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O Cassavetes performático e fantasmático: A via-crucis pática em “A Morte de um Bookmaker Chinês”, “Noite de Estreia” e “Amantes”

“Se a mimeses só representa em imagem o que viu, a phantasia também o que não viu”

Flavius Filóstrato, Vida de Apollonius de Tyane

“Que fórmula encontrar para dizer ou pensar que o falso é real?”

Platão, O Sofista

“Se a sujeira desempenha um papel positivo sob certas condições, é porque a ausência de forma possui um poder criador. A sujeira, a loucura, a morte – em suma: tudo o que é, em relação a um sistema, o negativo e o outro, deve ser de qualquer forma confrontado e integrado àquilo mesmo que ele exclui”.

Do Excremencial, Mary Douglas

 

Energeia e Sôma: O autômato espiritual

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Em uma cena antepenúltima de Amantes (Love Streams, 1984), Sarah (Gena Rowlands) delira-se no teatro e musical, enfim partner da casmurra filha que a rejeitara o filme inteiro: Sarah é agora este pássaro canoro recoberto de azul, a quem a menina concede a coloratura de um duo amoroso, no entanto dolorosamente percutido por vibrattos de lágrimas e gritos que nos revelam que a reconciliação é o expediente à fórceps de uma mise-en-scène inconsciente, que a pobre Sarah improvisara na casa do irmão, transformada em celeiro de Noé: um mito privado que reelabora um mito primevo, onde a Casa e a Mãe serão nosso Destino (cênico) como selaram nossa Origem. Mas não: o que temos é apenas um sonho mal ensaiado, com dicção trôpega e semicolcheias desafinadas, pois isto é tudo o que resta à mulher. Talvez em nenhuma outra cena apareça a essência deste cinema do Cassavetes mais tardio, “performático-fantasmático”, arte assombrada pelo patético, corroída por agouros de morte iminente, de falência e de abandono: a arte desses performers jazzistas, que se reinventam entre o gin e a ambulância, seria o lenitivo da vida que não foi ou a celebração mortificante da que poderia ter sido? Noite de Estreia (Opening Night, 1977), A Morte de um Bookmaker Chinês (The Killing of a Chinese Bookie, 1976) e este Amantes precisam beber para esquecer, celebrar talvez, mas sempre como estes entes en sursis, frágeis silhuetas contra a manhã que os vai engolfar: a figuração em A Morte de um Bookmaker Chinês – o mais terminalmente pessimista dos três – não nos convida justamente a um repasto expressionista onde paradoxalmente o sujeito Cosmo e comparsas foram tragados pelo infigurável destas voláteis ondas de luz e de sombra, destes cortes em stacatti? Desbastados os contornos, elididas as fronteiras da figura e erodida sua temporalidade, o homem pode terminar de ser o centro de tudo, e tornar-se este autômato espiritual da força e do fantasma, princípios destes melhores Cassavetes.

Se o onipresente álcool é o meio (de cultura) indispensável na confecção destes teatros domésticos, psicossomáticos, psico-melodramáticos, é porque este catalisador afetivo, como escreveu Sylvie Pierre, “tem como características a indução da hipersensibilidade e hiperlucidez, enternecimento e vidências”; o álcool abre uma clareira na interioridade do sujeito, tornando-o poroso às intensidades circulantes do mundo e à energia sedimentada nos corpos imanentes, alterando/alterizando não apenas cognição, como Nomos e ethos: não foi Chaplin quem nos deu o paradigma quando, em Luzes da Cidade (1931), nos apresenta o rico misantropo que, sob o efeito do álcool, converte-se em generoso dispensador de afeto? O corpo então se torna ultra-afetável; e não é este agora o “mundo” no cinema de Cassavetes?, não mais a mônada coordenada pela ousia do raccord diretivo e da adstringente frontalidade clássicos, e sim pela energeia do tempo intermitente, do corpo cambaleante, do espaço diferencial, que se modula segundo a força do meio? Um décor móbil, objeto das intermitências, entre eufóricas e mortificantes, do Outro; uma outra Física, antes einsteiniana que newtoniana; e um outro teatro também: se o Theatrum mundi clássico encerrava os corpos nesta abóbada que o chiaroscuro concertava segundo o diapasão do Pai, agora temos este teatro pobre ou cruel do happening, onde os corpos se desperdiçam segundo a economia, histriônica ou agonística, de uma entropia que, como na fórmula de Zaratustra, “os pode matar ou fazer mais forte”: o teatro é esta cartada extática na Persona como a última, e talvez por isso ultra-potente, mise en scène; é o que lhes vai permitir, apesar das tentações demoníacas (e talvez “com elas”), chegar ao fim da noite; e o palco onde esta performance se engendra, como coxias, claque e proscênio, agora são Eu.

A centralidade do ator em seu cinema se legitima tripla e coerentemente; ela é devedora de uma Física, uma metafísica (de artista) e um ethos: a Física é energética, e não mais atomística , pois vive destes cimos vertiginosos que, à semelhança dos picos e das crises maníaco-depressivas do alcoólatra, os preserva nesta instabilidade centrífuga e tensão onívora que pertencem de direito ao metabolismo demiúrgico do artista; a “metafísica do artista” nutre-se de uma Hubris da máscara, cultua a onipotência do falso, a valoração exaltada do simulacro “encarnado”; e o seu ethos consagra o Dom de si (ao Mundo, ao Outro) como a moral desta mundanidade afetiva: ser em Cassavetes é mitsein; é ser-com e ser-entre.

A demiurgia “artística” é de natureza oscilante, equilibrando-se (mal) entre a aspiração mercurial dos abismos e o élan entusiástico da criação, já que as vacilações sísmicas da Força são essenciais para empreendermos o inventário justo deste cinema da Energeia: Mabel de Uma Mulher sob Influência (A Woman Under the Influence, 1974) talvez seja seu modelo paradigmático de “aprendizagem” para a mania como para a depressão, modulações afetivas da Gesta tragicômica de seus épicos de copa, cozinha e bar; mas qual o segredo deste teatro paroxístico, que dança sobre o abismo? Qual a senha de seu spleen, o Abre-te-Sésamo de suas coxias? Amantes, A Morte de um Bookmaker Chinês e Noite de Estreia são filmes onde a euforia e a descontração impenitente desses performers mundanos seriam impensáveis sem os flertes com a depressão, o “suicídio lento e gradual” pelo álcool, a histeria, a iminência da velhice ou da falência: onde teatro sem fantasma?, perguntaram-se Eurípedes e Ibsen como Miller e Lorca; sim, este spleen é maldito, e esta história já a conhecemos: o romantismo não narrou outro conto iniciático, o surrealismo outra libações de amour fou; o cinema de Cassavetes talvez atualize para a nossa dor e o nosso beat tardios uma intuição muito antiga e de vasta posteridade na cultura underground do Ocidente que conta, e que essencialmente consiste na relação, nem sempre evidente mas clarividente, entre a Máscara (prosôpon), o Fantasma e a Revelação, relação de que o templo de Elêusis e o teatro experimental La mamma foram os arquetípicos e eqüidistantes pontos de celebração, no princípio como ao ocaso desta vertiginosa trajetória genealógica.

Conjurações esotéricas: Eu sou um Outro, ou O espelho filogenético de Myrtle

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Jean-Pierre Vernant, em seus estudos sobre o cadáver ultrajado e a bela morte na Grécia antiga, fala-nos de um intrigante espelho à entrada do templo de Elêusis: “Ultrapassar um ponto, atravessar um rio, uma fronteira é deixar o espaço íntimo e penetrar em um horizonte diferente, espaço estrangeiro e desconhecido onde arriscamos, confrontados àquilo que é outro, de nos descobrirmos sem lugar próprio nem identidade. (…) O espelho do templo realiza o arquétipo dionisíaco de nos manifestar a alteridade no seio do Mesmo: ele foi confeccionado e polido de modo a que o fiel, ao contemplar-se nele, veja seu rosto em uma superfície baça, opaca; só ao fundo do campo é que se vê claramente: o espelho é para revelar este Totalmente Outro, que agora sevicia o Mesmo do fiel”.

Como o espelho embaçado em primeiro plano mas vaticinado a uma inesgotável profundidade de campo onde o deus deve aparecer, a Cena teatral em Noite de Estreia é dupla, e obedece a esta topografia de Revelação “superfície e fundo” oferecida pelo modelo grego; mas enquanto no Mistério o “teatro do divino” é de natureza ontológica e mítica – e portanto permanece no arrière-fond de um horizonte, teleguiando o front dos entes -, em Cassavetes esta profundidade advém ao primeiro plano, reverberando no espécime indivíduo, e torna-se existencial e somática: Myrtle Gordon (Gena Rowlands) é uma atriz reconhecida e mesmo famosa dos palcos da Broadway, mas à medida em que bebe sempre e envelhece paulatinamente, por circunstâncias páticas alheias à sua vontade, ela acaba tendo acesso a esta Cena Outra, na qual o divino grego se resguardava do olhar indiscreto do fiel: é o fantasma de uma menina atropelada, ou o duplo jovem de Myrtle (Nancy Stein) que será o seu cicerone, o Virgílio deste Purgatório da meia-idade alcoólatra. A profundidade de campo do deus no espelho é agora vertical: antena mediúnica das inervações do id, dos feitiços do demoníaco, daquilo sem o qual o indivíduo Myrtle seria talvez bem mais feliz; mas não se pergunta Cassavetes, em um ambidestro movimento e com secreta ironia, se o que destrói a mulher não seria ao mesmo tempo o dom envenenado de onde se origina sua arte? Então, novamente: haverá teatro sem fantasma?

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Um agreste diletantismo do olhar, um frescor infectado do gesto, uma Cena agonística tomam o lugar do teatro establishment, e seqüestram a atriz para a sua toca; mas pensemos se esta experiência de violação e cooptação por um teatro mais originário não estaria desde sempre disponível ao universo pático de seus personagens, situados sempre no “olho da tormenta” do Mundo e dos corpos? O espelho que Nancy Stein oferece a Myrtle é uma superfície onde a filogênese dos personagens de Cassavetes encontra um paradigma de enunciação: eles desde sempre precisaram deste Outro diante do qual se encenam, e neste movimento em direção ao Mundo esbarram na secreta câmara do si-mesmo, aprendendo a ser si-mesmos; este destino não respira justamente o pathos de um universo regido pela energia? Extintas as fronteiras do indivíduo, estamos lá, estamos com todos e sempre; somos todos e sempre: Love Streams não é o título preciso para designar esta coalescência do ser, esta abertura ao Outro e pelo Outro que é sua dádiva como maldição inescapáveis? It’s continuous. O franciscanismo do dom que Brenez viu em Uma Mulher Sob Influência como a charis grega que eu adivinho em Amantes falam precisamente deste tráfego do Mesmo para o Outro, que volta e retoma o circuito: It’s continuous. A filogênese do indivíduo tem sua origem e experimenta suas provas de fogo na ontogênese da comunidade mundana. Cosmo Vitelli, Myrtle Gordon, Sarah e Robert em Amantes estão , na indispensável arena exterior onde a subjetividade cassavetiana, devedora aqui das intuições fenomenológicas de Merleau-Ponty, de Husserl como do gênio impressionista, se urde: uma metafísica da Força, como um ethos do Dom. Mas voltemos ao espelho de Myrtle.

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Em uma cena deste kammerspiel às vezes de horror, às vezes crônica fin-de-siècle que é Edward Munch de Peter Watkins, a irmã menor do pintor está morrendo, e tem os olhos transfixados numa imagem fora de quadro mas que queima em sua memória: “Estão todos me olhando”. Se a fenomenologia do trauma se engendra como repetição da imagem terrífica, podemos imaginar que esta onipresença do fantasma da moça no filme de Cassavetes traduz talvez um bem-aventurado déficit no narcisismo da atriz, uma abertura irrevogável “a tudo aquilo que não é Myrtle”, e que agora exige de seu corpo o papel de médium: forças e fantasmas, invólucro de tudo o que é Outro, inervação intensiva do mundo pelo meu corpo-sismógrafo, onde todo o demoníaco enfim se torna visível. O ator vidente, como aqui, é aquele que deve ver, figurado diante de si e finalmente incrustado em si, o processo, o moto, o leitmotif de sua arte: presentificar fantasmas, o eidôla grego. “Retorna” o psicodrama expressionista, mas agora servindo a um propósito cognitivo-tardio de apreensão das possibilidades da criação. Investigar, erigir sistemas, analisar é então affaire de psicossomático. Não repousa tudo justamente no “detalhe” de que o palco do ator é antes de tudo o seu próprio corpo?

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O espelho que aparece a Myrtle na figura da moça ensina-lhe o verdadeiro destino do ator, pelo menos do ator mediúnico cassavetiano: abdicar da filogênese narcisista do ator mimético (To be or not to be) em nome da ontogênese demoníaca do ator performer (Je est un autre): Substância contra Força sempre. E é propriamente uma via-crucis “do ego Myrtle” que esta alteridade lhe impõe, e que vai conduzi-la do classicismo fashionable da Broadway ao off-Broadway do cinema verdade e de terror: de fato, o plano geral e o contracampo judiciosamente fixo da Cena-establishment dos ensaios de Myrtle é substituído, quando da aparição de Nancy, por um rough cut anabolizado mais precisamente cassavetiano: o campo agora é um ring, a câmera um sismógrafo para os embates da Força. Mas é justamente por intermédio do trauma, do tête-à-tête fantasmagórico que Myrtle vai poder sorver toda a taça de fel e o cálice de veneno, e tornar-se o instrumento desta Cena tectônica, médium cassavetiano por excelência: não uma Atena da Ágora, mas uma Ariadne do labirinto. Noite de Estreia é um experimento, no qual Cassavetes verifica as condições necessárias ao engendramento do seu ator: um container energético, não um modelo substancial. É uma masterclass do ator cassavetiano: seu diapasão rítmico, o raccord de direção de olhar que o leva a ultrapassar os limites da cenografia (estrabismo um tanto histérico de Gena Rowlands e psicótico da rival), seu pace. É propriamente um teatro da crueldade, pois que conta é este experimento, o adestramento do ator ideal neste contexto – e crueldade nunca foi outra coisa senão o treino da palavra e da caixa torácica para se atingir um plus de lucidez: o que pode um ator? E qual a sintaxe, a retórica necessárias para se chegar lá?

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Para Cassavetes, não são suficiente os imbróglios existenciais e a forma balada da nova Hollywood, pois não lhe interessa uma releitura, tardia embora, do classicismo: este ainda não é o “seu” cinema, a sua “outra Grécia”- uma Grécia agonística da Força em confronto com a ousia. Então, Myrtle precisa gritar, morder, apanhar o bastante para se treinar e chegar a ser um objeto heurístico ideal, onde se possam ler as condições de pressão e contextos extáticos necessários ao ator energético; é por isto que talvez seja esta a personagem mais paradigmaticamente alcoólatra de Cassavetes: em outros filmes, o álcool aparece sempre em contextos, eufóricos ou autodestrutivos; aqui, ele é o motor diegético e o sentido extra-diegético de tudo, é o que empunha e empurra o itinerário iniciático de Myrtle; iniciação neste outro paradigma de ser e de interpretar (agora energético e “teatro da crueldade”). Em todos os filmes, o álcool abre a cratera necessária à imantação emocional, e portanto congraça indivíduo e Mundo numa osmose pós-dualista, pois não mais dependente de cisões e oposições reativas “da lucidez”; aqui, porém, a lição demoníaca vai mais longe, e ameaça soçobrar a reputação, a sociabilidade, e finalmente a vida da atriz: sua persona.

E em que sentido Noite de Estreia é uma lição de aprendizagem que devemos recitar para entender os arcanos da interpretação em Cassavetes? Justamente pela natureza transcendentalista do filme: não apenas porque diegeticamente ele versa sobre a fantasmagórica arte do ator – e aqui precisamente pensemos na equação “Máscara, Fantasma e Revelação” -, mas mais funcionalmente porque ele nos leva a aprender o que e como fazer para ser um ator cassavetiano. E “como se faz”? Um exercício metódico do êxtase, a ginástica de uma ultra-Física neste corpo em luta de Gena Rowlands, e o Codex de uma metafísica de artista (reinvenção performática de si, jeu); eis os princípios de seu Nomos. E para que se produza este milagre tardio da Força revoluteada pela paixão é indispensável a inervação alcoólica. O álcool é um combustível pático por excelência, e mesmo etimologicamente já podemos identificar nele um meio adequado à fermentação energética: não chamam de espírito (acqua vitae) o uísque?

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Se Myrtle “se salva” ao final e retorna à Cena-establishment (ou clássica), é porque percorreu o circuito pático completo, e pode assim retomar o seu Princípio; Cassavetes é um pensador da finitude, portanto da Energia, que é sempre ligada e finita: se entornarmos todo o fel, o que mais sobrará para sorver senão a água eucarística da reconciliação? É com o abraço “nos seus”, aliás, que o filme se encerra; aprendida a sua lição e devidamente exorcizada (esgotada) a Grécia tectônica, a apolínea reemeerge à Cena e encerra Noite de Estreia: Myrtle agora pode voltar à tona, como à casa. E nós à máscara fúnebre e à figuração mortificante da obra-prima A Morte de Um Bookmaker Chinês.

A Persona assombrada de Cosmo: Necrofilia e spleen

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Se o palco de Myrtle é exógeno e propriamente espetacular – está aí, entre todos, no centro do raccord dos que a observam “divar” -, a mise en scène de Cosmo Vitelli é mais endógena, low profile, e adota a tática camaleônica do deslize sinuoso, do cinismo despreocupado, do trânsito que ginga “entre os buracos”(Henri Micheau): persona de que só se reteve a encarquilhada máscara de crepom, porque nunca está exatamente aí para exprimir-se no continente da figura. O seu teatro é kammerspiel, pois se cultiva e se cultua naquela pose um tanto hierática e arqueada das esculturas decadentistas do Mikael de Dreyer: Cosmo (Ben Gazzara) é um zumbi, e não lhes parecem justa esta silhueta furtiva, que se acumplicia à sombra e ao faux-pas para melhor possuir este Purgatório de limbo, único lote que lhe será dado habitar sobre a terra? Filme urdido com os decores rançosos, os raccords extenuados, as réplicas lívidas, não do noir tardio de Lewis e de Welles, mas do tardio do tardio da nova Hollywood: um exangue deserto. Que espécie de teatro nos espera nestas plagas baldias de pathos como de spleen? A Morte de Um Bookmaker Chinês vai ter de reinventar a figuração humana para falar de crateras lunares usurpadas por latifundiários que chegaram tarde demais. Pensemos nesta palavra de Frontisi, estudioso da Grécia antiga, para interrogar este corpo emaciado que se arrasta entre as arestas do Crazy Horse: “A palavra sôma, que traduzimos por corpo, designa originalmente o cadáver, ou seja aquilo que resta de um indivíduo quando, desertado de tudo aquilo que para ele encarnava a vida e a dinâmica corporal: ele é reduzido a uma pura figura inerte, uma efígie, objeto de espetáculo e de deploração pelo outro, antes que, queimado ou enterrado, acabe por desaparecer no invisível.(…) Ligado a todas as potências noturnas de confusão, de retorno ao indistinto e ao informe, (…) a Morte designa o defeito, a incompletude de um corpo do qual nem os aspectos visíveis (…) nem invisíveis são perfeitamente puros, ou seja: nunca radicalmente separados desta parte de obscuridade e não-ser que o mundo herdou de sua origem caótica, e que permanece como tal até no cosmo organizado presidido por Zeus”.

Um arremate do eidos humano, um câncer da Figura, um décor terminal onde esta terra arrasada se exprime: a suntuosidade interior do Crazy Horse é da ordem fúnebre enunciada pela tríade “encarnado, negro e marrom”, cores que presidiram ao enterro de Vítor Emmanuel. E como este déficit – talvez tardio, certamente nosso – do movimento centrípeto, do fulgor e do punctum do gênero clássico se desvitaliza ainda até o istmo último da entropia? Como se morre em A Morte de Um Bookmaker Chinês antes de morrer – como se desfalece, se desvanece, se desaparece na carne do filme, agora enegrecida de tanta bruma acumulada? Como se deserta do ser em sua Figura, na rima (branca) de seus planos de ligação, na deriva de sua narrativa, que antes descreve os estertores e esgazeados passos do semi-cadáver que propriamente narra uma odisséia teleológica de vida avanti? Como se morre, afinal? É nos raccords frouxos ou falsos, nas deambulações pela noite e com a noite (do álcool, do espancamento e finalmente da condição de moribundo), é na osmose entre o corpo trôpego e a boate de décor mortuário; é, enfim, nesta estranha sequência na garagem onde se manifesta diegeticamente a natureza fantasmagórica de Cosmo, quando todos o perseguem no desvario dos raccords desnivelados sem encontrá-lo, protegido pelos nichos de sombra – a sua morada -, apenas para morrer chez soi, numa pose final que o incrusta na Noite da Noite: de quantos meios, estratagemas, táticas, locus se servirá Cassavetes neste filme genial para reatualizar, sob o travesti tardio da paráfrase crepuscular, a entrevista relação mitológica com que este texto se inaugurou entre a Máscara (prosôpon), o Fantasma e a Revelação?

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O que se revela aqui, sob a máscara de oxímoro de descontração do divertissement (a máscara necessária ao trágico que não podemos suportar, como à releitura contrabandista dos cânones clássicos), é a Metafísica do artista de que falei; esta, por sua vez, talvez apareça neste filme-Summa em sua quintessência intersticial e intermitente, oclusa-manifesta como esta luz que antes corrói que nos oferece os corpos; é a onipotência do Fantasma na criação artística que conta; pensemos em artística como metáfora existencial ou metonímia cerimonial do Theatrum mundi: A Morte de Um Bookmaker Chinês se equilibra entre ambos os palcos, privados como públicos.

Cosmo, herói psicodramático e psicanalítico onde Cassavetes acerta as contas com Cassavetes, é um herói tardio no sentido existencial e somático, condições sine qua non para a figuração desse cineasta da Força: Cosmo está morrendo na pose um tanto glacial, “busto três quartos de perfil”, com que Gazzara dilapida suas posses e se vota à Perda da Perda; Cosmo está morrendo no trabalho do raccord, “energia agora desligada” que corrói, em seus stacatti como no desfalecimento evanescente de suas trajetórias, toda continuidade espacial, e portanto a teleologia de uma vida futura: Cosmo, sem fôlego pelos golpes de que é vítima ou esbaforido ao correr da casa do chinês, desliza e desmaia ao longo de boa parte do filme; Cosmo está morrendo na figuração água-forte deste crepúsculo que seviciou o espaço, recortando-o segundo a paleta impressionista , um tanto terminal, do sfumato de que Jousse nos recorda; Cosmo está morrendo na duração entrecortada, sempre à bout de souffle de sua odisseia negra: fim de jogo.

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Cassavetes não pode fazer um cinema tardio, como decididamente este é seu espécime mais acabado – um cinema da paráfrase, da mediação excessiva, da citação figurativa, da anamorfose – senão assim, encarnando-o neste desencarnado fantasma (eidôlon): haveria outro caminho para um cineasta energético senão nos descrever a trajetória intermitente e o telos esgazeado desta força que se esvai? Mr. Sophistication (Meade Roberts) seria a princípio o personagem-tipo para se pensar a projeção de Cosmo numa persona, tipo que aqui nos servisse de meio experimental ideal para reproduzir, em condições controladas (um performer profissional), o destino do performer existencial. Mas Mr. Sophistication é menos um duplo-simulacro de Cosmo que seu rival em charme estéril, decadência leniente e autodestruição dândi. Cosmo é o foco de tudo porque ele é, como Cassavetes, menos um ator que um arqui-ator, que a tudo controla do panóptico da sua mise en scène: o mecanismo de todo jogo aparece exemplarmente nesta ubíqua exterioridade de Cosmo, aliás presente-ausente na exata medida de sua natureza espectral.

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E aqui imaginemos que uma práxis genial nos desvela uma intuição necessária: não é justamente o cinema tardio aquele que, segundo bem nos lembram os mots d’ordre genealógicos de Daney e do Godard anos 1980, aquele que está também morrendo? De excesso de para-si, de cálculo e de trabalho, da perda da inocência (e, então, do sumo vital do em-si) com que Lourcelles apostrofa o Acossado de Godard? Cassavetes psicossomatiza um crepúsculo epocal, mas também realiza um estudo de caso, de seu caso (figurativo, aliás, à semelhança dos maneiristas): o que posso eu, cineasta underground num meio de establishment por excelência? O que posso eu, outsider energético num meio substancialista (neo-academicismo ou classicismo retemperado “elegíaco-culpado” da nova Hollywood, muito aquém dos cimos de sua grandeza)? O que posso eu, artista cujo penchant decadentista e acedia finalmente se revelam de forma metódica nesta Summa de figuração desfigurada, corroída pelo spleen da ruína, diante da euforia anabólica de toda nouvelle vague, inclusive hollywoodiana? O que podemos nós, senão realizar o velório de todo um cinema devotado, ora à Ousia clássica como nos Mulligans e Malicks e Scorseses, ora à própria Energeia cassavetiana – como de certa Shirley Clarke, de Mekas, em certa medida do De Palma godardiano e certo Scorsese?

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A Morte de Um Bookmaker Chinês é um ponto de irremediável ruptura, para além do qual nos aguardam os outonos de filmes desencantados “thrillers-televisivos” como Glória (1980), ou o sitcom “bulimia parte-maldita” de Maridos (1970): o tardio do tardio, ou a vitória da TV. A exceção será o Opus eucarístico do Fantasma, Amantes: um terceiro dia? Em A Morte de Um Bookmaker Chinês, a experiência mais pática de seu cinema situado (no Mundo, no Outro) enfim encontra um corpo para habitar e um conto para assombrar: Cosmo como o filme sofrem, no sentido de objeto passivo que o francês subir guardou, esta condição de tardios – os que chegaram tarde demais e chegaram com a noite posta, os que suportam o tempo de um filme e de uma herança para, com o fair play de todo performer tardio, morrerem à francesa, como nos mostra este close, entre “casual” cinema verdade e kammerspiel mortuário, da despedida de Cosmo Vitelli. Mas não se preocupem; aqui, apenas “começamos a morrer”: Cosmo não termina propriamente de morrer porque é e permanecerá um zumbi – ou seja: alguém que morre au travail, como dizia Cocteau do gerúndio característico do tempo cinematográfico, o que nos revela a natureza fúnebre, “tardia”, da ação deste cinema: mort au travail (“mediando”). Em Amantes, um outro teatro, talvez uma aurora: sim, ensaiaremos um renascer.

Amantes: O Teatro metafísico da Promessa

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A Reconciliação foi talvez o mais belo conto de crença que o classicismo nos contou, e o seu fundamento metafísico já acumulou provas e argumentos suficientes. A metafísica creu ardorosamente na reconciliação entre o sensível e o inteligível. E no caso do cinema, como isto se traduz? Cremos na reconciliação entre o que se mostra no cadre e a res da vida Real, traduzida como verossimilhança; cremos na contigüidade do raccord reconciliada com a causalidade, garantidora de sentido teleológico; cremos na funcionalidade do décor em traduzir o pathos dos personagens, como em servir à transparência da continuidade; cremos na crença. Amantes crê ainda, e cremos com ele; mas a esta altura? Há no entanto uma tática de ruse com que Cassavetes nos prepara para crer neste final que, apesar do evidente malaise, carrega nas tintas emocionais e nos tons elegíacos de grande parte da produção clássica. Por exemplo: para que os irmãos possam se reencontrar e recomeçar a sua história (este conto sobre a eudaimonia ainda possível, contando no entanto com os perigos de toda rota), precisamos passar pelo equívoco de imaginá-lo protagonista único e pai de filho hebdomadário, assim como desejá-la protagonista única e mãe agora separada de filha casmurra: dois filmes contidos num só. Outro desvio, diferença, complicação modernas da harmonia clássica: por algum tempo os supomos amantes, devedores de uma intimidade de cama e gim, quando os que os une é esta aposta da fraternidade no Éden da distante vida passada e agora finalmente reunida, mas apenas sob a condição da loucura, do alcoolismo, da paternidade desnaturada ou da maternidade abjurada; amar em Cassavetes se conjuga sob vários modos, mas o diapasão “passageiro” de tudo é o do Duíno de Rilke: terrífico e angélico.

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Haveria outro teatro da tardia reconciliação senão esta “câmara de opróbrios”, de culpas como de rancores inexpiáveis que irrompem no sangue que emplastra a cabeça do filho de Robert (John Cassavetes) ou nestas inacreditáveis mises en scènes fantasmáticas onde Sarah (Gena Rowlands) se vinga da filha e do marido infiéis, ridicularizando-os, ferindo-os, e finalmente matando-os? É aliás possível ser reconciliado – aspirar à Casa em nosso tempo – sem o látego da infinita Negatividade? A vida é bela, mas apodrece; e talvez bela porque apodrece: os clássicos só nos revelaram a Beleza, mas nos ocultaram o seu necessário estrume. Cassavetes nos dá tudo a ver, pois seu cinema é Dom. Aqui, no entanto, este “teatro da vida pática in extremis” possui uma modulação decisiva em relação a seus filmes anteriores, no entanto sempre tão justos em dosar o remédio como o veneno, e sobretudo em sabê-los questão de grau, de hermenêutica afetiva (o teatro, a psicose)… o Teatro agora é holístico, como a psicose acomete ao próprio filme: é a circunferência do ser a sua ribalta, como o eidos do Fantasma o seu lote.

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Cassavetes vai sempre mais longe e mais fundo do que por exemplo na descrição, ainda naturalista, da parte maldita indispensável à confecção da arena doméstica em Faces (1968): a tentativa de suicídio de Maria (Lynn Carlin)… e por que seu fôlego como ímpeto agora são inesgotáveis, e por que sempre conosco? Em Amantes o teatro já se interiorizou completamente, libertando-se das amarras sociológicas ou contextos políticos, e atingiu os cernes do ente, os cimos como os baixios do Espírito, do romanceiro psíquico-familiar, da pulsão de morte predatória como do Eros fraterno; temos um Teatro Metafísico, o lugar régio do Fantasma: sonho, delírio, figuração “estrábica” alucinógena (o cachorro que se transforma em capitão no raccord); o teatro ontológico agora é a própria liga da vida interior de Sarah como de Robert, é o lugar onde talvez mereçam ser eternizados num filme. Assim como na diegese aparece-nos a natureza tardia de tudo, no sentido de desencantada (toda a dor e toda a culpa dessa vidas desoladas, como as lenientes drogas, coadjuvantes no processo de cura como talvez na precipitação da morte: tudo o que o classicismo reservara à litote), na carne do filme também, pois é o filme que delira e brinca: Cassavetes sabe acolher o vasto lote dos fenômenos possíveis, ao inconsciente que “encena” como à consciência que sofre, ser a foz desta força onívora de figuração imaginária, que tudo pode e quer transfigurar… o messianismo de Amantes reside nesta potência de charis, o Dom de si grego que inspirou a “caritas” cristã; ser o filme o lugar de nosso encontro, estudo de caso psicótico como féerie devaneante, mito redivivo (o dilúvio de Noé), cinema verdade como comédia “maníaco-depressiva” de situações ( este jogo ambidestro de cena e de corpo de Gena Rowlands, entre o anabolismo e a semi-catatonia): It’s continuous, Robert, pois vai do sonho à res, como do animal ao humano e da força à Graça.

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Se Mabel em Uma Mulher Sob Influência era uma espécie de depósito energético de todos os humores páticos do filme, e isto a ponto de sucumbir à incandescência de seu próprio gênio esquizo-mediúnico (bruxa intensiva ou performer bulímica, como uma versão ainda amadorística de Myrtle Gordon), cabe agora ao filme ser o lugar, o tempo, o tropo, o gesto deste generoso Dom. Mas não nos enganemos: a continuidade e a contigüidade da Família enfim reunida, porém, inexiste ali como aqui porque Cassavetes nunca nos imporia à fórceps uma reconciliação regressiva – ou seja: clássica quando já condenados ao luto contemporâneo. A reconciliação, se aqui há, só se trabalha como fresta ou borda, istmo entre estes momentos que se alternam entre o delírio “familiar” e a narrativa bruta da res; a família nunca estará lá novamente, protegida sob a abóbada do plano clássico, mas aqui ou ali, imantada e diferida neste découpage um tanto acidentado, feito de alternâncias de tom e de stimmung; e onde plano clássico, justamente, num filme que, embora temperado por um diapasão mais sereno – a idade, as dores acumuladas e o álcool necessariamente vão mitigando ou modulando o ímpeto agonístico que domina Shadows (1959) e Faces -, permanece energético, e portanto votado à força e ao fantasma, aqui um tanto apaziguados pelo outono de tudo? O Paraíso em Cassavetes é sempre perdido, como a felicidade uma promesse de bonheur proustiana: haveria aliás a possibilidade da contemplatio que sua percepção clássica exige numa obra animada, empunhada e finalmente devastada pela caudalosa Energeia? Em Amantes, o momento mais próximo deste iminente mas seqüestrado Éden aparece-nos exatamente ao final, quando já é hora de dizer adeus… augusta irreconciliação!

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Amantes é certamente seu filme testamental no sentido enunciado pela Hannah Arendt de Entre Passado e Futuro: “The testament, telling the heir what will be rightfully his, wills past possessions for a future”. Estes filhos impossíveis, que fogem dos pais padrastos como renegam as mães mártires, o que esperam para crescer e herdar a Promessa? its continuous… até lá, somos nós os executores testamentários do que se amealha neste filme, e o que se amealha aqui é tudo aquilo que ainda temos para preservar antes de soçobrarmos à usura do tempo, à impiedade do abandono… talvez o sereno andante com que se encerra Amantes seja a máscara transcendentalista de seu cinema – a máscara que explica o que a máscara é, assim como sua etiologia e condições de funcionamento. Em que sentido? Teríamos o direito a esta sublimação, faux-semblant talvez, do adeus final – a este, segundo a palavra de Jacques Lourcelles que conceitua o classicismo em Riccardo Freda, apaziguamento (mesmo que agora como figura de sursis ou índex de iminente morte), se não tivéssemos sofrido o calvário pático dos detritos acumulados pelo caminho, destas doses cavalares de acqua vitae como da sobrecarga destas máscaras para o desespero que nunca ousaram dizer o nome senão na obra, como obra? A via-crucis cristã narra a Paixão deste homem que precisou carregar em seu frágil tabernáculo o monstruoso peso dos pecados do mundo e a suplementar carga do amor de seu Pai pela sua Criação decaída; mas houve o terceiro dia – a sublimação de todo o pático inferno. Neste final em aparência reconciliado de uma arte que, como a de Cassavetes, foi engendrada pela Força e convulsa pelos destinos da Força, espreita a secreta aspiração clássica à ataraxia da bella ideia: um homem está morrendo, não há talvez mais tempo e vontade senão para a crepuscular vigília… o classicismo não foi também este credo dialético do Pai, que acumulou as misérias do Filho para suprassumi-las numa luminosa aurora? No plano deliberadamente “complicado” em termos de figuração (chuva, distância, refração do vidro, chapéu) com que Cassavetes desaparece do cinema, chegam-nos os ecos desta consoladora Promessa: sim, nesta obra dadivosa nos encontraremos todos lá.

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