A Corrente do Mal (It Follows) de David Robert Mitchell (EUA, 2014)

setembro 18, 2015 em Colaborações especiais, Em Cartaz

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O mito do horror americano
por Francis Vogner dos Reis

Se a positividade do gênero Western gerou uma memória coletiva na cultura do século XX, a negatividade do gênero horror se afixou no imaginário assombrado de gerações que cresceram no período pós-1968. Na Mira da Morte (1968), de Peter Bogdanovich, talvez tenha sido o primeiro filme que sepultou o horror romântico (os monstros clássicos e os fantasmas de Poe) e abriu a incontornável vereda de um horror que colocava no centro a economia libidinal da América. No ano seguinte do filme de Bogdanovich apareceria A Noite dos Mortos Vivos, de George Romero. O resto é História. Daí se seguiria uma trajetória que legou um conjunto de obras (do próprio Romero, de John Carpenter, de Wes Craven, de Joe Dante, de David Cronemberg até Gêmeos – Mórbida Semelhança e Tobe Hooper até Força Sinistra) que figura entre as mais importantes da cinematografia mundial do século XX. Halloween (1978) e Christine (1983), de John Carpenter, Aniversário Macabro (1972) e A Hora do Pesadelo (1984), de Wes Craven assombraram o universo da classe média americana. Os monstros de Carpenter, seja o assassino sem rosto Michael Myers ou o carro Playmouth Fury 58’, eram a materialização de um mal que tinha origem no coração da vida comum de subúrbio: os monstros são parte do próprio metabolismo da comunidade. Mesmo o sono, a última fronteira e reserva físico-simbólica que apontaria para outros mundos, é onde o recalcado coletivo (Freddy Krueger) regressa para se vingar da comunidade, assassinando jovens enquanto dormem.

A Corrente do Mal, que estreia agora no circuito brasileiro, é resultado significativo desse percurso, sintomático de seu tempo histórico, e condensa uma série de signos que forjaram o ideário do American way do pós-guerra. Há ali o mito do subúrbio, o mito do automobile e o mito da juventude. No filme de David Robert Mitchell, a fascinação por um certo ideário dos Estados Unidos da América tem, ao mesmo tempo, solenidade de pompas fúnebres, um sentimento de memória desbotada e um tateamento do sentido da mitologia americana em uma terra, os próprios EUA, devastada.

Essa mitologia em A Corrente do Mal aparece em objetos referenciais (telefones, carros), na relação distanciada dos adultos, na trilha sonora minimalista, nas imagens de filmes de horror antigos que passam nos televisores de tubo (bobajada vintage), na confraria de adolescentes querendo fazer sexo, na ausência de adultos na trama. Como no filme anterior do diretor, The Myth of American Sleepover (2010), é o imaginário da cultura adolescente no cinema que se impõe na construção de um universo já cansado da avalanche de imagens com a ironia auto-referencial das duas décadas anteriores. Se impõe, então, uma nostalgia de certa inocência – paraíso perdido – perante as imagens. Como agora essa inocência é impossível, sobra o desejo de construir um fascínio de outra ordem, menos amparado em uma relação irônica, potente e perversa com as imagens (a série Pânico, de Craven, por exemplo), e mais em um sentimento de mundo que se traduz em um tom mais baixo que o corriqueiro em filmes de gênero. A Corrente do Mal dá atenção especial a detalhes e estados de introversão. Os personagens não são afeitos a grandes paixões ou a um humor que relativize o tédio e o horror. O risco seria, portanto, que o filme de Mitchell se enforcasse com sua própria corda (a rarefação dramática, a estilização da melancolia), mas o investimento no horror dá um propósito poético a essa inércia.

O primeiro plano é uma síntese que, de tão óbvia, é quase irônica: uma suburbana rua tranquila e outonal no fim de tarde com profundidade a se perder de vista. A calmaria dura poucos segundos, e o movimento de uma pan se antecipa ao aparecimento de uma garota que sai de uma casa, correndo em trajes íntimos e sapatos de salto alto. Ela ignora a interpelação do pai, apavorada com algo que só ela parece enxergar, pega o carro e parte. A garota aparentemente desiste de fugir do que a perseguia e aparece morta. Estamos instalados em um universo peculiar e familiar: na aparência de uma bucólica ordem, se imiscui o terrível. A família é impotente em salvar seus filhos e o sexo (ou a sexualização) é indissociável da morte.

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Na sequência do prólogo, o filme se concentra em outra casa de subúrbio, em outra adolescente, Jay (Maika Monroe). Somos instalados em um espaço doméstico e nos é apresentado um corpo que mantém uma relação erotizada com sua irmã, amigos e consigo própria, mais como condição do que como propósito. Jay é uma adolescente que vive em uma casa de subúrbio com a irmã e a mãe. Está prestes a fazer sexo com um rapaz com quem está saindo. Sua irmã e seus dois amigos ficam na sua casa assistindo a filmes de horror antigos em uma televisão de tubo dos anos 1970. Não vemos sua mãe ou qualquer outro adulto com alguma proximidade dos adolescentes (ou eles estão de costas ou distantes). Jay faz sexo com o rapaz em um carro no terreno de uma fábrica desativada, é dopada por ele e acorda amarrada a uma cadeira. O rapaz revela que ela foi contaminada por uma maldição, um espírito maligno polimorfo (a cada momento terá a forma de uma pessoa diferente) que a perseguirá para matá-la, andando lentamente no seu encalço para sempre. Para se livrar da maldição, deve fazer sexo com outra pessoa e passar a maldição adiante. Ela então passa a ver esse espectro que caminha em sua direção. Sua irmã e dois amigos a amparam, apesar de não verem a ameaça. Eles aderem cegamente ao relato de Jay. O cineasta investe na comunidade adolescente, mais do que na sua relação com as instâncias de autoridade, sejam os pais, os professores, a polícia. Isso é um achado, porque eles descobrirão um lugar, um espaço (Detroit), e assumirão por si sós a responsabilidade por suas escolhas.

A insularidade, tão importante em filmes como os de Romero e Carpenter, não é possível, e se manter vivo não é uma questão de artimanhas e peripécias, mas de assumir a pulsão de morte (o sexo) e lidar com as vicissitudes decorrentes dessa condição. Se o confinamento é impossível, logo o espaço é construído obsessivamente – com virtuosismo à beira do exibicionismo – acentuando distâncias, deslocando perspectivas: o trabalho minucioso da câmera (na duração e nos seus deslocamentos, no pathos dos seus zooms lentos e tracking shots) constrói espaços de constante insegurança e desabrigo. Por isso, o que interessa aqui, e o que vai interessar sempre no filme, é o espaço. Afirmação óbvia, mas que tem razão de ser, pois se na maior parte dos filmes de horror que citamos aqui a modulação do espaço serve como receptáculo e ressonância do mal, em A Corrente do Mal é a fluidez do espaço em si mesma que se impõe: o horror pulverizado na atmosfera. Quando a primeira garota que vimos no prólogo foge, nada vemos, só o seu medo e assombro. Não compartilhamos a visão do que a aterroriza, mas apreende-se a emanação do terror no espaço sem um referencial (um ser, um objeto) que determine a ameaça. Ora, mas Halloween, de John Carpenter não é o filme definitivo sobre isso? Sim, mas por mais que Carpenter construísse um jogo de velamento e desvelamento (deslocamentos de pontos de vista, a relação entre aparência e aparição), o horror tinha materialidade com evocação metafísica. Em A Corrente do Mal não existe o pensamento dialético de Carpenter e sua lógica histórica – coisa essencial para entender a complexidade dos planos realizados por ele. Aqui essa pulverização do mal na atmosfera tira do agente do horror a materialidade, fazendo-o abstrato e indeterminado.

Apesar da beleza, o filme correria o sério risco da abstração autofágica, entretanto, ela é neutralizada justamente por um elemento pontual, ainda que fundamental, que é a matéria histórica do filme: o cenário de Detroit, ruína do que um dia foi o maior símbolo do progresso americano, do capital, da era industrial e daquilo que cristalizava o American style: a indústria automotiva e o carro como signo. Tanto quanto Hollywood, a indústria do mito americano foi também Detroit. Quando Jay e os amigos vão atrás do rapaz que lhe passou a maldição, eles saem do subúrbio e adentram a desolação da zona industrial da cidade com suas fábricas desativadas, desempregados nas ruas e bairros fantasmas. Jay, da janela do carro, encontra a sociedade “pós-catástrofe”: as ruínas são os próprios emblemas da cultura americana e de um estilo de vida que se decompõe, mas que extrai disso também uma potência.

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O filme não faz sociologia a partir do cenário, fazendo das ruínas um vazio que dá sentido ao monstro. O interesse inclusive não é a alegoria, mas a tradução de um estado de espírito, uma “solidão poética e profética” (como escreveu Jean-Louis Scheffer), a poesia dos descampados, das ruínas e a solidão em grupo. Um sentimento de mundo e de geração. A catástrofe (que é o dado histórico do cenário de Detroit) é experimentada como destino humano. Assim, Jay estará sempre em fuga. Entrar nos espaços para se proteger é mais perigoso do que estar a céu aberto. Se o espectro polimorfo é indestrutível e caminha para sempre atrás de suas vítimas, o desabrigo cósmico dá mais possibilidades do que o confinamento espacial. O infinito do espaço aberto é uma possibilidade de sobrevivência, ainda que trágica, já que a fuga não tem fim e nem trégua.

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