in loco - cobertura dos festivais

Mistérios de Lisboa, de Raoul Ruiz (Portugal/França, 2010)
por Filipe Furtado

LebanonOs prazeres da ficção

Um homem solitário numa sala escura; em torno dele, tótens das várias personalidades que assumiu ao longo da vida, algumas já velhas conhecidas do espectador e outras que ainda viremos conhecer. Provavelmente não há imagem mais poderosa no cinema de Ruiz, todo seu projeto de fluxo de ficções representado ali naquele homem só com seus fantasmas, ator de múltiplos papéis. Mistérios de Lisboa é ele próprio um catálogo destas imagens. Na obra de Camilo Castelo Branco, Ruiz encontra um análogo perfeito para toda sua paixão para com jogos de ficção.

Mistérios de Lisboa é, à primeira vista, um filme muito bem comportado para o que esperamos do cinema de Raoul Ruiz. Sua primeira hora sugere ocasionais desvios enquanto abraça uma aproximação muito forte com certo ideal de literatura do século XIX que o filme jamais abandonará; por mais que sua narrativa se fragmente em múltiplas tramas menores e progressivamente abandone a unidade que esperamos de uma narrativa clássica. Ruiz acredita em ficções clássicas. Ele ama velhos livros como o de Castelo Branco, mas só não acredita que eles são tão redondos e fechados quanto o olhar convenciona sugere. Mais do que qualquer outra coisa, Mistérios de Lisboa é uma afirmação desta crença do seu cineasta.

Enquanto as intrigas se sucedem e o filme cada vez mais se desvia numa intersecção de focos menores, seu protagonista, tão central na parte inicial, se perde e ao mesmo tempo se reafirma. "Tentei desaparecer", ele nos narra, sem perceber que muito antes disso já desaparecera e encontrara seu papel ideal como narrador de si mesmo. LebanonMenos personagem e mais um ponto de encontro de muitas ficções, cujo papel final é fazer valer a potencia de todas as histórias que relata. Isto porque Mistérios de Lisboa não é um filme tanto quanto a história de muitos outros filmes, sendo cada uma das muitas histórias que se desdobram dele plenamente capazes de sustentar 100 minutos próprios. São quase todas variações sobre a mesma história de amores fracassados e vidas de uma forma ou outra desperdiçadas (amores de perdição, para ficarmos no título de outro romance de Castelo Branco), mas não  por isso menos intensas. Há um conforto no romanesco, na intensidade da ficção, que redime os maiores infortúnios. Qualquer outro filme sobre este mesmo material se afirmaria como uma crônica de desgraças, mas o que temos diante de nós é seu perfeito oposto: um catálogo de prazeres que só o engenho da ficção é capaz de nos proporcionar.

Lebanon"Começou como um jogo e terminou um melodrama burguês", a certa altura um personagem descreve sua relação com uma ex-amante vingativa. Tudo em Mistérios de Lisboa é um jogo e tudo é também um "melodrama burguês". É este o segredo do cinema de Ruiz como um todo e este filme especial em particular. É uma cartografia de ficções que a cada recurso de distanciamento mais se aproxima do seu drama. É um jogo onde as narrativas se sucedem, as identidades dos personagens deslizam rumo a novas personas, e os duplos se multiplicam. Nenhuma história é única, mas nenhuma história é a mesma. É puro melodrama, cada história e cada personagem um arquétipo bem conhecido de qualquer rato de biblioteca. Nos movimentos de câmera sempre muito elegantes de Ruiz, estes dois extremos se unem numa única celebração do poder da ficção.

Outubro de 2010

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