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Carcaças

Tragam-me a Cabeça de Carmen M. é um filme de carcaças. Do corpo largado da protagonista encarnada pela codiretora Catarina Wallenstein, passando pela imagens usadas nos recortes neotropicalistas na casa da mulher, os trechos de filmes hollywoodianos clássicos com a presença da “pequena notável”, o incêndio do Museu Nacional, as canções esparsas executadas em certas cenas, o cenário desolado onde se passa o filme dirigido por uma diretora controladora presa a uma cadeira de rodas (Helena Ignez, apenas vestígio do vigor cinematográfico moderno brasileiro), são índices de superfície, presenças destituídas de sua força vital, construções de um presente sem passado.

Ana, uma jovem atriz portuguesa em processo de encarnar Carmen Miranda em filme da diretora vivida por Helena Ignez, vive uma trajetória de descoberta da famosa cantora, imagem contraditória de uma cultura pop provinciana e dependente da potência estadunidense que transformou Carmen Miranda na imagem da cultura popular brasileira no mundo. Yes, nós temos bananas. Na descoberta dessa personagem, Ana vive um tour de force incontornável entre não-ser e ser outra pessoa, um processo de destituição de si para dar lugar à personagem e suas contradições dentro de uma lógica de “encarnar Carmem Miranda” que diz respeito a incorporar seus trejeitos, suas expressões, seu modo de cantar. Nesse sentido, Tragam-me a Cabeça… é também um filme de possessão demoníaca. E para que algo ser incorporado, outra coisa deve dar lugar.

Essa é a grande intuição do filme: o processo de transformação de Ana em Carmen é uma trajetória de adequação da atriz em personagem e dá conta da própria trajetória de Carmen Miranda, ela também moldada pela indústria cultural até o ponto limite entre deixar de ser Maria do Carmo e virar esta imagem com vida própria, mas desprovida de temporalidade. Os mitos da cultura pop anacrônicos por essência: lembram um tempo, pois completamente adequado a ele, ao mesmo tempo em que são colocados fora dele, alçados à eternidade. A indústria cultural é um rolo compressor, ainda mais quando tem sob seu jugo sujeitos historicamente oprimidos pelo poder do capital. Nesse processo, a adequação é um paradoxo de vida e morte. Um fetiche: a construção de uma imagem que virtualiza todo o processo de sua produção.

Talvez por isso os grandes momentos de Tragam-me a Cabeça… são as cenas em que a intensidade de Ana é mais sentida, atravessada por esse movimento de virtualização e esvaziamento. A mais notável, quando a atriz canta num bar, tentando dar a letra decorada a duras penas sem errar, imitar a entonação de Carmen Miranda e reproduzir sua intensidade quase desinteressada. Filmado num plano próximo do rosto de Catarina Wallenstein, este momento catalisa um certo processo dolorido de formação, ao mesmo tempo em que se despoja de todo o arsenal retórico das cenas mais performáticas – especialmente as coloridas. Não que exista um problema nessas sequências. Pelo contrário: Tragam-me a Cabeça… tem, por um lado, um despojamento e entrega da cena à protagonista em seus grandes momentos e, de outro, uma abertura à estranheza, ambos de maneira inédita em filmes anteriores assinados por Felipe Bragança.

Por mais que a filmografia de Bragança estivesse recheada de fantasmas, monstros carnavalescos, super-heróis poéticos, fábulas e narrativas fantásticas, as obras tinham como elemento central a colagem de ícones da cultura pop – em especial o conto fantástico, a história em quadrinho e o cinema hollywoodiano – com artifícios da linguagem mais sofisticada do cinema de autor internacional. Notadamente, o desejo de mesclar a estilística do tailandês Apichatpong Weerasethakul com as fábulas de estruturas aparentes da obra estadunidense de M. Night Shyamalan num mood pessoano do melhor produzido no cinema português. Tudo isso escaldado pela cultura popular brasileira. A estranheza de seus primeiros filmes é escrutinável, pois mirava uma profundidade que se fazia da decantação de estruturas expostas que transformava a agressividade tropical numa poética de inquietações frágeis, prontas a se desfazer em meio a uma sociedade em ebulição, buscando significações no contraste entre a realidade galopante e os afetos acanhados que permeavam seus primeiros filmes – este mote está claro em A Alegria, dirigido em parceria com Marina Meliande, quase manifesto desse radicalismo acanhado que formulava um confronto em suspenso com um mundo em transformação povoado por monstros prontos a engolir a sensibilidade frágil que alimenta as relações das personagens e seu desejo de estar – e transformar – o mundo. É possível especular o papel da nova parceria para esse passo diferente em Tragam-me a Cabeça…, já que Wallenstein traz uma bagagem de seu trabalho como performer, além da experiência em Portugal com cineastas criadores de mundos muito particulares em obras que criam para si um modo particular de pensar o cinema, a realidade e a história como Singularidades de uma Rapariga Loura, de Manoel de Oliveira, e Mistérios de Lisboa, de Raúl Ruiz. De sensível, porém, os momentos mais potentes do filme vem da abstração dos signos (da realidade, da cultura ou do cinema) convertidos em uma nova imagem-fetiche impactante, assombrada por sentidos que não temos que – nem precisamos – desvendar.

A colagem está presente também, com a consciência de que se trata de procedimento decodificado da cultura moderna e de forte influência no panorama estilístico brasileiro desde pelo menos a Semana de Arte Moderna de 1922, citada recorrentemente no filme em colagens de imagens de figuras importantes do movimento, como Mário de Andrade, ou pinturas modernistas e a insígnia da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade – o profeta do modernismo brasileiro e suas reverberações futuras. Esses murais neotropicalistas fazem um inventário do pop brasileiro em torno de Carmen Miranda enquanto apontam para o próprio imaginário de Tragam-me a Cabeça… que não se furta em misturar o samba com a arte-instalação, o discurso político com a razão messiânica, o modernismo estabelecido e o cafona, o bar estabelecido de classe média e o boteco de copo sujo, a zona sul carioca e o centro velho, o preto-e-branco tosco mais despojado com um colorido beirando o kitsch. Já no título, o choque do mito pop nacional com a citação do filme estadunidense dá o tom de uma colagem um tanto oswaldiana que mira a cultura pop universal, esse grande fetiche que tudo engole.

A singularidade de Tragam-me a Cabeça de Carmen M. está, como indica o título, nesse lugar intermediário, entre a morte ceifada e a presença, entre o delírio pop e o logos tropical, entre coração e mente. O fetiche, como um fantasma, está lá e não está. Carmen Miranda, fetiche de nossa cultura, o Brasil que deu certo, produto de exportação por excelência com samba, bananas e, claro, uma feição de universal que a cultura popular brasileira não tem, nem nunca terá, torna-se uma imagem sintética do Brasil. Mas o filme não quer ser apenas um pescoço degolável e, no fundo, esse processo de possessão demoníaca de Ana é um espelho dos eventos políticos desenrolados no país desde o golpe parlamentar, ainda em curso, de 2016.

É nesse laço que algo se perde, entremeado a uma história de possessão, esvaziamento e uma violência silenciosa, Tragam-me a Cabeça… insere o processo histórico nacional em pílulas codificadas que funcionam como um placebo para satisfazer um certo desejo de ir além, de não ser apenas um filme sobre uma personagem ou uma possessão espiritual, de não ser apenas um filme fetichista sobre o fetiche Carmen Miranda. Há de ser mais, tem de ser mais. E, então, o Brasil também possuído por forças misteriosas, o incêndio do Museu Nacional é uma forte imagem de destruição de uma nação, e a bagunça, da qual o país é feito como é citado em dado momento, vira um certo estandarte, como todas as vozes over de Ana que ditam um certo pensamento do Brasil como contrassenso, impossibilidade e ruína.

Mas Tragam-me a Cabeça… não é um filme de ruínas e sim de carcaças. Ruínas guardam impressas em sua matéria o destino do tempo. Já a carcaça é resto, dejeto. Os textos de Ana, as imagens-emblema do Brasil contemporâneo e os lemas políticos que pululam ao longo do filme, em geral escritos nas paredes e adesivos, como um “Fora Temer” no fundo do quadro ou o “Lula Livre” em batom no espelho do banheiro, são apenas carcaças de sentido, pois tudo está no ar, toda a carga semântica dessas palavras, todas as contradições do Brasil e de seu processo histórico recente. As palavras políticas são apenas signos, o Brasil é um fetiche (para exportação – como aliás a própria Carmen Miranda, suas contradições e ruídos enquanto imagem metafórica de um Brasil, seja ele qual for). Quando se entrega ao espetáculo de carcaças, Tragam-me a Cabeça de Carmen M. encontra sua potência. A busca pelo cogito, a política, o sentido, nem se constrói e já é ruína.


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