Blind Detective (Man Tam), de Johnny To (Hong Kong/China, 2013)

outubro 5, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

blinddetective

A força da saturação
por Fábio Andrade

O mundo é uma grande teia sensível tecida por fios de memória que se conectam às coisas, espaços e objetos. A cada encontro, toque, ou no simples ato de estar presente em determinado lugar ou situação, basta algum esforço de sensibilidade para apreender essa memória que foi impressa nas coisas e nos lugares. Pela presença, é possível reexperimentar o que já foi vivido ali, ver o que aqueles objetos testemunharam, e recompor uma história que passa justamente por esses testemunhos. Ao se submeter às mesmas ações que o outro se submeteu, é possível experimentar, também, um pouco de sua vida.

Toda essa premissa, tão rica e complexa, seria um prato cheio para esforços artísticos que se colariam fácil e voluntariosamente a adjetivos como “poético” e “sensível”. Mas, embora esta seja uma sinopse cabível ao que é narrado em Blind Detective, não é este, em absoluto, o caso do filme. Para tecer esta mesma teia e desfiar esta mesma impressão de mundo, Johnny To faz um de seus filmes mais estridentes, mais repulsivos, mais vagabundos. Daí, justamente daí, sai parte de sua mágica.

Pois em Blind Detective, é difícil até mesmo dizer que a beleza e complexidade da premissa se escondem sob camadas e camadas de saturação, ao ponto de ela não ser quase reconhecível – embora seja este, também o caso. O velho discurso autorista que a crítica francesa aplicou à exaustão (e com certa precisão) a determinados artistas do cinema clássico hollywoodiano seria uma tentação aqui, não fosse Hong Kong o túmulo de qualquer autorismo. Pois, na verdade, a complexidade da premissa surge, em Blind Detective, como dado ontológico: está lá, pura e simplesmente, sem nunca se colocar realmente como uma questão, como areia a ser remexida e removida à superfície. Não se trata, portanto, de disfarçar um coelho com fantasia de rato, nem de buscar, no coração do rato, a nobreza de uma lebre. Em realidade, ao longo do filme, permanece a sensação de que, uma vez atestada a presença desse núcleo de sentido, à crítica cabe falar a língua do filme e esquecer, por completo, essa mesma premissa. Blind Detective, afinal, é um filme de Johnny To, e To é um artista da superfície, da mais grossa e cascorenta superfície.

Em um primeiro momento, a dificuldade reside, porém, justamente nesta superfície. Pois, por mais que os filmes de Johnny To nunca tenham se baseado em ideais de elegância, talvez seja a primeira vez – ou ao menos a primeira em um bom tempo, uma vez que parte da filmografia inicial de To me permanece desconhecida – em que há, de fato, um esforço para trabalhar de maneira ativa com o repúdio do espectador. Esta nota, porém, diz mais sobre o crítico do que sobre o diretor. Blind Detective começa como uma atordoante gritaria, com uma montagem auto-evidente que se esforça por marcar a estridência de sua própria saturação.

É difícil pensar quando não há silêncio, mas, ao mesmo tempo, é difícil defender a premissa de que o cinema de Johnny To é um cinema que não pensa. Na verdade, To se encaixa na descrição que Uncas Blythe define, em texto recente no mubi, como o “autor vulgar” (em oposição ao “falso autor”): “The vulgar auteur takes professional pride in the absolute emptiness of their effects. (…) The vulgar auteur affirms the legitimate essence of the ideology of entertainment. He doesn’t do this ironically, or wink. (…) Vulgar auteurs imply that there is something fundamentally unserious about movies”. Nessa afirmação do virtuosismo que esculpe o vazio, resta manter os olhos abertos para tentar sobreviver ao caos.

Caos, de fato, pois, se em filmes como Exilados (2006), Mad Detective (2008) e Life Without Principle (2011) os flertes com o grotesco nunca atravancaram a fluidez da mise en scène, em Blind Detective esse atravancamento é sua própria razão de existência: seja pelas tripas, pés de galinha e patas de caranguejos que marcam cada refeição em tela, ou por gags que extrapolam todos os limites do politicamente correto, há um esmero na construção de grosseria do filme que busca o repúdio do espectador sem perdê-lo totalmente, e que cumpre essa intenção com enorme rigor. E, se a decupagem que isola os gestos e cria uma grande sinfonia de espaços-quaisquer remetia com facilidade a Bresson em Sparrow (2008), é mais difícil fazer esse tipo de afirmação quando o protagonista do filme está escorregando em uma poça de líquido amniótico. Mas o caos, aqui, é produto do mais severo controle, de uma pegada absolutamente firme (e Johnny To nem sempre tem a firmeza como a maior de suas qualidades) que nos toma pelo pulso e nos guia em meio ao ruído e ao excesso. Mas para onde?

Essa imagem da montagem como guia em meio ao caos é oportuna, afinal, Blind Detective é sobre um detetive (Andy Lau) que perdeu a visão e que segue desvendando (outra imagem oportuna) casos usando outras vias sensíveis (a memória das coisas e a projeção da imaginação). Ao assumir Ho Ka Tung (Sammi Cheng) como sua nova pupila (mais uma imagem oportuna), o que se instala não é somente uma relação em que o mestre transmite à aprendiz seus caminhos de sobrevivência e de sobrevidência em um mundo de imagens (e o trabalho de reconstituição dos crimes rende alguns potentes momentos de montagem, com faux-raccords que complicam ainda mais esse jogo), mas também o contrário: na comédia romântica latente sob a superfície do filme policial que é Blind Detective, é o detetive quem segue aprisionado às imagens de um passado visto mas já não mais presente (a personagem interpretada por Yanyuan Gao, por quem ele se apaixona através de uma janela de uma academia de ginástica) e que o impede a perceber, de fato, as imagens do presente (a latente relação com Ho Ka Tung, que ele passa todo o filme acreditando se tratar de uma mulher feia).

É nessa inversão que Blind Detective se contorce mais uma vez, e a comédia romântica que achávamos ser um filme policial se revela, em realidade, um conto moral. Toda a saturação produzida e reforçada ao longo do filme é, em verdade, questão de justiça social: se Blind Detective é um filme sobre como as pessoas se conectam nas mesmas ações, ele é, também, um filme sobre o poder de identificação no cinema. Na estridência de um mundo em um colapso de excessos, Johnny To reafirma, justamente ao restaurar esse pacto entre protagonista e espectador (inclusive e principalmente na deficiência, na cegueira ensurdecedora da sobrevivência em um mundo de tanto brilho e ruído), que há certas imagens que só se mostram plenamente a olhos cansados.

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