Entre o Mar e o Sertão
julho 19, 2013 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira
Notas sobre alguns personagens brasileiros contemporâneos a partir de Faroeste Caboclo
por Pedro Henrique Ferreira
Segundo José Mario Ortiz Ramos, no capítulo “o sertão não virou mar, e o brasileiro foi comido pelo Brasil” de sua grande análise sociológica das relações entre o estado e o cinema brasileiro, haveria na institucionalização da PNC (Política Nacional de Cultura) em 1975 uma confluência entre os interesses de um Estado ditatorial-conservador e os dos setores da esquerda cinemanovista. Este seria o momento em que as aspirações revolucionárias do grupo que surgira na década de 1960 sofrera (e ao mesmo tempo aceitara) uma espécie de domesticação de seus antigos anseios por uma mobilização social, em prol de uma articulação efetiva com o governo para a criação de uma identidade nacional. Tratava-se de uma cooptação, para me utilizar da expressão de Carlos Nelson Coutinho, dos realizadores de origem comunista pelo Estado de direita. A missão do cinema passaria, a partir do PNC, a ser uma missão sobretudo antropológica, ou melhor, utilizando-se “a tradição da antropologia na análise de culturas diversas, transportando-a para o interior de uma sociedade capitalista e efetuando a soma das diversidades, despolitizando-se enfim qualquer fato cultural, criando uma ‘unificação nacional’ que pretensamente opõe-se à unificação achatadora das ‘diversidades regionais’, à ameaça dos meios de comunicação em massa”.
O que se pode notar nas palavras de Ortiz Ramos sobre aquele momento é um duplo movimento que marca a política governamental instaurada pela PNC: de um lado, uma tentativa de despolitização das obras e supressão de seu conteúdo revolucionário; de outro, uma reposição da função da arte cinematográfica como inventora de um ideal de Brasil, o ponto de confluência dos interesses da direita desenvolvimentista e da esquerda comunista da época. Não mais pela unificação a la Adhemar Gonzaga, mas pela descoberta antropológica da diferença. Os cineastas eram “cooptados” pelo Estado – e alguns deles resistiam na medida do possível – para criar, através de índios, negros ou do candomblé, os mitos fundadores da cultura brasileira. O rumo era, curiosamente, justamente o oposto daquele que os cinemanovistas dos anos sessenta pareciam querer articular tão insistentemente em seus epítetos revolucionários.
E o que é que relembrar esta pequena fábula, hoje em dia tão tristemente fora de moda, pode nos revelar sobre um suposto estágio contemporâneo do cinema brasileiro? Ora, nada, não houvesse reminiscências deste fato histórico, de uma forma ou de outra, atuando ainda presente no tecido das próprias obras. Há, por exemplo, uma nota irônica no fato de que a Maria Lúcia do recente Faroeste Caboclo (2013), além de arquiteta, também cursar antropologia. Um detalhe que, dadas as contradições que o longa-metragem esboça, é mais um realce do que uma mera casualidade.
Inspirado na canção homônima do folk épico de Renato Russo, o longa-metragem de René Sampaio faz um curioso desenho que nos remete à tese de Ortiz Ramos. Desde os minutos iniciais, após alguns flashes da juventude do rapaz, deixa-se claro o caráter de “atualização” – a narrativa da canção que abrange uma jornada homérica do interiorano vai se concentrar principalmente no triângulo que se forma entre João de Santo Cristo, Maria Lúcia e Jeremias em um período que, apesar de alguns vestígios, é pouco caracterizável como oitentista. O triângulo se desenrola em uma Brasília que nos surge menos como um local de tédio da geração punk e mais como um palco de conflitos de poderes. As ideias expressas por Renato Russo são imediatamente deixadas de lado, em benefício de outra trama, que parece ter como modelo (inclusive em cenas que fazem menção direta) O Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias.
Além desta significativa mudança estrutural em relação ao original musical, outra que talvez seja até mais importante é a versão que o filme fará da figura desta Maria Lúcia. É a única figura “redimível” da tríade, quiçá do longa-metragem. Quando, na canção, tratava-se de uma menina culpada que é seduzida por Jeremias e trai João de Santo Cristo, desencadeando daí o processo de vingança, Faroeste Caboclo faz questão absoluta de justificar moralmente as razões pela qual ela vai engravidar do traficante sem vergonha. Ou seja, para proteger João. No final, não há arrependimento, justamente por que ela, no fundo, sempre esteve do lado do caboclo pobre, e não do playboy rico. E a vingança de Santo Cristo não acontecerá por causa da perda de sua esposa para seu inimigo, mas por um problema social milenar – já desenhado no flashback no qual seu pai é morto por um policial -, um conflito de classes somado a uma questão implicitamente racial, de raízes remotas, que torna a humilhação sofrida (o estupro) algo de muito mais vil e digno de vingança.
Na parte final do longa-metragem, a atitude de mártir da menina passa a ser um dos pontos de foco da narrativa – é na realidade ela, e não João, quem se torna “Santo Cristo”. Por uma notável trucagem nas articulações de pontos-de-vista do roteiro, ela deixa de ser coadjuvante e se torna uma espécie de protagonista passiva, que não consegue realizar os atos que põem a trama em movimento e resolver os conflitos ali pendentes, apesar de ser a única plenamente consciente da tragédia para a qual caminham as relações de poder. É uma espectadora inerte do conflito, e justamente por isto, pode ser uma protagonista: a típica do modo imitativo baixo (onde os heróis são como nós, pessoas comuns) da tragédia aristotélica, que sofre um pathos e não tem qualquer reação a seu fado.
É curioso também que o filme faça questão de dar ênfase à sua profissão. É estudante de arquitetura, mas também faz antropologia. Com efeito, isto demarca sua posição em relação a seu par. Como é lembrado pelo rapaz, o arquiteto planeja e o carpinteiro constrói. Pois bem, neste amor que se forma entre os dois, não há tanto uma simbiose quanto uma divisão social, aceita mutuamente em uma forma humanística e pacífica, de modo que, através desta divisão social, os dois poderiam ter vivido juntos, felizes para sempre. Caracterizada como uma figura da classe médio-alta, filha de um político reacionário, a moça se contrapõe ao restante de sua classe justamente pela capacidade de aceitar e amar João, por ter enxergado alguma coisa de boa em seu espírito corrompido.
Mas a promoção social do negro é freada por ele mesmo, por seu justificado sentimento de vingança contra um passado ditatorial. Frente a este dilema, a jovem se mostra absolutamente impotente. Tenta compactuar com a elite para abrandar a pena de João, mas também tenta redirecioná-lo do tráfico, ensiná-lo a dirigir um carro, purificar algo que está conspurcado em princípio. A redenção se mostra impossível, principalmente pelo admitido sentimento de vingança do caboclo contra uma elite que o açoitou.
É neste ponto que uma obra recente parece ter alguma coisa a ver com a história política do país? A pergunta capciosa não poderia ser respondida diretamente, empiricamente, com uma certeza plena de que há uma filiação efetiva. O que se faz notável, porém, é a insistente recorrência de um personagem como a Maria Lúcia de Faroeste Caboclo, estudante de antropologia, apaixonada por um caboclo pobre e carpinteiro, mas que para resguardá-lo, irá compactuar com a elite que, não à toa, se associou ao governo ou seus representantes, a polícia; que tem diante do conflito de classes uma absoluta falta de poder, uma incapacidade de sequer atenuá-lo, apesar de ter um claro posicionamento ideológico em favor de um dos lados – o do mais fraco. Sua ideologia é simbólica, somada a uma inércia, a uma impossibilidade de resolução que se verte, por sua vez, em um estado de sonho. O sonho utópico por uma resolução expresso na voz em off final, quando o caboclo faz uma espécie de meia culpa no acerto de contas com o branco rico – sonhando, ou querendo poder sonhar, que as coisas poderiam ter sido diferentes entre ele e a moça. Mas simplesmente não foram.
Não é a toa que o modelo seja Assalto ao Trem Pagador, uma obra de 1962, anterior à PNC e à Embrafilme, que não desarticula a questão racial da questão política, produzida em um momento que não se entendia a potência ideológica como um elemento meramente simbólico, exercido nas entrelinhas do palco dos conflitos de classe, mas como um dado ativo e mobilizador – ou seja, conscientizador. E caso o filme de Roberto Farias sirva de algum modo como inspiração (e objeto de nostalgia) a Faroeste Caboclo, ou que o mais recente tenha deste a intenção de beber minimamente da mesma fonte, é de semelhante maneira que O Som ao Redor reatualiza São Bernardo, de Leon Hirszman, uma obra de exceção avant la lettre, distante das pretensões antropológicas-nacionalistas da sua época de feitura, voltada a um ímpeto de conscientização política que ultrapassa uma ideia simbólica de Brasil.
O longa-metragem de Kleber Mendonça Filho desenhará características deveras semelhantes à Maria Lúcia de Faroeste Caboclo no personagem encenado por Gustavo Jahn, que é, como descreveu João Gabriel Paixão em seu texto na Contracampo, um “condômino de pose cool, que persegue a justiça, mas com certa preguiça”, não fosse isto que o crítico caracteriza como preguiça mais notoriamente um sentimento de impotência. Há uma estratificação do conflito de classes agrário, de herança feudal, transposto para a Recife moderna e encontrando ali um novo modo de sobrevivência sob as rédeas de um cotidiano compartilhado com o qual o trabalho de direção ora adere, ora ironiza, permanecendo um pouco em cima do muro (mais do que fica, por exemplo, O Invasor, de Beto Brant). O passado parece ser um fantasma, e o presente, em certo sentido, seu álibi.
A relação subsiste em suas malhas com todos os seus elementos, apesar da modernização que o lugar sofreu. Por um lado, este processo encobertou o eterno conflito, e por outro, o abrandou em prol de um retrato mais apaziguado de nossas vidas, deixando como única válvula de escape o sonho. Um sonho que, por sua vez, é uma forma de realismo. O sentimento de “espreita” que a obra transmite está ligado à consciência que o realizador parece ter de que este processo social será eventualmente deflagrado no idílio da vida cotidiana daquelas figuras, apesar de não ser possível se afirmar o quando.
A figura conectada a esta consciência é novamente um herdeiro da elite que, apesar de capaz de amar, defender e se relacionar humanisticamente com todos os mais diferentes seres naquele microcosmo – sem os preconceitos sociais ou as frescurices dos leitores da Veja -, está bem alheio aos jogo de poder que se opera como pano de fundo naquela sociedade. Na impossibilidade de se realizar um gesto redentor, compactua, mesmo discordando ideologicamente, com o estilo de vida que lhe é oferecido. Sua ideologia se torna um fato simbólico, mas sem uma efetividade política. Impedido de lutar, a única escolha que lhe resta é mergulhar em sua própria vida. Do amor ao caboclo de Maria Lúcia, seu correlato em O Som ao Redor seria provavelmente o silêncio em algo impotente, em algo humanístico. E não é a atitude humanística frente ao outro justamente uma daquelas características que Ortiz Ramos nota na “antropologia cinematográfica” daquele momento?
Não há um protagonista que carregue a trama e com o qual o diretor se identifique, fazendo dele seu alter ego, como parece se querer por aí. O que há novamente é um mecanismo de roteiro que dá proeminência a um aparente coadjuvante justamente porque este que tradicionalmente seria o protagonista (e resolveria o conflito de classes) sofre de um pathos maior do que ele. Assim, vê-se incapaz de realizar os gestos que estariam de acordo com a sua ideologia, transformada em mero adereço simbólico, um papel (que ele indubitavelmente aceita, sem crises de consciência, pois mais do que “cooptado”, seu berço é a elite) dentro de uma cena que tem outros regentes. Ao martírio inútil de Maria Lúcia, O Som ao Redor nos responderia com uma moeda que tem dois lados – numa face, uma crença numa força possível a ser extraída daquelas vidas cotidianas; e na outra, o mais assaz cinismo.
A válvula de escape para a falta de potência novamente se opera em um nível onírico, menos como utopia e mais como recalque. O que nos leva, em retrocesso, a uma obra anterior, mais romântica, que irá acreditar justamente que esta mesma válvula de escape tem uma potência revolucionária. Refiro-me a A Alegria, de Felipe Bragança e Marina Meliande. O que em O Som ao Redor é um trauma histórico bem delimitado aqui se torna mais difuso, apostando em uma fantasmagoria múltipla que gera uma entropia de sentidos. São espíritos do passado atropelados pela civilização, mas que de algum modo ainda atuam, e sua atuação é tão performática que o naturalismo cênico já não se faz possível. O mundo seria repleto de poetas regurgitando expressões mediúnicas, e a força destes vômitos teria uma potência verdadeiramente redentora, revolucionária. De todas estas obras, talvez seja aquela que mais inocentemente (e com optada inocência) acredite que, mesmo despido de um poder imediatamente mobilizador e assumindo uma função meramente ideológica-simbólica, é justamente através desta, vertida em poética, que poderia se dar a revolução – uma que acontece em um nível muito mais espiritual do que prático.
E, dada esta inocência voluntária, não é bem à toa que a personagem principal seja uma adolescente, e também, que este que nos demais filmes poderia ser um coadjuvante venha a se tornar uma protagonista, heroína. Reprimida pelo mundo e incapaz de pegar em armas, ela vai descobrir outra maneira, totalmente utópica, de atuar politicamente. O que importa aqui não é bem delimitar a natureza do problema, mas encontrar a sinergia necessária para vencê-lo: em vez da revolução, poderíamos encontrar o mesmo ímpeto, a mesma vontade visceral e orientação política, em um levante estudantil. Não é preciso sapiência, apenas vontade de mover-se para levar a cabo esta missão; não seria necessário interromper a alienação e revelar os mecanismos sociais, mas tão somente uma vaga força ideológica. Entrando na parede, dissolvendo-se em pura forma, faz-se possível mudar o mundo, ainda que este mundo, nos olhos inocentes da menina desesperada, seja apenas o seu prédio. O cinema, assim, poderia assumir por completo a sua função de ideologia simbólica, abandonando mesmo a antropologia rumo a um caminho de descoberta e ascese. A menina de A Alegria parece responder com um elogio absoluto e ansiosamente inocente o que sente diante da mesma inércia que paralisa os personagens dos filmes anteriormente citados, aceitando e acreditando piamente em um art pour l’art, em uma força estética possível a ser encontrada sendo um símbolo de algo no mundo.
Mesmo que apontando rumos distintos (a reescrita, a renúncia ou a utopia), o que se faz notável é sobretudo como as três obras enfrentam alguns problemas da mesma natureza: a herança de um conflito de classes de algum modo tornado em recalque latente, liberto em um estado onírico, sonhador ou memorial (ou os três), encenado através de personagens impotentes, cuja impotência é resultado de um pathos; figuras cooptadas a compactuar (com o governo ou outras figuras de poder), que ainda guardam em suas vinhas uma forma de amor humanístico pelo outro, uma curiosidade antropológica, mas também uma absoluta incapacidade de ajudá-los de maneira pragmática. Esta última condição é o tema, por exemplo, de Xingu, de Cao Hamburguer, sobre o qual já dediquei anteriormente uma crítica ressaltando sua vocação de purismo paternalista.
O que parece cabível enfatizar é que, a certa altura, os irmãos Villas Boas se encontram também em uma posição de cooptação, aqui mais ostensivamente sob a ordem do governo. Vendo-se incapazes de resistir com a força armada ao processo de modernização e destituição das tribos indígenas selvagens, se vêem tendo de fazer uma escolha – domesticar os aborígenes, enquadrando-os nas tribos no espaço delimitado pelo governo, exaurindo seus costumes e tradições – ou simplesmente assistir ao espetáculo de derrocadas? Enquanto dois deles abandonam a causa, o outro assume como sua função de resistência justamente mediar esta transição entre o ocultismo selvagem e a claridade da civilização, Na “vista grossa”, por exemplo, que faz o personagem de O Som ao Redor, o longa-metragem quer ver uma função de tom heróico-trágico que encontra correlato no lema de que, na impossibilidade de resistir, seria preciso em alguma medida compactuar para, de alguma forma, fazer sobreviver. E a mesma questão que estava presente na fundação da PNC é agora respondida com um “ao que isto nos levou?”.
É possível que este fio da meada em aberto na linha de pensamento de José Mario Ortiz Ramos, atualmente um bocado fora de moda, sirva ainda como uma aplicação pragmática possível, uma ferramenta fortuita na análise estética das obras. É possível que através dela possamos concluir alguma coisa, por mais instável e vacilante que seja, sobre o presente e o futuro do cinema brasileiro. Não se trata dar conta de um panorama ou de um contexto histórico, e tampouco de reduzir as obras a estes fenômenos mais amplos, mas principalmente de identificar um solo comum, uma figura com muitas semelhanças, presente desde obras independentes até produções de grandes empresas. Um esforço de verificar semelhanças em filmes tão díspares entre si (estilisticamente, politicamente e no que se refere aos modos de produção) e que, não fosse justamente o sempre necessário exercício de síntese, o princípio da concordiae violentes, talvez nunca ocorreria de colocá-las lado a lado. Curiosamente, todas as obras sobre às quais me detenho aqui foram produzidas nos últimos quatro ou cinco anos.
Por um lado, trata-se de verificar os parâmetros que tornam possível que isso estabeleça diálogo com as produções nacionais de outras épocas. Por outro, trata-se também de tentar agrupar alguns pontos adequados para se pensar o cinema de uma época e evitar trazer formas anacrônicas de interpretação. Através de um conjunto de algarismos, que ainda precisa ser melhor evidenciado, tornam-se perceptíveis, inclusive, as diferenças – os ajustes e desajustes – que fazem de cada uma destas obras objetos individuais com contornos únicos, o que pode ficar um pouco mais claro ao se tentar encontrar um denominador comum, uma dinâmica em nível artístico, estético e temático que nos revele como uma faceta do cinema brasileiro vem recentemente pensando e criando suas formas. E o ponto inicial, por sua vez, tem como germe as próprias obras, que recorrentemente vem pondo em cena um novo tipo de personagem.
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