje. Aos poucos, o filme vem angariando críticas de variável entusiasmo em veículos como Indiewire, New York Times e Variety, que univocamente o caracterizam como um filme menor de um competentíssimo administrador de formas, enquadrado na chave da satisfação do consumidor ávido por uma experiência de gênero que entrega o que se espera dela.

À promessa consumidora pautada pelo desejo de satisfação grita o voraz ímpeto cinefílico que só é ativado pela surpresa: um kammerspiel às avessas, Three brota de uma mesa de cirurgia. A câmera, quase sempre em movimento que independe de motivação dramática (pois a constrói), abdica de uma duração instalativa para construir um perspectivismo impossível: no desejo de totalidade que cerca o paciente por todos os lados, vai ao extremo de dar um plano subjetivo de dentro do corpo aberto – a câmera é instalada na cavidade revestida pelo tecido sanguíneo, até que a ponta de um bisturi atravessa o músculo (a tela), deixando a luz entrar, como em um furo de alfinete, naquela câmara escura e pulsante. O dono do corpo sequer é particularmente relevante à narrativa, mas sente-se o choque da entrada de luz do lado de cá da tela. O efeito psicológico que a malfadada cirurgia tem sobre a cirurgiã Tong Qian (Vicki Zhao) completa o tripé que sustenta a trama: sob a vigilância da equipe médica e da polícia, Shun, o bandido interpretado por Wallace Chung, provoca toda uma mise-en-scène da falência premeditada de seu próprio corpo (há uma alusão a backstory que diz que ele teria atirado em si próprio para obrigar que os policiais cessassem fogo e o levassem para o hospital) para negar a satisfação de Chen, o policial que tenta matá-lo (Louis Koo), ao mesmo tempo em que se torna provação para Tong Qian, a médica que quer salvá-lo para redimir sua carreira e vocação.

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Toda essa arquitetura dramática é apresentada em poucos minutos, com pinceladas ágeis que se perdem em um amplo mosaico, esparramando-se pelos corredores e salas de cirurgia, até encontrar clareira dramática na ampla enfermaria do hospital – espaço que dá margem a todo um desfile de tipos muito ao gosto do diretor. Os planos duram poucos segundos e se sucedem em um ritmo estonteante. Nada é descrito, localizado ou sutilmente indicado. Personagens são apresentados aos borbotões e mesmo um conceito tão simples quanto “protagonismo” parece colocado permanentemente em dúvida, a começar pelo título. Muito acontece, muito se vê, pouco se sabe.

Não se trata, porém, de um jogo de sombras ou de uma encenação desenhada sobre página rasgada de um atlas do extracampo guardado no bolso de trás de qualquer cineasta de gênero competente. Diferente de PTU (2003), Throwdown (2004) ou da tríade Eleição (2005-2006), Three faz parte da “fase clara” que Johnnie To começara a desenvolver no brilhante Mad Detective (2007, em parceria com Wai Ka-fai), e que atinge um patamar de regularidade à altura de Blind Detective (2013), não por acaso um filme sobre a visão. Nesses filmes, tudo acontece em alta luz: não há canto escuro ou meio-tom onde o mal possa se esconder. O que interessa à mise-en-scène de To aqui, como no ainda melhor Drug War (2012), é colocar todo um mundo em funcionamento, e retirar, dessa dinâmica conjunta, uma espécie de torpor, de desorientação, ou, finalmente, de epifania – mais Jean Renoir do que Edward Yang. Para isso, é importante dar tudo a ver, mesmo o que não parece ter relevo maior no avançar da trama – ou, nas palavras de André Bazin sobre A Regra do Jogo: “A sensibilidade pictórica de Jean Renoir se expressa sobretudo na atenção dada à importância de elementos individuais, uns em relação aos outros. Ele não sacrifica a parte para salvar o todo. Aí está o verdadeiro realismo cinematográfico, mais do que em sua predileção por temas naturalistas”. Dessa atenção aos detalhes aparentemente insignificantes, cria-se uma teia e acumula-se um ritmo, mais do que informações; um cinema para dançarinos, não para detetives.

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Os prólogos de ambos os filmes não podiam ser mais transparentes em suas distinções: enquanto Kaili Blues começa com uma disfunção elétrica (a luz que pisca; a alusão ao blackout) para, em uma jornada descritiva por uma clínica médica, encontrar seu protagonista (cá está ele, sublinha a câmera, ao encontrar Chen Shen), cujo olhar guia aquela eletricidade falha e tremulante à temperatura bruxuleante do fogo, Three começa com a intervenção cirúrgica luminosa em um mundo sem protagonistas para gerar uma espécie de ripple effect – a pedra que, jogada à água, produz ondas que se ampliam a partir do epicentro – que põe esse mundo em um estado de ebulição permanente, onde não há possibilidade de mistério (em dado momento, uma tentativa de incriminar Shun faz com que Chen esconda uma arma dentro de um saco de papel, e a câmera também estará lá, dentro do saco, revelando o golpe antes que seu sentido seja explicitado).

O enunciado, em vez de se esconder em frestas que fogem da luz, é devassado, ultra elaborado e incessantemente remoldado em múltiplas dobras que, costuradas sobre si mesmas, geram certa desorientação, até tornar a narrativa secundária. E se há, na abertura de Three, o rastilho de pólvora que promete uma explosão, a maior parte do filme transcorrerá como uma brincadeira de mau gosto, um riso de escárnio à face da convenção: com sua exímia habilidade na manipulação de ritmos, Johnnie To cria sucessões múltiplas de set ups que não desaguam em um pay off, reprimindo o crescendo dramático logo antes de ele eclodir à superfície – não exatamente um vazamento de gás, mas uma torneira aberta ligada a uma mangueira entupida (ou um hematoma). O que resta é a silhueta de uma trama que conserva a amarração mas dissolve os fios, e que é forte apenas o suficiente para dar sustentação a um movimento que espirala de maneira crescente, até ser subitamente abortado e então recomeçado, e assim sucessivamente. Nesse jogo programático de supra-negação dramática (uma vez que o drama é expectativa casada à incerteza), de contenção sem catarse (não antes de ser tarde demais), Johnnie To cria uma farsa em mise en abyme que não parece buscar outro fim a não ser o exercício tácito de seu represamento.

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A ironia é que, enquanto Kaili Blues atravessava uma maré baixa humanista para se ancorar em um mundo que se move feito máquina, Three parte da exacerbação de um funcionamento maquínico do mundo para atingir uma organicidade – não à toa, o filme espera pelas vontades de um corpo que resiste ao ritmo imposto pelos procedimentos sociais e até mesmo à lógica de sua falência auto-imposta, desafiando os prognósticos médicos assim como os manuais de roteiro. Aos poucos, aquele hospital que parece funcionar feito máquina passa a funcionar feito dança, e o filme – mais do que seguir ao compasso mecânico de um relógio, 24 vezes por segundo – serpenteia na torrente desordenada de pixels e impulsos eletrônicos que desafia o cálculo e se presentifica como organismo. Se Kaili Blues é uma grande engrenagem, Three encontra sua imagem síntese em uma ação que se repete, em grande plano-detalhe, sucessivas vezes, próximo ao final do filme: a bala de revólver que engasga, frustra e emancipa a expectativa do disparo.

A mangueira em algum momento há de rasgar, e a bala presa ao cano do revólver precisará encontrar um lugar para onde ir. Assim como Kaili Blues era palavrosamente encapsulado no seu longuíssimo plano dó de peito, Three também ruma para um grande momento que recoloca as bases de suas próprias questões e se consuma em uma espécie de não-plano: após uma cuidadosa elaboração – com direito a decupagem de torcer os nervos, como o brilhante momento que estanca o caos para se concentrar na poeira que cai do teto – o filme literalmente explode, congelando o movimento dos corpos propulsionados pela explosão em pleno ar, para que a câmera passeie pelos instantes represados.

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Mais do que um freeze frame ou uma super-câmera lenta (para ficar na linguagem televisiva), Johnnie To abole qualquer constrição de tempo e espaço, lembrando o deslizar incessante do mundo em CGI de Speed Racer (2008): corpos diferentes se movem em temporalidades distintas – tiros viajam à velocidade da luz e acertam corpos que flutuam pelos ares – enquanto a câmera plana como um espírito a atravessar paredes, enfim liberta da fisicalidade inexorável daquela mesa de cirurgia. Muito além da exuberância questionável do resultado, o recurso interessa sobretudo pela forma como ele presentifica um questionamento profundo de o que o cinema ainda tem a descobrir e mostrar. Se, por um lado, Three não está entre os grandes trabalhos do diretor, isso não se dá por acomodação ou conforto; impera aqui uma inquietude, uma curiosidade e uma capacidade de invenção sobre o vazio, capaz de transformar o nada em matéria, e o significante em significado.

  1. À dialética o que é de síntese

Há muitos fantasmas adormecidos no abismo que torna o espaço entre Kaili Blues e Three uma elipse, e não um raccord. É preciso cuidado para não acordar os fantasmas errados. Entre o compasso ritmado do filme que se adequa ao batimento do relógio e a sinfonia assincrônica que se pergunta sobre o estado dos restos do cinema após a implosão completa do tempo e do espaço, há muito a ser defendido e desconstruído. Apego-me, aqui, sobretudo à constatação mais simples de diferença. Se há, na escolha deliberada dos filmes, uma contraposição não arbitrária entre um jovem realizador e um veterano, tanto a solaridade inexorável do presente quanto o discurso cadavérico que tacha sobreviventes como “o último dos grandes” se mostram redutores: a noção de experiência move menos montanhas do que a de experimentação – palavra ao mesmo tempo adequada e desconfortável a todo filme digno de nota.

Em igual medida, seria possível usar essa diferença para defender uma cinefilia selvagem ou colocar contra a parede tudo que se convencionou chamar de “cinema de arte”. Para isso, dados são eloquentes: Johnnie To não só teve diversos de seus filmes recebidos com honrarias nos tapetes vermelhos que ditam o gosto médio da sofisticação cultivada – Cannes, Berlim, Veneza – como Three seria em breve relançado no mesmo Metrograph que abrigou Kaili Blues. Sabendo que há, naturalmente, um importante componente selvagem em toda cinefilia que se preze, é preciso localizar esse sentimento em um mundo onde Jacques Tourneur e John Carpenter são tão canônicos quanto Tarkovski ou Mizoguchi, e onde a presença de Johnnie To entre blockbusters que ambicionam pouco além da sua própria produção em série precisa ser afirmada, lá também, como exceção. Se, por um lado, a recuperação de um vocabulário pulp, oriundo da dita baixa cultura, é frequentemente requisitado na defesa do cinema de gênero para atacar o encastelamento de um cinema de autor que se contenta em afirmar sua própria genealogia, tal procedimento já há muito carrega os sulcos da ineficiência castigada.

O que há de exemplar nos dois filmes, dentro de seus contextos específicos de produção, difusão e recepção, aponta para um dilema mais amplo que passa por uma profunda necessidade de repensar e repropor as bases de uma cinefilia viva em tempos de formas cansadas. Do cansaço, surge a urgente interrogação diante de um repertório de procedimentos artísticos e críticos que, outrora significativos, já não dão conta do mundo presente, quanto menos do porvir.

Pois as vozes que vêm do abismo nos interrogam: o que querem, ainda, de mim? A questão que se faz urgente, no cata-milho cego sobre o teclado, é como achar as palavras (pois os fantasmas falam uma língua diferente da nossa, e só por isso falam aquilo que não conseguimos dizer) que deixem claro que “quero tudo que podes me dar”, e não “já tenho tudo que desejo”. O cinema, de hoje e de sempre, não basta. E o suspiro que alivia o otimismo do pessimista inveterado chega não com a constatação de que há filmes e artistas dispostos a perceberem e ocuparem espaços e tempos delimitados e já existentes, mas sim de que há filmes e artistas com a curiosidade e disposição de esboçarem espaços e tempos que ainda precisam ser inventados.


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