O Escritório (Hua lI shang ban zou), de Johnnie To (Hong Kong, 2015) e 11 Minutos (11 minut), de Jerzy Skolimowski (Polônia, 2015)

outubro 7, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

O Escritório, Johnnie To

O Escritório, Johnnie To

Vestindo os trajes do inimigo
por Pedro Henrique Ferreira

Um comentário preliminar. Já que falaremos de 11 Minutos, de excesso e de publicidade, é basicamente este o tempo que o espectador de praticamente todas as sessões desta edição do Festival do Rio terá de aturar de vídeos publicitários dos apoiadores do evento. Não se trata somente de acreditar que aos patrocinadores não seja devido o espaço de publicidade. É também e principalmente a crença de que não necessariamente um minuto de vídeo significa uma propaganda mais efetiva do que uma logo. É uma má manipulação do tempo, uma tentativa de absurda de quantificar. É como se, no fundo, estivessem a pedir que o espectador também chegasse à sessão com 11 minutos de atraso. Pior ainda que estes minutos perdidos no começo são depois cobrados no final das sessões: com pressa de preparar a sala para a seguinte, eventualmente acendem todas as luzes logo no começo dos créditos, e já até chegaram a cortar os créditos de filmes antes do final. Sigo na crença de que os créditos fazem mais parte dos filmes do que os vídeos publicitários anteriores. Dito isto, aos filmes…

Uma maneira cinematográfica possível de apontar um diagnóstico social é também incorporar nos aspectos formais da obra o regime estético do qual este mesmo diagnóstico faz parte. O que em princípio seria o fato criticado se torna a própria cartilha. Basicamente, assume-se o estilo atrelado ao problema apontado para, a partir dele, trazer à tona suas contradições internas, e então fortalecer a assertiva moral em jogo. É uma espécie de perversão, ora irônica, ora mais silenciosa. Estes dois filmes, O Escritório, de Johnnie To, e 11 Minutos, de Jerzy Skolimowski, fazem isso à sua maneira, concretizando um olhar de ajuizamento sobre o universo retratado, problemas que dizem respeito à lógica de funcionamento da sociedade atual. Embora ambos os filmes se utilizem deste mesmo mecanismo, atingem resultados distintos, mais bem-sucedido no caso do primeiro enquanto peca-se pelo excesso de seu uso no segundo.

O Escritório, de Johnnie To, acompanha os bastidores da vida corporativa de uma gigantesca empresa de investimentos durante o período da crise econômica de 2008. Originalmente baseado em uma peça de teatro, o diretor desloca o protagonismo para Lee (Wang Ziyi), um jovem estagiário recém-contratado, que testemunha e participa de todo o processo de transformação da gestão da empresa. Esta inversão do ponto de vista já é significativa de qual é o principal interesse de To na narrativa: lançar um olhar sobre um processo de corrupção inconsciente sempiterno no mundo empresarial. O jovem, cujo sobrenome significa “sonhos”, é uma figura carismática, aparentemente honesta, alegre e trabalhadora, que tem como obsessão crescer profissionalmente. Ao término de sua jornada, verá que traiu inconscientemente a sua principal mentora e tomou o seu lugar. Descobrirá também que sua par, a também estagiária Kat (Lang Yueting), é filha do dono da empresa e que assumirá um cargo elevado não pelo seu esforço, mas por sua herança genética. A relação temática já é colocada no leit motif inicial: o uso do elevador que conduz diretamente ao andar sem ter de enfrentar uma fila enorme no caminho. Kat o utiliza porque é filha do dono. Lee, porque cola em uma funcionária de alto escalão.

Para expor a vivacidade do processo de corrupção inconsciente, o diretor o contrapõe a um tom onírico, um otimismo reinante no espírito e no discurso da empresa como um todo. O gênero musical cai aqui como uma luva: ele é por excelência a expressão maior do encantamento, a possibilidade de repentinamente os atores interromperem a realidade e inaugurarem um outro espaço-tempo onde tudo é mágico e funciona por outras leis e dinâmicas. O capitalismo faz esta promessa. No entanto, sua realização acontece via pequenas ou grandes traições e corrupções. A CEO diz que Lee a recorda um outro empresário, este um cínico e desiludido, obcecado pela ascensão, que aposta no mercado com o capital da empresa e termina por cria-lhes um rombo. A diferença entre eles é que Lee sonha. E o grande conselho que a CEO lhe deixa é que ele nunca deixe de sonhar.

Este abismo entre o estilo otimista e a trama que expõe a realidade soturna do universo capitalista é visto com ironia e humor, reforçado pela artificialidade do cenário, das atuações fortemente icônicas e das composições milimétricas. O Escritório impressiona muito pelo habitual senso plástico do diretor, pela forma como conduz a narrativa e reinventa, a cada sequência, novas formas de olhar, e pela maneira como amarra um diagnóstico social a uma forma plástica. O único incômodo que o longa-metragem traz em alguma medida é justamente o resultado da absoluta consciência do diretor do sentido daquilo que está criando e desta distância entre um discurso e uma forma. As peças musicais não se amarram com a trama. Na maior parte das vezes, são repetitivas e parecem pouco acrescentar. De um lado, Johnnie To perde um tempo crucial que teria para se dedicar aos muitos personagens e à complexidade de suas relações. De outro, cria enormes barrigas no filme com o excesso destas peças que, se no início impressionam, eventualmente se tornam um pouco enfadonhas. O saldo final ainda é positivo, embora em muitos momentos a experiência do espectador seja posta à prova, o que não aconteceria se estas peças musicais se amarrassem de forma mais orgânica. Um pouco de inconsciência de seus métodos talvez aqui ajudasse.

A coisa se complica um pouco mais em 11 Minutos, de Jerzy Skolimowski. Inicialmente, o longa-metragem introduz uma quantidade enorme de personagens cujas relações não nos são muito rapidamente esclarecidas. Variando os pontos de vista da trama, saltando de plot a plot, indo e vindo no tempo, aos poucos as situações dramáticas vão se esclarecendo e o espectador nota que estas figuras todas se cruzam eventualmente. Que as idas e vindas temporais têm como propósito criar um cenário que reunirá a todos eles num único acontecimento. Precisamos esperar até a derradeira cena para que este encontro de todas as tramas se desenrole: um acidente violento que conduzirá à morte de muitos deles.

A engenharia é um tanto popular em filmes contemporâneos que tratam de relações de acaso ou efeitos-borboleta, e naturalmente a aproximação mais fácil parece ser a um Tom Tykwer, Paul Haggis ou Alejandro Iñarritu. No entanto, 11 Minutos se utiliza do artifício visando perseguir uma discussão um pouco mais sofisticada. O diretor Skolimowski dilui a estrutura por ecos e o fenômeno do acaso, apontando um denominador comum que move e reúne aqueles personagens naquela situação, enquadrando na razão um fenômeno que é aparentemente inexplicável. O que causa o acidente é o voyeurismo, a falta de espiritualidade, o vício, o adultério e o uso pornográfico da próprio imagem, temas que já lhe eram caros desde ao menos o seu retorno após quase vinte anos sem filmar, latente em seu último longa-metragem (Essential Killing) e bem explícito no logo anterior (Quatro Noites com Anna). Os personagens pagam por seus pecados com suas vidas. O acaso se torna uma espécie de ex-machina, um Deus que penalizará os homens por suas escolhas morais. Seus pecados individuais são inúmeros, mas o longa-metragem, num esforço exemplar de síntese, reduz a falta de espiritualidade à secularização da imagem, à sua produção laica, publicitária e voyeurista. No prólogo do filme, vemos imagens filmadas em diversas bitolas reunidas quase sem explicação. Ao término, assistimos à explosão do acidente por uma câmera de segurança numa central de vigilância da cidade, enquanto o quadro recua em zoom e mostra as muitas outras câmeras espalhadas pelo centro urbano, exibindo os mil olhos presentes no mundo contemporâneo, até que, finalmente, todas elas se transformem em um chiado e, finalmente, em uma tela chuviscada antes do black out.

Se a crítica é notável, a forma como ela é conduzida é pífia. Enquanto Quatro Noites com Anna produzia uma reflexão exemplar sobre estes mesmos perigos do excesso da produção de imagem na contemporaneidade, 11 Minutos encontra o seu limite em seu próprio pecado: o  excesso. Vestir a forma que está criticando é uma faca de dois gumes, e este terceiro longa-metragem de Skolimowski após o seu retorno infelizmente cai nesta armadilha. Ao invés do ponto de vista franco dos outros dois filmes, este multiplica os olhares quase gratuitamente ao absurdo (até, enfim, termos a subjetiva de um cachorro que serve pouco ou quase nada à trama). Ao invés do ritmo mais dedicado, a sinergia. Ao invés da tentativa de compreensão de seus personagens, a distância e o simples julgamento moral. Ao invés da articulação cuidadosa, o esforço constante em criar excitação e sedução. O filme acaba por promover no espectador aquilo que ele às vezes desenha querer criticar. Toda a reflexão sobre o que está na tela é relegada ao pós-sessão, pois, enquanto assistimos ao filme, estamos sempre tragados por sensacionalismos, imersos inconscientemente num torvelinho de choques, perdidos numa narrativa desconjuntada, que quer mais impressionar o espectador do que explicar o mundo. Aparentemente, 11 Minutos não entende que a resposta à alienação promovida pela imagem contemporânea é uma imagem mais espiritualizada e um olhar mais humano. Não pode ser simplesmente a sua crítica travestida.

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