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Contraplanos

Há algo de incongruente e simplista na cobrança que os bastiões da moral e cívica possam fazer de que haja em Desvio uma representação mais politicamente branda do processo de indulto, ao mostrar o protagonista Pedro (Daniel Porpino) participando de um assalto a um banco – até parece que o detento deveria ir festejar o natal com a família, e depois voltar para a cela sem maiores complicações (como pede a polícia), plenamente redimido, seguindo as prescrições do Código Hays, de uma novela da Rede Globo ou filme evangélico. O longa-metragem de estreia de Arthur Lins é o oposto disto – é um filme sobre crises, desesperos, niilismo, sobre reencontrar um mundo que deixou para trás e de onde, parece, é impossível se fugir. Embora as primeiras cenas de Desvio indiquem que o universo carcerário será alvo de incursões – o travelling de luzes apagando pelas celas superlotadas, onde dos dois lados os presidiários se comprimem nas grades – Arthur Lins rapidamente abandonará quaisquer esforços de tecer comentários sociais. Vale lembrar: no filme (sempre importante não se esquecer dele), roubar vodka num supermercado ou usar drogas não são vistos como crimes, mas transgressões comuns àquela cena do hardcore paraibano retratada; e do ódio às estruturas do capitalismo e seu esforço idealista de não tomar parte nele de jeito nenhum – como diz uma das canções entoadas pelo protagonista, no momento em que relembra a música de sua ex-banda, “não quero obedecer o dilema dos vencidos”.

Há pouquíssimos elementos que expliquem as razões que levaram Pedro à cadeia. A morte de um companheiro de banda, e o desafeto com a mãe deste. Um acidente no passado é mencionado, e a este reporta uma cena correlativa – aquela que o protagonista pega emprestado a motocicleta e acelera pela noite enquanto ouvimos a voz em off sobre as vicissitudes do tempo – de onde entendemos haver no espírito deste homem um desejo de aniquilação de si mesmo, produto da raiva de não ter jamais encontrado uma voz ou um lugar para seus desejos. É claro, tudo isto é mais entrevisto que justificado. Porque a estrutura narrativa e formal de Desvio opera e revela seu personagem através daqueles que ele reencontra – por relações de espelhamento, pelo Outro – de modo que a força das cenas está frequentemente no contraplano do olhar sorumbático de seu protagonista ao ver as pessoas e as coisas: o outro ex-companheiro que agora trabalha como administrador na empresa do pai, o amigo na lanchonete, a cena punk da cidade – os acontecimentos remetendo ao protagonista, e à rememoração de seu remoto passado – por rejeição ou afirmação diante do que vê é que notamos o seu estado de espírito.

Por mais que o longa-metragem de Arthur Lins possa parecer demasiadamente convencional do ponto-de-vista estético, há um rico esforço e trabalho de constituição de planos amplos e pouco dinâmicos, o traçado das linhas mais retas, um ritmo cadenciado e uma forma mais estática de dispor os corpos no espaço – personagens frequentemente sentados ao chão, nas muretas ou reclinados sobre as paredes, como que cansados ou à espera de algo. É assim que Desvio persegue um acorde mais melancólico, refletindo um marasmo suave como o de Oslo, 31 de Agosto (Joaquim Trier, 2011), filme ao qual remete até em sua organização narrativa (os reencontros como método para justificar a reincidência, do hiato ao trauma novamente), uma vontade de escapismo somada à constatação que não há formas possíveis de se inventar novas maneiras de viver com que sonhara na juventude – que a experiência da vida em meio aos padrões do capitalismo é a de um grande rolo compressor que faz qualquer revolução nos modos de existir definhar, se adequar, ou, quão mais extrema, terminar na cadeia. Neste sentido, Desvio é menos um filme punk e mais um filme sobre a nostalgia do punk, e por isto, plenamente cabível que seja mais “comportado” esteticamente diante de seu tema.

Mas se Desvio é mesmo um filme sobre espelhamentos (vitrines, imagens, reflexos do ego), haverá um duplo privilegiado: Pâmela (Annie Goretti), a prima mais jovem, envolvida, no presente, com a cena regional do hardcore. É por ela que sabemos que Pedro é uma espécie de ícone local – como o motoqueiro destemido de Rumble Fish (Francis Ford Copolla, 1983) ou o skatista de This Ain’t California (Marten Persiel, 2012) – uma figura que inspira os mais jovens por sua potencia de transgressão, embora suas motivações interiores sejam absolutamente desconhecidas. No mundo familiar taciturno à sua volta, é nela que Pedro encontra reais pontos de contato; é quem representa uma nova geração desmembrada quase como que extensão da sua (embora ela rapidamente deixe claro também suas diferenças e opacidades). É onde o filme também encontra sua vocação de criar pontes entre duas temporalidades diferentes – o niilismo de um projeto esgotado do passado, e um presente que o simula e o encarna em muitas dimensões, mas ainda sob a égide da esperança e dos devaneios, da afirmação de si mesmo. A energia e presença de Pâmela se contrapõe à dureza física de Pedro, pois a fase embrionária da revolta é sempre mais afirmativa, alegre e plena que a sua velhice.

Embora o longa-metragem peque por excesso de clareza ou pelos personagens verbalizarem demasiadamente suas funções dramáticas em algumas cenas – e pela intromissão de uma destoante sequência de gênero (a do assalto) que foge ao tom menor do filme – nada disto compromete a sua experiência. Desvio tem o enorme mérito de extrair força da dramaturgia de seus dois personagens principais. Principalmente daquilo que eles têm em comum. A imagem síntese de Desvio é talvez aquela que serve de evidência maior deste sentimento: o contraplano geral (haveria de ser) do açude, bonito, silencioso, e evocativo, que não responde e nem ecoa os gritos de Pedro e Pâmela, quando os dois urram suas presenças para que o destino os ouça. “Olha para o mundo e grita que você tá aqui”, diz ele. Mas o açude não demonstra reação, e suas palavras se perdem ao léu. É quando torna-se evidente que não se trata de um longa-metragem sobre a revolta e seus desdobramentos, mas sobre a solidão de quem leva às últimas consequências os seus ideais; figuras que jamais encontraram no universo os ecos para os seus desejos (lá fora o vazio; aqui dentro, o caos).

O que torna Desvio um corpo estranho no atual panorama brasileiro é que há nele um misto de nostalgia e niilismo, um derrotismo quase trágico como diapasão, uma constatação serena e dolorosa que, não importa muito a esperança na causa ou a disposição de leva-la aos extremos, há algo de impiedoso no mundo, que o torna um triturador de subjetividades – sentimentos tão atípicos em momentos que o cinema vem evocando afirmação, resistência e furor como apostas nos possíveis modos de sobrevivência ao novo momento político – e por isto, o filme nos dá esta sensação de curto-circuito. Desvio não é uma luta pelo reconhecimento, mas a constatação quase convicta de que este reconhecimento provavelmente não virá nada naturalmente (que aqui talvez de nada sirvam os manifestos ou monumentos), de que há algo de inexorável no tempo e que tudo vai se conformando a ele aos poucos; a imobilidade do lago que reserva a existência destes dois personagens e aquilo que eles querem e podem ser, não na sociedade (à qual eles se envergarão), mas no singelo encontro de pares. É, impressionantemente, talvez a primeira e mais declarada constatação de uma derrota, sem os cinismos ou as crenças demasiadas.


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