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Ninguém solta a mão de ninguém

O nordeste sertanejo de Bacurau faz remissão ao retrato da região feito por alguns cineastas pernambucanos no pós-retomada. Ele é espaço de confluência entre a tradição e a modernidade (um cortejo de enterro ao som da guitarra elétrica amplificada). Tem como ponto turístico o museu, mas tem wi-fi aberto e localização no Google Earth. Se um O Céu de Suely fazia do calor vencido pela geladeira um dos signos de transformação desta geografia durante a Era Lula – uma paleta de cor vívida e brilhante contra a secura e o branco estourado com que os primeiros cinemanovistas pintavam o ambiente agrário – esta paisagística é aqui, primeiro repetida e sublimada (uma paleta de igual saturação), para depois ser deslocada: logo percebemos que estas ofertas ou conquistas do progresso passaram a servir à demagogia política. Os remédios oferecidos pelo Estado visam a zumbificação e a produção da depressão, os livros escolares velhos são virados por um caminhão, em frente à escola, como se fossem lixo. O povo local tem absoluta consciência deste cinismo. Do político, um agroboy eleitoreiro, a população local quer mais é distância, e prefere se fechar em suas casas a ter de lidar com ele quando vem pedir seus votos; não bestializados, mas bilontras, como escreveu José Murilo de Carvalho sobre a atitude brasileira diante do progresso republicano.

Este é o primeiro ponto, mas o segundo é talvez mais ventricular. O progresso conquistado nas últimas décadas pode ser sabotado e desfeito de uma hora para a outra. Basta um pequeno aparelho para atrapalhar o sinal de wi-fi. Se a água, signo do fim da seca, agora chega à região, atira-se nos tanques para esvaziá-los. Em síntese, não é difícil fazer com que Bacurau, de repente, desapareça do mapa de uma hora para a outra. Há aqui um esforço sociologizante de explicitar a fragilidade dos avanços sugeridos no local, e de repercutir também a forma como a dialética entre progredir e precarizar está às mãos das forças de poder – movimento que percebemos com muita clareza na vida política dos últimos anos, num país que flerta com o desmonte de todas as suas instituições e conquistas sociais. Por outro lado, é esta também a raiz do drama: estranhos fenômenos de desconexão começam a acontecer numa Bacurau que vive, até então, de modo funcional. E em seguida, há as chacinas. Rapidamente, descobrimos tratar-se de um grupo de norte-americanos suprematistas que isola o vilarejo de Bacurau de qualquer contato externo para brincar de caça humana, como o Leslie Banks de Zaroff, o Caçador de Vidas. Algumas escolhas estéticas e temáticas dos diretores saltam aos olhos nesta configuração.

Trata-se de um vilarejo idealizado. Primeiro, pela consciência que se atribui a eles da violência que sofrem nas mãos da associação entre Estado e forças estrangeiras; fosse esta paixão nacional-popular difundida, como Gramsci percebeu, a revolução já estaria a meio caminho andada. Segundo, pela espetacular capacidade de união perante a ameaça externa, que naturaliza a forma como conflitos preexistentes de traições, desavenças, etc. (alguns destes ganham as telas), deixam de importar em nome da causa maior. Iguala-se o líder comunitário encarnado em Pacote (Thomas Aquino) e o anti-herói cangaceiro de Lunga (Silvério Pereira), arquétipos que sempre tiveram posições opostas diante do abandono da ordem governamental, o da caridade e o do individualismo. Também, pelo modo operante como enfrentam violência e abandono, ao fecharem as portas da casa e deixarem as ruas vazias para o populismo do candidato ou a sanguinolência dos norte-americanos; a comunicação através de walkie talkies como forma de reconhecimento do ambiente, ou a divisão humanitária das refeições e dos remédios. É como se estivéssemos mais em uma comuna autogestionada que uma cidadezinha de interior do Brasil.

Não que a visão romântica da comunidade seja um problema, pois estas coisas todas passam o crivo mínimo da credibilidade (a generosidade local, principalmente), e muito do cinema clássico, de Ford a Hawks, também se fez em cima destas formas de mitologia do comunitário. O que chama mais a atenção e realça a fidelidade que Bacurau tem à exaltação daquele coletivo é, ao contrário, a sua força (e a ciência desta força). Em um filme realista e livre de qualquer desejo de sublimação como Os Fuzis, as armas só ficavam nas mãos dos militares, e o povo assistia o seu domínio abestalhado. Aqui, o povo pega em armas para se defender. Que as armas utilizadas contra o invasor sejam aquelas penduradas no museu é mais um indício ou esforço de valoração e crença no poder de reativar uma cultura sertaneja milenar. Esta cujo arquétipo deveria ser liberto e trazido de volta ao coração da comunidade, o cangaceiro – representado na figura andrógina e moderna de Lunga, que não é apenas produto de um caos sanguinário tal qual nossa filmografia retratou frequentemente, de Deus e o Diabo na Terra do Sol até Baile Perfumado, mas uma espécie de ‘caos orientado’ capaz de redimir o sertão e servir como chama movente a um grupo em resistência. Embora haja algo de belo neste discurso construído pela ficção, por outro lado, muitos movimentos precisam acontecer para que isto se mostre plausível pelo naturalismo da encenação. Ou seja, é preciso, dramaturgicamente, passar uma leve rasteira no espectador.

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Os indícios de conflito em Bacurau são um conjunto de acontecimentos extraordinários, da aparição de um drone sobrevoando à região, ao caminhão-pipa metralhado e a passagem de um casal de motoqueiros vestindo roupas hipercoloridas e fazendo trekking. Tudo que é ligeiramente atípico no vilarejo é alternado em uma estrutura narrativa multifocal, acompanhando vários personagens, numa varredura polifacetada pelos moradores e fenômenos que criam um certo mood de suspense. A origem dos acontecimentos estranhos não nos é explicada até que haja a chacina e uma virada, que redireciona todo o sentido do longa-metragem. Passamos a observar também o ponto-de-vista do inimigo, um grupo de psicopatas norte-americanos conduzidos por Michael (Udo Kier), que diverte-se elencando pontuações à partir dos números de assassinatos, e trabalham para isolar a cidade de comunicações externas para poder dizimá-la. A representação que é feita deles é mais vacilante, pois soma o imperialismo ao puro sadismo (liberalismo a nazismo), desejo de domínio do subjugado a desejo de sumária eliminação deles, numa dinâmica que talvez não seja tão aberrante se procurarmos representar em forma humana aquilo que parece ser, muitas vezes, os algarismos da ‘política externa’ trumpista. Mas o longa-metragem nunca reúne estas duas ideias, de modo que o imperialismo fica mais como dado metafórico. Como entidades ficcionais, estes personagens estão é mais próximos dos suprematistas brancos, aficionados por armas, que invadem escolas ou shoppings e fuzilam pessoas aleatoriamente, agora transpostos para a realidade brasileira. Há aqui um dado importante, pois Bacurau toma referências de gênero tipicamente norte-americanos, e parece fazer desta vilania também um espelho da sua lida com o modelo. Mas há algo ainda mais significativo.

O que acontece é que, a este grupo, é dado o poder de domínio da visibilidade. Estão no centro do olhar panóptico foucaultiano, que tudo vê, e por isto, tudo controla e determina, seja através da visão elevada do drone, do controle da eletricidade no vilarejo, e outras formas de arsenais modernos de força e coerção que lhe garantem esta posição privilegiada. São, à princípio, evidentemente mais fortes, e por isto, são temidos. No entanto, na hora do confronto final, o longa-metragem precisa ‘enfraquecê-los’. Quer dizer, estes precisam abdicar de tudo que lhes garante a superioridade bélica, abrindo mão das ferramentas de domínio do visível e de intercomunicação plena, isolando-se uns dos outros, e lançando-os solitariamente à caça – sendo esta a regra do próprio jogo que estabelecem para si, para que a tática quase vietnamita do vilarejo mostre-se vitoriosa. Esta é a rasteirinha. O ataque ganha também ares de suicídio. Não é à toa que os recursos de thriller do confronto final nasça não das vítimas, mas dos algozes, porque, no fundo, assistimos aos passos dos vilões adentrando voluntariamente uma armadilha. Tudo isto é necessário para sublimar a potência da união comunitária. E para que, no fim, nos regozijemos com a sanguinolenta vingança contra a opressão do suprematismo, o que parece realmente interessar aos dois diretores.

Há um certo prazer, é claro, em ver o casal de negros pelados dando headshot de espingarda ou Lunga esfaqueando com sadismo aqueles que os tratam como números a serem abatidos, as cabeças dos ‘turistas’ em praça pública e o prefeito vendado sendo expulso em um burrinho. São cenas evocativas, satíricas, fortes e bem dirigidas, a tal fotografia límpida manchada de sangue. Mas a funcionalidade destas cenas está à reboque de uma estrutura ficcional que precisa desarmar o adversário e quase desdizer a sua força inicial, executando uma forçada inversão de poderes. A ficção se molda, assim, com facilidade, ao tom reverencial do discurso sobre a resiliência, e, no fundo, com uma certa evidência, é este o projeto estético de Bacurau: a fruição do espectador é menos a das contradições da mise-en-scène, de um jogo de esconde-esconde mais aberto com os mecanismos de gênero, ou de um ‘embarque’ na diegese da narrativa, e mais aquela do direcionamento indubitável de um elóquio consagratório, criado por uma espécie de autor ex-máquina que manipula e desvia tudo que for necessário para se criar as sensações necessárias no espectador.. O longa-metragem não só parece ter a menor dúvida de que lado está – e é vero que, neste momento do país, não podemos ter -, mas mais do que isto, rompe qualquer barreira da dinâmica diegética posta a si mesmo, deslocando o que precisar ser deslocado e não temendo paradoxos, para fechar o sistema epitomar e concentrar-se na força expressiva de certas cenas, como as descritas acima. Nem os heróis, nem os vilões, são alvo de qualquer investigação (para além do libido de sua psicopatia); estão ali como peças do jogo já determinado. O bem é o bem, e o mal é o mal – afinal, são sob estas crenças planas que se criam comunidades. O cinema de gênero, em seus piores momentos, sempre replicou esta máxima. John Carpenter também fazia do mal, nada mais que o mal. Mas o mal era também (e sobretudo) o desconhecido. Aqui, ele é conhecido e demonstrado.

Há pontas abertas que Bacurau faz um certo esforço em ignorar. No fundo, este ‘jogo’ que Bacurau põe e depois repõe foi todo orquestrado por Michael, o mestre de marionetes que constrói e desconstrói a trama. É o personagem com maior potencial de interesse, e sobre quem talvez paire o grande ponto de interrogação. Ele tece os dados, o ritmo e movimento do thriller mais do que prepara uma chacina na cidade. Por que não ataca no calar da noite e dizima, repentinamente, uma cidade sem resistência nenhuma? Porque deixar vestígios e pistas aqui e acolá do ataque porvir, como se estivesse a anuncia-lo? E por que, enfim, entrega a si e aos seus companheiros à sorte criando regras (e mesmo atirando contra eles) que os desfavorecem? O que quer, afinal? Pergunto-me: não é ele quem temos de mais próximo de um representante do alter ego do narrador e dono absoluto da onisciência? Não acaba sendo ele – o psicopata com o mesmo nome do esfaqueador de Halloween – o responsável, por inversão, da refundação de certo sentimento de união ou urgência e estado de espírito de luta e resistência na comunidade? Ele não acaba por fazer isto mais do que o próprio cangaceiro? O paradoxo aqui é que Bacurau precisa fingir que a ação suicida de seu vilão epicentral é menos importante que a exaltação da comunidade e da renascença de uma mitologia, quando, no duro, é absolutamente o primeiro que faz o segundo, como se aqui, o filme tropeçasse no seu próprio cadarço desamarrado. Michael trai a trama ao trair a si mesmo.

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O regime da encenação opta por ignorar esta complexidade vislumbrada, tomando todos os códigos e personagens pelos seus arquétipos mais básicos, seu lugar no tecido social de Bacurau. Num retorno um tanto anacrônico e academicista ao personagem-comunidade eisensteiniano, a dramaturgia de Kleber e Juliano rejeita aprofundar-se na densidade individual de suas figuras, e toda instância psicológica ou dramática individual é rapidamente posta a baixo em nome da comunidade. O que se persegue é a ficcionalização de um discurso ou posição deveras retilíneo sobre o mundo, e a produção de situações imagéticas que o comprovem, exaltem ou lhe deem força, através de um domínio constante do que o espectador deve pensar e sentir em relação à cena, ainda que isto signifique passar por cima das mínimas contradições que se apresentem ao longo do seu percurso. É claro, isto é uma escolha formal, mas ela tem seus prós e contras. E o pior deles é que dota a trama de uma inevitável previsibilidade: a partir do momento que vemos a primeira morte de um norte-americano, por exemplo, já sabemos que veremos a de todos, um a um, sem oscilações ou desvios possíveis, sem perigos alarmantes de que a narrativa nos dirá o contrário, porque os algarismos da soma já foram reconfigurados para isso. Resta-nos o gozo da experiência destas mortes manipuladas.

Mas há mais que contribui para esta sensação de previsibilidade, e que diz respeito à forma como o longa-metragem trabalha os aspectos de gênero. Sobre o flerte com o modelo em Bacurau, talvez seja necessário levar adiante a discussão do movimento que o longa-metragem faz da assimilação e interdição à evidência, e enfim, ao didatismo e pleonasmo. Por que digo isso? Primeiramente, por que se trata de um filme sobre a violência para com o opressor (e, portanto, ao modelo). Segundo, por que citar suas referencias ao thriller, à ficção científica, ao western e/ou ao gore – sua filiação quase incondicional, tornada homenagem literal, a John Carpenter – não nos aponta muita coisa. Fala mais alto a forma como o filme lida com convenções e apropriações, não apenas na representação de sua iconografia, mas nas operações que realiza com elas. Ficar na primeira linha sobre o assunto, além de interditar certos pontos de acesso mais importantes de Bacurau, favorece os ‘puristas do gênero’; aqueles que não aceitam, sob hipótese alguma, que as formas mais clássicas do métier estão o tempo todo em mutação. É evidente que os diretores não evocam o espaço constrito de sobrevivência de Assalto à 13 DP (este, que também, por sua vez, já copiava isto de Onde Começa o Inferno, de Hawks) ou de O Príncipe das Sombras apenas para reproduzi-lo a ipsis literis; ou que a construção esfacelada da primeira parte seja em algum lugar debitária de, por exemplo, The Fog, não lhe obriga a levar a cabo o projeto do primeiro. Por outro lado, como o filme opera em relação àquilo que evoca?

Primeiro, por interdição. A nave espacial logo se revela um drone. As misteriosas chacinas da cidade interiorana são logo explicadas, e o tom do thriller ou sci-fi é interditado, pois, a passagem de um ponto-de-vista a outro elimina qualquer mistério e nos é garantida a mundanidade de tudo. Nos é dada a onisciência total da trama (e não é esta onisciência, desde os anos 1940s, o anti-thriller por excelência?): do por quê que Bacurau desapareceu do mapa, às balas perdidas no caminhão-pipa ou os problemas no sinal da internet – tudo nos é sumarizado. Esta alternância entre pontos-de-vista que gera previsibilidade, também é origem desta interdição. Uma criança corre para o mato. Um homem mau a espreita. O desenrolar da cena reafirma nossas expectativas. O suspense exige a sapiência do espectador. Mas por rastros, não que acompanhemos o inimigo. Um outro exemplo mais ilustrativo: um casal de moradores se desespera e tenta uma fuga de carro do vilarejo. Saltamos ao ponto-de-vista dos vilões e descobrirmos que eles os avistaram com um drone. Dois dos gringos são alertados, correm ao local e fuzilam o carro. O efeito é interditado. É como jogar xadrez consigo mesmo – você vai ganhar, se quiser, mas sabe também o que vai acontecer. Restam as iconografias do thriller, da ficção científica, do western ou do gore, mais que suas funções e modos de operação.

Depois, um velado pleonasmo. A repetição verbal do “eu não sei” na boca dos vilões de Bacurau como diapasão para a inexplicabilidade de suas motivações é significativa: os gringos precisam externalizá-las. Serial killers e personagens obcecados com a morte são, com alguma frequência, retratados nos thriller oitentistas ao qual o filme remonta, com pouca ou nenhuma justificativa para sua sanguinolência. Mas aqui, não basta não tê-las, é preciso dizer e repetir, como a garantir ao espectador comum o entendimento mais direto. O universo que Bacurau cria é positivamente singular, uma mescla de sertão moderno e profano com os tipos peculiares do mundo carpenteriano, que tem algo de único. Mas esta curiosidade se desfaz na segunda linha. O repertório ou tipologia não só se coloca diante do espectador; também faz questão de enfatizar a sua colocação, gritar suas essências e funções, como a indagar se o público realmente entendeu o que está à sua frente. Findo o regime histriônico com que Leos Carax filma uma cena de dança, ou o maneirismo por exagero com que Brian De Palma relê Hitchcock, para além da afetação do western de Sérgio Leone ou da aculturação irônica pós-moderna de Quentin Tarantino lidando com o passado cinematográfico, o que o cinema de autor parece querer com o gênero, hoje em dia, é utilizá-lo como chamariz para atingir um público mais amplo, e este didatismo é frequentemente das suas mais frágeis contra-moedas.

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Estas operações de interdição podem ser entendidas, também, como um modo de rarefação, concentração de esforços, ou mais uma forma de evitar ambivalências. O que Bacurau nos requisita com o mais pacífico relaxamento é a fruição de uma ode à luta romantizada, ordenada e fortemente encenada nesta direção, onde previsibilidades ou pleonasmos não deveriam importar (pelo contrário, são operantes) tanto quanto o puro prazer de ver nas telas estas coisas. O que por si só é uma verdadeira faca de dois gumes: ela tem um poder agregador, na mesma medida em que um poder de isolamento. Pois é preciso que eu compartilhe dos mesmos valores, crenças e desejos que o filme para que sua magia possa operar. Meu prazer com o cinema e a arte não é o da descoberta ou da transformação íntima, mas a experiência do gozo de ver ilustrado na tela uma forma visceral daquilo no qual eu acredito, como se eu também tivesse certeza absoluta que a catarse que eu sinto pudesse ser compartilhada com os próximos, e, de algum modo, por ‘instrução’ também com os distantes. De um lado, a identificação entre semelhantes, e do outro, a pedagogia para o diferente. Mas a incongruência de tal fruição é que a catarse é restrita a mim. O prazer com estas cenas de purgação é obliterado para quem não parte, de início, dos mesmos pressupostos.

O maior feito de Bacurau é provavelmente extra-fílmico. Neste sentido, há uma absoluta excepcionalidade do longa-metragem, tanto em relação ao presente, quanto em relação à história do cinema brasileiro. No momento de desmonte da cultura que vivemos, dos muitos ataques às instituições cinematográficas e do esforço cada vez mais evidente de censura, ver um filme desta natureza estrear em 290 salas no país, com o potencial de ultrapassar eventualmente a linha do milhão de espectadores, é, no mínimo, muito reconfortante, e no máximo, inédito. E neste momento, o significado que sua estreia em Cannes (e quantos diretores na nossa história estrearam dois filmes seguidos na competitiva?) adquire é impensável. Por outro lado, o desejo de refundação de um cinema de gênero à partir do autoral, com apelo popular mais amplo, conectado a instituições de poder mais consolidadas para que ganhe maior visibilidade, é também um projeto curioso – resta saber se trata-se de um diretor autoral penetrando o mercado, ou de um diretor autoral tornando-se um diretor comercial, mas ambos os casos parecem ter poucos precedentes nos últimos anos e apontar desejos e caminhos um pouco mais apartados da diletância para a geração pós-retomada.

Entre o fenômeno social e o estético de Bacurau, no entanto, há mais uma correlação do que distanciamento. Digo isto porque, ao contrário do que a incursão no mundo dos gêneros possa fazer aparentar, o longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles está longe de perseguir uma universalidade do público. Diante de um Brasil cindido, ele organiza-se narrativa e formalmente, para um nicho ou lado; embora não de forma restritiva, mas, pelo contrário, desejando ampliá-lo o máximo possível, e explorar sua máxima potência. No fim das contas, não estamos, também, diante de um filme não apenas sobre a exaltação de uma comunidade fechada em disputa contra o externo, mas também do esforço de criação e invenção desta comunidade ideal compartilhada? Não há implícito em Bacurau um pedido, nada humilde, de união sob a égide da sobrevivência diante do atual momento de terror, ainda que o prazer de ver encenada o ódio e a vingança seja o elemento unificador? Contra a fome glauberiana, que incorporava a miséria como fato estético e realista – e enxergava na violência a força máxima de amor -, esta sublimação forçada da comunidade não seria, ao contrário, a estética do ‘ninguém solta a mão de ninguém’? Não parece Bacurau empreender todos os seus esforços formais neste sentido, sem concessões, e daí também resultar seus principais defeitos? Ao cabo de tudo, o cinema vislumbrado aqui por Kléber e Juliano não procura tanto se distanciar, como fato artístico, daquilo que ele se tornou como acontecimento social. E para o bem ou para o mal, o paradoxo à mesa é este, porque Bacurau, embora comentando a si mesmo, é muito menos um grande filme e muito mais um grande fenômeno cinematográfico.


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