Restaurar possibilidades de interlocução, cuidar das ausências, reelaborar o luto – a força desses gestos constitui Los Silencios, de Beatriz Seigner, um filme que, não à toa, se compõe não apenas em uma zona indefinida de fronteiras, mas também sobre o fluxo inquieto dos rios. Ao abordar uma guerra, em que os homens geralmente ocupam o fronte, importa que o filme se dedique, sobretudo, às mulheres e às crianças, a sua capacidade de resistência e reinvenção. Essa sensibilidade voltada àquelas que encontram refúgios, abrigos e outras forças de luta na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru mobiliza, com contundência, o filme de Seigner. De modo geral, Los Silencios se vale de uma espécie de posição dupla: constitui-se junto às mulheres (que respondem não apenas pelo protagonismo do longa, mas também pela maior parte de sua equipe técnica), e, ao mesmo tempo, não deixa de se assentar em uma perspectiva ocidentalizada: não parece ser suficiente que a realizadora seja brasileira e escolha compor uma equipe não apenas majoritariamente feminina, mas também latino-americana, para que o filme exceda o desejo ocidental de ver: é preciso levar a iluminação ultravioleta das boates para o meio do rio e o interior das casas para que o cinema dê conta do jogo com o invisível.
O filme se estrutura a partir da chegada de Amparo (Marleyda Souto), com seus filhos, em uma ilha fluvial, um local até então pouco conhecido, mas que existe de fato numa região ocupada majoritariamente por refugiados: a Ilha da Fantasia, cujo nome parece servir tão bem à ficção. Após a morte do marido e da filha, em meio à guerra contra as Farc, na Colômbia, Amparo é acolhida por uma senhora, conhecida por todas/os como “abuela” (ou, em português, “avó”) nesse lugar atípico, construído sobre o rio Amazonas, com casas e pontes de palafitas. Ali, ela tenta reconstituir sua vida: encontrar um trabalho, uma casa, colocar o filho na escola, educá-lo, dar conta de seguir vivendo apesar das dificuldades e da busca pelos corpos de seus familiares desaparecidos. Longe de ser uma protagonista do enfrentamento, Amparo acata seu destino com certa resignação, ainda que com a força típica das mulheres pobres: aceita um trabalho árduo, único disponível e que ela se vê capaz de executar, se dispõe a não causar problemas na ilha, costura à mão o uniforme de seu filho que ela não pode pagar. A filha, que a acompanha, partilha as dores da mãe e sofre por não poder confortá-la. Enquanto o filho, a seu modo, vive o luto do pai, quer calçar suas botas, manejar sua espingarda, reinventar uma relação com o narcotráfico. Com maestria, o filme apresenta, muito aos poucos, suas linhas de força, apresentando-nos os lugares e os sujeitos, construindo uma atmosfera dúbia, entre as perturbações trazidas pela desconfiança constante que ele instaura e o fascínio das descobertas. Se uma de suas questões centrais é a busca pelos desaparecidos, o fio condutivo que nos guia pela narrativa trata de sugerir algo sempre por se revelar ou por se descobrir.
Na primeira cena, vemos a ponta de um barco, que se move entre as sombras da noite às margens de um rio, mal iluminado pelos feixes de luz que clareiam a cena diante da câmera. Ao longe, uma pequena lanterna trepida na mão de alguém. Ainda não sabemos quem está adiante, nem quem chega naquele pequeno barco. Somos, logo, lançadas/os em certa desorientação que se adensará ao longo do filme. A imagem de um pequeno barco sobre as águas, entre feixes de luz e sombras, retornará algumas vezes até culminar na cena final. O barulho alto das águas e dos insetos e animais povoam a banda sonora, enquanto a paisagem atípica do vilarejo de palafitas nos desconcerta. Se, por um lado, somos desorientados pela narrativa que não nos revela seus trunfos de antemão, por outro, o filme insiste em jogar com a capacidade de assombro do desconhecido. É curioso, nesse sentido, constatar que ao mesmo tempo em que Los Silencios coloca em cena os cercos perversos de poderes tão evidentes, como aqueles que levam Amparo a fugir, buscando asilo político para não morrer ou os moradores da Ilha da Fantasia a resistirem contra a especulação imobiliária, o filme insiste em dar lugar a outros temores, como aqueles que residem nas águas, na presença dos bichos e na noite. Nesse sentido, não basta criar uma atmosfera de suspense para a revoada dos pássaros, é necessário ainda vocalizar o medo do desconhecido e fazer com que, ainda que tenha coragem para a luta armada junto à guerrilha, Amparo recuse-se a pescar. É como se, estranhamente, o filme equivalesse ameaças díspares, entre aquelas que se mobilizam junto às forças do capital e do Estado e as que habitam outros mundos, a partir de uma relação forte e desconcertante com a alteridade.
O cinema, como velho tradutor do Ocidente, não se ocupa então de fazer com que a imagem seja atravessada propriamente pela impossibilidade, pela incomensurabilidade de outras cosmologias, mas interessa-se por transpor, elucidar, tornar manifesto aquilo que poderia ocupar outro regime do sensível. Em trechos de uma entrevista sobre o filme publicada no portal de internet G1, Seigner parece cifrar seu próprio argumento. Ela diz: “muitos colombianos, enquanto não encontram o corpo, seguem vivendo como se a pessoa estivesse viva: servem comida na mesa, pedem conselhos. É uma maneira de manter a esperança e lidar com a perda”. Diante dessa observação, o cinema ocupa-se de produzir uma cena para a falta – como quando, no filme, vemos Amparo servir o jantar e consultar o marido sobre a indenização de sua própria morte. O filme encarrega-se, então, de materializar essa relação com os desaparecidos, tornar mais compreensível o que nos pareceria absurdo ou fantástico, dar corpo aos espíritos, pintar seus rostos e corpos com luz neon.
Na última cena do filme, no meio do rio, homens, mulheres e crianças reúnem-se em pequenos barcos para velar os corpos do marido e da filha de Amparo, enfim encontrados. Ao lado daquelas/es que perderam seus familiares e sustentam seus retratos para a câmera, indígenas paramentados com cocares e adereços aparecem como fantasmas, com pinturas corporais fosforescentes junto aos guerrilheiros e familiares mortos – a relação, então, já não é de parentesco direto, mas de ancestralidade. Assim, ainda que o filme dê lugar a uma bela imagem política de uma luta incessante e coletiva (que atravessa, como aponta a cartela final, presente, passado e futuro), a aparição tardia da luta indígena não dá conta, no filme, de produzir articulações capazes de nos levar a compreender a atualidade de suas demandas, ocultas aqui sob uma forma ancestral de agência e de presença.
Por outro lado, a assembleia dos mortos é, sem dúvidas, um dos pontos altos e mais potentes do filme, quando testemunhas do conflito, elaboram suas dores, interrompem o silêncio, esforçam-se para dar conta, coletivamente, do trabalho do luto, encenando familiares cujos corpos não foram encontrados. Armada a cena, o filme já não se interessa por preencher uma falta, mas, pelo contrário, expõe fraturas, oferecendo um rosto, uma voz a quem precisa encontrar lugar para as palavras e para a dor. Quando o artifício é, finalmente, revelado, já não há jogo, nem uma obscura relação com a diferença. A presença dos mortos, então, nos reorienta precisamente para o cerne da questão, ligada à necessidade de restituir um espaço para a escuta e para elaboração do conflito, da perda, do luto. Poderia ter seguido o filme nessa esteira, valendo-se ainda do papel mediador da abuela no trato das relações entre os mundos – longe de ser essa uma tarefa simples para nós que nos acostumamos a viver em um mundo unívoco, onde o invisível precisa ganhar forma e matéria, onde a alteridade continua a nos assombrar.
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