cannes1-cabecalho

Às armas, cidadãos

Não tenho lembrança da competição em Cannes começar com três filmes em diálogo tão claro e direto, entre si e com o mundo à sua volta. Vindos dos EUA, da França e do Brasil, os filmes de Jim Jarmusch, Ladj Ly e Kleber Mendonça Filho/Juliano Dornelles conversam não apenas pela chave mais fácil da incorporação dos códigos de distintos cinemas de gênero (filme de zumbi, filme policial, filme de ficção científica/ação/gore) mas principalmente pela forma como, ao propor um olhar absolutamente grudado no presente sócio-político de seus países e do mundo, incorporam distintos entendimentos da ideia mesmo de “revolta”. De fato, de maneiras bastante distintas, são filmes que parecem se questionar: frente a um mundo cada vez mais violento e excludente, o que ainda pode o cinema – não apenas naquele sentido mais diretamente “social” (à la Ken Loach/Costa Gavras etc), mas principalmente no sentido estético em si. Que gestos cinematográficos, em suma, ainda podem ser potentes num mundo hiper atravessado por imagens e por um sentimento quase universal de estupor face a um excesso de informações circulando e um sentimento de impotência política crescente?

Além desse dado macro de suas narrativas/formas, algo curioso a perceber é a maneira como os três filmes são profundamente associados a uma ideia de geografia bastante essencial. A forma como exploram os espaços bem específicos em que se passam (o bairro periférico urbano de Montfermeil, as pequenas cidades imaginárias isoladas de Centerville, USA ou Bacurau, Pernambuco), não apenas os delineando quase cartograficamente, numa série de planos de localização e mapeamento (em dois dos filmes drones são personagens importantes das suas narrativas), como principalmente fazendo um esforço de construção das regras “não-ditas” que regem os laços humanos, criando aos poucos com o espectador um entendimento bastante preciso de como “funcionam” aqueles espaços, em todos os sentidos do termo.

Se optamos por nos aproximar dos filmes a partir dessa noção de local, em Les Misérables podemos dizer que a importância do mesmo influencia até a escolha do título do filme em si, pois a referência à obra de Victor Hugo é, antes de tudo, geográfica: parte importante do livro se passa no mesmo Montfermeil. Muito mais do que imaginar qualquer adaptação do clássico (ainda que haja um diálogo eventual com algumas cenas e imagens, e certamente temas, claro), é como se Ladj Ly propusesse aqui uma atualização a partir do espaço em si (e não é nada desimportante saber que o diretor é, ele mesmo, original daquele bairro). O gesto fundador, portanto, é pegar esse autêntico “patrimônio francês” (não só cultural, mas inclusive identitário) que é a obra de Victor Hugo, e tentar identificar, a partir dele, “onde estamos hoje”. Essa ideia urgente de “hoje”, inclusive, é marcada já a partir da sequência inicial: filmada de forma claramente documental, durante as celebrações nas ruas parisienses ao longo da partida final (e, portanto, da vitória) na Copa do Mundo de Futebol de 2018, essa sequência imprime ao mesmo tempo uma ideia de “identidade nacional”, típica desses momentos em que o esporte assume um papel de unificador patriótico, mas fazendo questão de marcar o tempo e distância que os jovens negros que protagonizam o filme precisam cobrir em transporte público para poder participar das celebrações no centro de Paris. De novo, uma geografia que define tanto – e vale aqui lembrar o quanto, desde a vitória anterior em 1998, a seleção francesa de futebol (“les bleus”) passou a ser, acima de tudo, um símbolo da dificuldade de definir o que é, hoje, “nacional” num país tão marcado pela imigração e pelas fissuras sociais advindas desse processo.

Da euforia nacional inicial, nessa espécie de êxtase tão passageiro quanto o de qualquer bebedeira em festas exageradas, o filme logo mergulhará no que será seu foco principal: uma espécie de ressaca na volta ao cotidiano. E aí entra a primeira decisão curiosa de Ladj Ly: tendo começado sua vida propriamente audiovisual filmando a atuação dos policiais no seu bairro (inclusive sendo responsável pela condenação de alguns por abusos), Ly decide penetrar na narrativa em sua parte efetivamente ficcional, depois desse começo em chave documental, justamente assumindo em algum grau o ponto de vista dos policiais – especificamente através da clássica figura de um “rookie” que vem do interior para seu primeiro trabalho nos “bairros difíceis”. Será a primeira de algumas decisões questionáveis que o filme toma, aparentemente num esforço um pouco exagerado de “humanizar” a narrativa a partir de algumas soluções dramáticas e visuais um tanto fáceis.

A verdade é que Ly não esconde sua admiração em especial por O Ódio (1995), de Matthieu Kassovitz, que localiza como um divisor de águas na relação do cinema francês com as questões da periferia – o que, embora compreensível historicamente, seria um pouco como pegar Cidade de Deus como um modelo ideal de retrato de um espaço periférico. Claro que há uma diferença enorme aqui, pelo simples fato de Ly ser um cineasta negro oriundo do lugar que filma (bem ao contrário de Kassovitz ou Fernando Meirelles), e é fato que essa diferença de origem se faz sentir principalmente na capacidade de construir aquele universo cartográfico e humano que mencionávamos, com uma atenção absoluta ao detalhe (num trabalho de construção de personagens bastante denso, principalmente na forma como permitem-se passear entre o cômico e o dramático). No entanto, ao escolher fazer seu filme como policial “tableaux” termina não apenas necessitando seguir uma trama de peripécias bastante esquemática como incluindo os agentes da lei como um universo igual em termos de protagonismo (inclusive com direito a cenas – especialmente frágeis – da sua rotina pessoal fora do espaço do bairro onde trabalham). Essa decisão soa politicamente débil, e termina fazendo com que a “revolta final” (quase um epílogo radical, que retoma de forma interessante a ideia das barricadas que vem da Revolução Francesa e tão importante na obra de Victor Hugo) não encontre toda sua contundência numa tentativa de “olhar por todos os lados” que acaba parecendo não escolher muito firme lugar algum para se olhar.

É bem o contrário do que acontece em Bacurau, filme que também se apropria de inúmeros códigos dos mais diferentes gêneros do cinema clássico (ainda que certamente John Carpenter possa ser considerado o principal referencial – com direito a nome de escola municipal na cidade ficticia que dá título ao filme), mas que sempre se assume como “obra de cinema” – diferente da postura “retrato da realidade” do filme de Ladj Ly. Kleber Mendonça e o parceiro Juliano Dornelles apostam que qualquer capacidade do cinema ainda iluminar algo sobre nossa realidade, que nos faça olhar para ela de outra maneira, deve vir da ficção mais radical (que incorpora desde drones “fantasiados” de discos voadores a motoqueiros hipercoloridos passando pelo sertão nordestino). A impressão que o filme dá é que os diretores decidem propor um desafio à realidade: ir sempre um tom acima para ver o quanto se consegue responder – e, infeliz e curiosamente, a verdade é que muitas das coisas que esse projeto de quase dez anos de gestação propõe como ficção delirante vão se tornando cada dia mais banais no Brasil.

Assim como em Les Misérables, a “revolta final” virá, mas o filme não se engana sobre qual o seu lado nesse confronto. O entendimento dos cineastas é que certas questões não podem ser relativizadas e que determinadas violências, de raízes profundamente históricas (como o filme explora tanto no espaço do “museu de Bacurau” como nos diversos anacronismos que coloca em cena – inclusive cinematográficos) não dependem desse gesto de “humanizar” os personagens. Bacurau não é, afinal, um filme de indivíduos, e sim de comunidade – principalmente na forma como torna a cidade e seu tecido social a principal protagonista, mas também na maneira como retrata as forças antagônicas como um grupo que, ainda que com eventuais fissuras internas, sabe muito bem o que quer. Mais do que tudo Bacurau faz um apanhado do DNA da violência secular brasileira, e utiliza os norte-americanos como um duplo espelho: pela violência cinematográfica que construíram como linguagem que sublima e exprime suas paranoias, e pela violência real que impingem e exportam de maneira abrangente.

Partir daí pode ser uma maneira muito curiosa de pensar a relação de The Dead Don’t Die, de Jim Jarmusch, com a história do cinema e a atualidade. Afinal, se retomar os zumbis que George Romero tão bem utilizou como metáfora social, a partir do contexto do fim dos anos 1960 em diante, em plenos anos Trump chega a ser um gesto quase óbvio (e não menos adequado), a pergunta que se pode (deve) mesmo fazer é: o que ainda sobrou nesse imaginário que possibilite dizer algo novo? A julgar pelo filme de Jarmusch (que, assim como o de Ly – ainda que de maneira muito distinta – começa e assume em boa parte o ponto de vista de três policiais tentando entender um entorno que se desmonta ao redor deles), justamente podemos pensar que não sobrou quase nada de novo, de fato.

O que se busca, então, frente a essa impossibilidade de até mesmo uma ilusão de originalidade parece ser revisitar, e afirmar de maneira ampla, um estado de estupor e inação – que, tão presentes hoje, são desde muito uma marca dos personagens em Jarmusch. Embora essa ideia em si possa ser atraente em princípio (a de que o mundo se aproximou do “estado de alma Jarmusch”, por assim dizer), há algo no filme que parece nunca decolar: talvez a ironia e o distanciamento, que nos anos 1980 ou 90 emanavam potência como gesto forte de recusa a determinadas catarses típicas do drama clássico americano, tenham se tornado mais que insuficientes. Na verdade, a sensação frente ao desencanto e ao humor “I don’t really give a fuck” de Jarmusch e seu elenco neste filme é de que, tristemente, estão seguindo por detrás do seu tempo, agora. Dessa forma, o filme termina emanando um sentimento de anacronismo pouco produtivo e uma passividade profundamente desagradável.

Se nos dois filmes anteriores a revolta era iminente, aqui o “apocalipse zumbi” acontece num ambiente quase de tédio. Nem humanos nem zumbis são movidos por nenhum sentimento, com trocadilhos, vivo. Acontece que em Romero, por exemplo, a vida sempre importa, de uma maneira ou de outra. E a crítica à sociedade, conforme organizada modernamente, era uma que partia de um lugar de quem sempre acreditou, no fundo, que tanto zumbis como humanos poderiam ser mais do que são – e o horror é que não sejam. Pois, neste Jarmusch ao menos, o constante apelo ao riso assume um caráter de desinteresse profundo – por humanos e por zumbis. Ele parece propôr que talvez o poder do cinema seja simplesmente retratar uma falência generalizada, sem qualquer sinal de engajamento, inclusive e principalmente emocional (entre personagens e do espectador para com estes). É um projeto possível de cinema, claro, mas também um inegavelmente limitado – e, acima de tudo, de um cinismo muito menos cáustico e incômodo do que o cinema dele sempre teve.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema. Dirigiu quatro filmes, foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Fundador da Semana dos Realizadores (2009), foi programador para vários festivais do Brasil. Atualmente é parte da equipe de curadoria do Olhar de Cinema e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


Leia também: