Only Lovers Left Alive, Jim Jarmusch (EUA/Reino Unido/Alemanhã/França/Chipre, 2013)

outubro 18, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fabian Cantieri

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Filosofia que arrefece
por Fabian Cantieri

Em Only Lovers Left Alive, Jim Jarmusch se apropria do mote de filme de vampiro muito mais pela idéia de como estes seres reconfiguram nossa metafísica do que propriamente para mergulhar num específico cinema de gênero. Aliás, este cinema de gênero é constantemente rechaçado por outro tom – no lugar do horror, a banalidade do monstro; no lugar do suspense, a suspensão. Dos primeiros planos que giram em círculos ao alto e em câmera lenta, até o penúltimo plano do filme, em que os protagonistas olham suas presas, parecemos a todo instante ter que firmar um pacto de uma crença de savoir faire, como se Jarmusch nos dissesse sempre “a questão aqui é outra”.

Até aí nada de novo, como já dizia Fábio Andrade, em crítica sobre Hahaha, de Hong Sang-soo, sobre essa tendência de um tipo de cinema americano “pós-moderno”: “São todos filmes que se apropriam de uma aparência já absolutamente assimilada pelos espectadores [no caso dos americanos, o cinema de gênero(…)] para, sorrateiramente, tirar o chão que sustenta esse conforto”. A diferença é que aqui esse conforto, ao invés de ser pinçado para fora para receber com gratidão a tensão do não-compactuado, é injetado a conta-gotas para dentro durante o filme todo. Há uma insurgência de uma rarefação via slow-motion, artifício que parece mais um maneirismo tropo para alcançar um torpor inatingível. É um filme rock’n’roll de uma placidez sem tamanho.

Mas se não estamos diante de um cinema de gênero nem tampouco de uma armadilha que nos desloca de um lugar comum, nos situamos diante de que? Qual seria esta questão outra de Jarmusch? Este ponto, sublinhado várias e várias vezes, a começar pela obviedade de seus nomes – Adam e Eve –, é o fardo de carregar o peso da História. É repensar a imortalidade por uma outra chave além da fé cristã ou dos contos de “happily ever after” (até por que este ever sempre tem um fim não dito: a morte). É pôr em ação este confronto com a metafísica para ver o que sobrevive, o que permanece inalterado, o que se deteriora e o que se transforma.

Nasce de maneira geral uma dicotomia de mortos: os vampiros e os zumbis. Os vampiros que sobrevivem às guerras, às pestes, às hecatombes, aos genocídios, aos homens. Os zumbis que, na própria definição do termo, já não são mais homens, apenas mortos reanimados, que vagueiam sem norte, tateando a esmo sua fronte. O padecimento maior de Adam (Tom Hiddleston), sua grande dor, é ter de sobreviver a gerações e gerações de mortos recém nascidos e ser como eles: afásico diante das “questões últimas”.

Para Adam, só existe um respaldo possível – a arte. É um romântico, no fim das contas. Não vê escapatória para a tragicidade de sua condição anormal; seu escapismo está lá na fuga de contato humano, a carência de um sentido último o corrói. Seu espírito romântico resvala em Schubert, Byron, seu nome médico é Fausto. A lenda alemã que cunhou Fausto sintetiza todos seus arquétipos e o reconfigura. A desilusão com o conhecimento de seu tempo agora se abre para a eternidade. Não há progresso ou espaço de tempo possível que forneça um conhecimento para além da matéria viva, para além de seus corpos, para além da mundanidade do mundo.

Eve (Tilda Swinton), porém, aparenta ser mais consciente e saber de suas limitações. Parece ter alcançado suas respostas e de fato se mostra mais apaziguada consigo mesma. Quando Adam reclama sobre os zumbis, ela retruca algo como: “não adianta ficar assim, no final das contas o que vale é dançar”. Diante de um passado e futuro intermináveis, ela ainda consegue tomar consciência do presente. Sofre com a morte de um conhecido, regozija-se com a dança. Sabe que a vida está nesta fruição da presença do instante. Não é como Ava (Mia Wasikowska), este ser contemporâneo, que só se move a partir das pulsões do imediato, pois tem a parcimônia das conseqüências – vive seu tempo, o tempo de sangues engarrafados, em vez de morder o primeiro rapaz da noite por ser “fofo”.

Nestas características do casal, encontra-se a grande potência da premissa de Only Lovers… e seu fracasso como realização. A materialização dos personagens é toda construída a partir de metáforas que simbolizam algo muito maior do que cada cena em jogo ali. Isto poderia vir a ser acachapante, não fosse tão transparente e jogado ao primeiro plano como fundamento balizador da estória. A música do homem que compôs para Schubert, que achava Byron pernóstico, não nos atinge. Estes mortos que não são zumbis, por ironia do destino, não conseguem aflorar vida própria para além de esquematizações filosóficas. Não existe resquício de Henry Ford em Detroit, porque ali isto é só uma referência do passado. Algumas piadas como a do Fausto, incorporam à narrativa e nos acresce; outras, como a de Stephen Dedalus no passaporte, lembram as armadilhas que Woody Allen cria para si mesmo em Meia Noite em Paris (2011) e das quais costumeiramente conseguia se desvencilhar. A dança marroquina que poderia nos embriagar com sedução é um amálgama cultural que arrefece. O amor, sentimento mais nobre da humanidade, é filmado de forma tão corriqueira aos olhos sedentos de quem não mais alcança esse ineditismo da paixão que melhor mesmo é dar fim num bom contra-plongée de caninos vampirescos, como num velho filme de gênero. 

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