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Brasileiros são os outros

Raros os cineastas que conseguem gerar expectativas a cada vez que lançam um novo filme. Pedro Almodóvar e Quentin Tarantino são os primeiros que me vêm à mente. Talvez Woody Allen, aos 83 anos, mantenha esse espírito. Clint Eastwood, aos 89, é outro da lista. Mas no caso de Allen e Clint temos a celebração do passado glorioso. É como um show dos Rolling Stones, ou de Paul McCartney: o sentimento de “uau, eles ainda estão aqui!” supera o impacto que possam causar. No clube restrito, alguns nomes mereceriam destaque: os argentinos Gastón Duprat e Mariano Cohn, por exemplo, me provocam curiosidade crescente desde El Artista (2008).

Sim, imagino que cada um deva ter sua relação pessoal de diretores aguardados (e injustiçados). Por isso acaba sendo interessante observarmos um diretor brasileiro, Kleber Mendonça Filho, mobilizando discussões e entusiasmos pelo mundo. Leiam estes parágrafos iniciais com uma ponta de ironia. Tenho com a ideia de “sucesso internacional” para o cinema feito no Brasil certa relação melancólica, quase entediada. Muita gente vem chamando atenção sobre isso, e também me causa receio que os filmes do Kleber cheguem sempre ao público com o vaticínio de “aprovados no exterior”. Antigamente, na velha Praça Onze carioca, era assim que anunciavam os circos: “Consagrado em mais de 50 países!”, “O Espetáculo que a Europa e a América do Norte aplaudiram de pé!”. Você chegava com uma expectativa de Coliseu romano e eram leões tristes, palhaços devendo aluguel. Os filmes precisam de espaço, mas também é necessário que deixem o público brasileiro respirar e exercer sua autonomia.

Bacurau, o novo filme de Kleber – dessa vez assinando roteiro e direção com Juliano Dornelles – felizmente não causa sensação de gato por lebre, embora o excesso de marketing especulativo termine por nublar suas óbvias qualidades. Lembram de Aquarius? Clara (Sônia Braga) burguesa ciente de seus domínios, prestidigitadora de arraigados privilégios, ao sabor dos ventos parecia a muitos uma nova Dolores Ibárruri. Nada mais alienante do que lutarmos causas justas inspiradas nos heróis errados. No caso de Bacurau, a equação é reapresentada de modo igualmente complexo: o bandido Lunga (Silvero Pereira), que vive escondido, é chamado para salvar um povoado dos invasores.

Confesso que gosto mais da primeira parte do filme, toda montada para gerar empatia com o lugarejo de Bacurau, do que propriamente da ação dos moradores empedernidos contra a invasão. Há razões: a partir da luta que se segue, alguns personagens são francamente desperdiçados. A começar pela própria Lunga. Representação ambígua, meio homem-mulher, parece saída de um conto de Sérgio Sant’Anna ou João Carlos Rodrigues. Lunga é literatura caudalosa: necessitaríamos conhecê-la melhor. Quase todas as figuras da cidade persistem literárias, fascinantes. Kleber e Juliano nos enroscam a elas – com maior ou menor intensidade – o que incomoda adiante, quando viram artífices de um processo delirante.

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Os maus em Bacurau serão simplesmente maus: norte-americanos (o alemão Udo Kier, Julia Marie Peterson etc.) que desejam praticar tiro ao alvo nos moradores. Tornar a cidadela um grande parque temático de vítimas. Para isso, chegam ao ponto de contratarem dois motoqueiros brasileiros – uma carioca (Karine Telles) e um paulista (Antonio Saboia) – igualmente covardes, loucos pela aprovação dos patrões estrangeiros. Karine Telles, ótima como sempre, traz o indício inaugural de que, a partir daquele momento, se instalará uma espécie de farsa. As motos são acompanhadas por um drone em formato de disco voador, que faz lembrar a peleja do Spectreman contra o Doutor Gori. Se a chegada do prefeito (Thardelly Lima) já havia demonstrado que forasteiros enxergavam Bacurau como um lugar a ser tutelado pelo paternalismo displicente, são os esgares acariocados e dissimulados da personagem de Karine que aceleram o ritmo das conclusões.

Notem que as escolhas radicais e, de certa forma, maniqueístas – até xenófobas – de Bacurau ficam desprovidas de sentido se não entendermos tudo exatamente como uma farsa, um exagero calculado. Espécie de homenagem à mass media dos anos 1960 e 70. Mais uma. Este aspecto do filme parece tão honesto que chega a ser constrangedor debatê-lo. Até porque, em pleno 2019, cada um enxergará nesses labirintos de referências, citações explícitas ou tributos aquilo que desejar. Eu não conseguia parar de pensar em O Homem de Palha (1973, dir. Robin Hardy). No fundo, praticamos um exercício de escapismo, sempre julgando o cinema do século XXI pelas lacradas nostálgicas que consegue reproduzir. Sabemos que isso virou lugar-comum, faz parte do jogo. Aliás, sempre fez, desde o sacrossanto século XX. O Cangaceiro, de Lima Barreto, era tributário a John Ford. Os filmes de Ícaro Martins e José Antônio Garcia formavam um novelo de citações passadistas, muitas completamente deslocadas de qualquer contexto. “Is That All There Is?” perguntaria Peggy Lee, na canção homônima de 1969, rediviva por Martin Scorsese em Depois de Horas, de 1985…

Curioso que Bacurau se sustenta apesar destes vícios, não por causa deles. Os diretores e roteiristas entendem, desde o primeiro minuto ao som de “Objeto Não Identificado”, na voz de Gal Costa, um aspecto clandestino do imaginário nacional: somos todos, em maior ou menor grau, sertanejos. E “sertão” não é exclusividade nordestina. Existe sertão mineiro, sertão paulista, sertão amazônico. Tudo aquilo que os bandeirantes roubaram dos índios persiste fantasmagórico no âmago brasileiro. E ninguém venha cometer o mesmo erro dos motoqueiros, que abraçam a velha tese de que “brasileiros são os outros”. Mesmo o sujeito na avenida Paulista ou na Serra Gaúcha solidariza-se com Bacurau porque, um dia, o país já foi imenso lugar baldio, precário. Refém de aproveitadores e, a partir da tomada de consciência – com ou sem “poderosos psicotrópicos” –, terreno fértil para revoluções.

Quando conseguem manipular com maestria esse conceito do isolamento de Bacurau – historicamente, da própria nação – Kleber e Juliano só precisam apresentar ao espectador as personagens. Domingas (Sônia Braga, plena), médica que curte umas birinaites; Pacote (Thomas Aquino), um matador aposentado; a falecida Carmelita (Lia de Itamaracá); Damiano (Carlos Francisco), o homem das pílulas; Teresa (Bárbara Colen), a filha pródiga; o DJ Urso (Black Jr.) acrescentam camadas e camadas de enredo. E vêm o prefeito, os sudestinos, o disco voador, até que o terror e o videogame pós-moderno se instalem.

E chega Lunga. Voltemos à Lunga. Além da aparência andrógina, Lunga terminará sendo olhado como um pacificador, um justiceiro. Lembrem das favelas – a favela também é sertão – onde figuras como Lulu da Rocinha ou Marcinho VP, traficantes de drogas, forneciam aos moradores a paz e o alento que o Estado refugava. “Bandido bom”, “bandido justo” é outro clássico brasileiro. Claro que o filme presta uma observação desse fenômeno, porém acaba chamando para si o boitatá da dicotomia política dos últimos anos. E, diferente da Clara de Aquarius, que era uma heroína-miragem, os movimentos conservadores podem encontrar em Lunga a construção de um herói/heroína de fato.

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Aliás, quem melhor buscou explicar o arquétipo de Lunga foi o escritor Olavo de Carvalho, em seu famoso artigo “Bandidos & Letrados”, veiculado pelo Jornal do Brasil, no distante ano de 1994. Permitam a citação: “Infelizmente, os pensamentos dos intelectuais não voltam só contra seus autores os seus efeitos materiais. Erigida em crença comum, a lenda do Cobrador — título de um conto aliás memorável de Rubem Fonseca — produz devastadoras consequências reais sobre toda a população. Ela transforma o delinquente, de acusado, em acusador. Seguro de si, fortalecido em sua autoestima pelas lisonjas da intelligentzia, o assassino então já não aponta contra nós apenas o cano de uma arma, mas o dedo da justiça; de uma estranha justiça, que lança sobre a vítima as culpas pelos erros de uma entidade abstrata – ‘o sistema’, ‘a sociedade injusta’ —, ao mesmo tempo que isenta o criminoso de quase toda a responsabilidade por seus atos pessoais”.

O gostoso de lermos os trabalhos iniciais do hoje influente Olavo de Carvalho é percebermos o quanto deixaram nas gerações seguintes uma lista de paradigmas ruins: a confusão entre apologia e observação da realidade, o “mundo ideal” construído em volta da hipocrisia, a pseudo-crítica de arte enquanto instrumento punitivo. Todo esse instant karma, que por ora nos atormenta, já estava esboçado lá nos anos 1990. Fiz essa digressão apenas para ilustrar o quanto devemos ter cuidado ao analisar os filmes e certos aspectos dos filmes. Até porque filmes (e as obras de arte em geral) costumam ser mais inteligentes do que seus analistas.

Bacurau é tão traiçoeiro que, no final das contas, cresce por acertar em algo improvável. Imaginem que Anselmo Duarte, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, ou mesmo Ruy Guerra, tivessem conseguido realizar autoria na maturidade sem o peso da censura e da decadência da Embrafilme. De maneira segura e sólida, Bacurau é reafirmação de uma linha evolutiva que anda esquecida no cinema brasileiro. Ao mesmo tempo, atualiza temas gratos à geração do Cinema Novo. Penso que, em certo momento do século XX, teriam chegado a algo similar. Faltou o drop-out certo, ou sobrou a repressão errada. Vale dizer que uma associação do ideário cinemanovista com os preceitos do cinema de gênero (que crescia na Boca do Lixo e na pornochanchada) chegou a ser sonhada por angry young men visionários como Antonio Calmon. Walter Lima Jr. em Brasil Ano 2000. Ou Glauber nos anos 1970. Porém o que melhor ficou disso está apontado para a Belair, para Sganzerla, quase nunca para o olhar antropológico, de viés naturalista fantástico (uma contradição necessária) com que dialoga Bacurau.

Eu disse que os filmes são mais inteligentes que seus analistas? Podem ser mais inteligentes até do que seus realizadores. E mesmo se o leitor não gostar de nada, poderá admitir pelo menos que desde Orquídea Selvagem (1989) não vemos nas telas um preconceito tão explícito contra o Brasil quanto o dos gringos atiradores de Bacurau. Esse aspecto politicamente incorreto já garantiria a diversão e as risadas de nervoso. Sorte que Bacurau está bem longe, no futuro do oeste pernambucano. Mais ou menos de onde e quando tentamos fugir.


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