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Anotações de Brasília #2 : “Da morte, renascemos”

“Mudos também os mortos pronunciam as palavras que nós, os vivos, dizemos”. Octavio Paz, sempre soube que entre nossas estórias e conversas estão em movimento concomitante às de nossos antepassados. Nos vamos mas deixamos a palavra, “filha da morte”, “coisa humana”, e com ela, uma vida em meio ao tempo. Los Silencios é, nesse sentido, um filme octaviano, instituindo uma vida mortuária entre uma comunidade numa tríplice fronteira de lugar nenhum. Este lugar real – a Isla de la Fantasia, que fica na cidade de Leticia, na Amazônia colombiana – é refúgio de Amparo (Marleyda Souto), mãe de dois filhos, Núria (Maria Paula Tabares Peña) e Fábio (Adolfo Savinvino) que fogem dos conflitos armados da Colômbia em busca de um teto, trabalho e paz.

Amparo perdeu o marido e a filha para a guerrilha. Seus corpos não foram encontrados. Mas essa ausência no filme de Beatriz Seigner não é expressado pela relação da dor de quem fica e o extracampo que sugere o nunca-mais. Seigner assume o cinema como mundo das aparências onde a memória é carne, interação viva. Desaparecidos, os mortos renunciam ao grande contracampo da vida e invadem o quadro – afinal o plano físico é a única matéria do cinema. Não são nem mortos, nem vivos, nem mortos-vivos, mas, como qualquer personagem do cinema, fantasmas.

Longe de ser novidade, esta relação faz parecer ainda mais que Los Silencios tem uma filiação à filmografia de Apichatpong Weerasethakul. Não bastasse o desenho sonoro, onde as aves, grilos e outros insetos do ambiente parecem sempre querer nos instaurar (no sentido mesmo de instalação) em meio àquelas palafitas remotas e fantásticas, (às vezes exageradamente, como na alta profusão sonora das aves quando mãe e filha saem da escola); o verde sereno que aclimatiza um mood ao filme (sem qualquer força erótica como nas florestas de Joe); e a fisiologia dos tipos andinos que podem remeter à uma feição generalista do sudeste asiático, Apichatpong talvez seja o cineasta contemporâneo imediatamente evocado quando se fala em uma junção naturalista entre o realismo e o fantasmático, em um plano fisicamente metafísico. Há um certo contexto que corrobora aí, como ele mesmo diz, nas notícias populares da Tailândia: “você tem uma história real sobre um pé de banana que se parece com a forma de duas cabeças e aí todas as pessoas vão até lá, para rezar, ou para raspar o pé de banana para ver se há algum número na superfície, para depois jogar na loteria clandestina”. Nada que pareça muito distante do Brasil com o seu quinhão de superstições mil e Aparecidas em reflexos vitrais; ou de uma outra forma, da própria Isla de la Fantasia, que é permeada por estórias de fantasmas que entravam no corpo dos moradores. Há aí, então, um aparente atravessamento espiritual entre cinemas e cosmos, mas no fundo, a ideia de materialização espectral serve a intuitos muito diferentes entre as duas filmografias em questão. A encarnação em Joe está filosoficamente ligada a uma ruptura de mundos ontológicos e cinematográficos enquanto o filme de Seigner é mais voltado ao redesenho narrativo, inserido na forma clássica, ainda que altamente contemporâneo e apesar dos ocasionais tempos imiscuídos – nem sempre entre passado/presente/futuro, mas às vezes entre acontecimento e imaginário/lembrança. Ou seja, no fundo, Seigner, está muito mais perto de um I see dead peoples, reconfigurando a estória e o olhar a partir do momento da revelação.

A primeira fala no filme vem de Abuela (Doña Albina), que consegue falar com os mortos, recebendo a família no barco: “Oi filha, bem vindos à casa. Nem acredito que vocês estão vivos”. Seigner dá indícios frontais do mistério desde o início: o colar que Amparo usa tem um casal de crianças; quando o diretor da escola fala sobre inscrição, se refere apenas a Fábio; em seu primeiro dia na escola, dois alunos ao lado de Núria se apresentam, ela se cala e é solenemente ignorada, com exceção de uma menina em especial que vira sua amiga; o irmão atira na direção dela sem querer e nem sequer comenta e, claro, o mais evidente de todo o percurso inicial, Amparo chora em frente ao espelho, Núria a consola com uma carícia em seu cabelo, mas seu reflexo é vampiresco. No miolo do filme, a relação muda, Amparo interage um pouco mais para além de pequenas carícias e abraços de mão (um detalhe crucial – ela nunca abandona a filha até a carta final): banha Núria e, ao cortar para Fábio pondo a mesa, não há mais ninguém na banheira. O próprio filho termina a cena indo tomar banho para levar nossos olhos até a devida estranheza. Recebe o afago do marido, discute sobre a indenização de sua morte. Tudo parece muito didático, mas é construído com suficiente sutileza para que isso nunca grite. Como em O Sexto Sentido, é um filme que na revisão (de fato, ou mentalmente), todas as interações entre personagens se reconfiguram e, assim, também a direção da decupagem, sem que o filme perca sua teleologia, porque ao fim, não estamos diante de uma pegadinha fílmica, mas de uma moral fúnebre, de um pacto de fé, sobre a necessidade de crer. Lá sobre as estruturas do quadro, cria-se um trompe l’oeil para se refundar a “religião do olhar”, nossa forma canônica de interação fílmica; aqui o jogo é mais centrífugo, está sobre a estrutura das relações: é preciso acreditar não exatamente no entrecruzamento de dois mundos fundidos, mas em algum sentido diante da pura sobrevivência.

Los Silencios tem o claro potencial de circular por muitos festivais mundo afora pela sintonia com uma certa repetição contemporânea: alia questões políticas prementes a uma placidez graciosa da fotografia, o roteiro ambivalente junto a um dispositivo que insere “cenas documentais” à ficção. Isso tudo torna-o também um alvo fácil à crítica, pois basta juntar essas impressões primeiras e supor uma certa redundância, um exemplar de algo já muito visto por aí. De fato, são vários elementos supostamente inovadores que já estão mais do que “rodados” – especialmente no circuito do chamado “cinema de arte”. Mas um filme ainda se faz com matéria-prima bruta, com acontecimentos e encenação e Los Silencios se encaminha a uma direção bem particular. Os planos abertos para além de respiros narrativos apontam uma terra pouco pisada, mas não falo especificamente de uma natureza a se desbravar, no sentido aventuresco da coisa longínqua, e sim no contato de consanguinidade latina, nesse gesto de encaminhar-se ao fim do mundo, dar voz aos mortos do capitalismo, ecoar suas palavras, germinar a semente enterrada na escuridão por gerações, não só porque é a coisa certa a se fazer, mas porque há um repertório expressivo de experiências ali que desaguam em um inventário de outras formas, outros mundos, outras mortes.


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