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Pretextos e adereços

O fatalismo no cinema de Felipe Bragança desabrocha de um gesto de resistência juvenil. Uma violência que pode ser apenas simbólica em seu trato subversivo, mas que preserva uma dimensão política implícita em sua condição de um não-contentamento. Desde seus curtas-metragens e primeiros longas realizados em parceria com Marina Meliande, o diretor parece assimilar uma sentença narrativa em que os personagens, para não serem engolidos por um entorno ameaçador, preservam certa integridade, uma inocência utópica que não só infantiliza um modo de ser e de amar, mas tem plena fé no mundo como um espaço de fabulação constante. Ainda que partindo de uma romantização alienada fadada ao confronto com uma realidade implacável, as histórias de Bragança não deixam de ser sobre a esperança de um lugar idealizado. Inexistente e impraticável no mundo como ele é, mas possível a partir da recombinação atemporal de uma iconografia, de um cruzamento que progressivamente mistura o tradicional e o contemporâneo na tentativa de sublimar uma irresolução presente.

Não deixa de ser comovente a fé do diretor no cinema como esse lugar de uma implicação mítica que dispõe de seus elementos a partir de uma intenção ao mesmo tempo celebratória e questionadora, de uma articulação transformadora que quer ressignificar todo o seu entorno dentro de uma perspectiva imaginativa. Mas à parte alguns curtas – O Nome Dele (O Clóvis) (2004) e Jonas e a Baleia (2006) – a proposta, na prática, acaba se limitando a uma idealização arbitrária de suas escolhas narrativas: tanto em sua composição dramática (os personagens juvenis como a única esperança em um mundo simplório em seu dualismo), como política (a incitação pela incitação, o comentário como elemento decorativo). O que nos trabalhos de 2004 e 2006 atuava como uma lógica que assume a sua anti-dramatização, reconhece o espaço do quadro como o lugar de uma proposição ambígua entre o elemento imagético e o verbal (as cartelas como uma força que se incorpora à imagem e a sua sugestão poética) e, apesar de partir de referências do cinema contemporâneo em voga, concebe uma mitologia conceitual própria ao integrar o imaginário brasileiro à sua lógica encantatória, nos trabalhos que seguiram acaba se transformando em uma submissão pré-fabricada. Desde os primeiros longas do diretor, existe a dependência de um imaginário cinematográfico que não parece interessado em propor uma renovação narrativa – ou o mero embaralhamento possibilitador de tal transformação – mas em simplesmente mediar os acontecimentos pinçados pelo diretor (da questão indígena no Brasil à problemática imigratória na Europa) dentro de um painel lúdico onde tudo cabe: de crianças monstros à gangues de motoqueiros, de piratas à super-heróis. Bragança parece incapaz de articular uma lógica narrativa que reestruture as suas problemáticas e, sendo assim, se limita a ilustrar aqueles contextos a partir de um artifício lúdico tendencioso.

Em Não Devore Meu Coração, essa mesma mística atemporal media uma tensão na divisa entre Paraguai e Brasil, fomentando o pano de fundo de uma memória sangrenta, uma ferida ainda aberta na formação do nosso país. Pretexto esse que motiva um embate, gera tanto um conflito de ordem física, de morte iminente, como de dimensão amorosa, de perspectiva pacífica de prosperidade no aconchego com o próximo. O elemento político implícito na rivalidade ancestral entre os dois países é regulado pela fantasia não exatamente em um sentido moral, mas evidenciando ideais arquetípicos (amor, morte, heroísmo) através de uma mitificação do espaço e das relações interpessoais ali contidas. Novamente, o diretor parte da relação alegórica para evidenciar uma problemática atual, no caso situar a desconjuntura dos irmãos brasileiros Joca (Eduardo Macedo) e Fernando (Cauã Reymond) com o meio em que vivem. Bragança constantemente lança mão de recursos de cena que vão de uma perspectiva dramática naif a uma trilha sonora eletrônica atmosférica, tudo na tentativa de uma formulação sensorial, de propor um embarque àquelas imagens, mas a obra parece sempre fadada a uma perspectiva processual: o que se vê não é o filme, mas a tentativa dele.

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Apesar do trabalho propor um senso de ingenuidade que é bastante tocante em sua intenção, especialmente a entrega do personagem de Joca aos disparates do amor que sente por Basano (Adeli Benitez), o filme parece incapaz de formular um vínculo esotérico que de fato vá potencializar o drama como o moderador maior desse jogo lúdico. O longa se foca em uma infantilização dos seus termos justamente para revelar uma ordem mais elementar das coisas, porém estamos muito mais reféns da dinâmica imposta por esse arsenal de artifícios propostos – timbres atraentes, elementos naturais como supostas forças sinestésicas, diálogos empossados e de marcação pretensamente rigorosa – do que uma relação que vá reiterar a perspectiva mitológica que a história projeta. O filme é fundado sobre gestos insinuantes muito pontuais no uso direto do corpo como um instrumento de transferência dessa tensão – logo na primeira cena Basano rouba o coração de Joca simplesmente colocando seu punho sobre o peito do menino – mas não é capaz de conceber uma abordagem formal que dê conta da solenidade e do rigor proposto. É como se o diretor tentasse encaixar um molde pré-fabricado dentro do contexto escolhido. O que gera a fantasia não é uma proposta que parte diretamente daquele mundo, mas precisa ser regulada por uma série de dispositivos tendenciosos: das cartelas que forçam uma fabulação inexistente no roteiro à dinâmica dramática impositiva. Ainda que o filme se coloque em um lugar de risco instigante na sua proposição anti-naturalista, especialmente nessa estima pelos corpos e pela marcação da cena como espaço de ressignificação ancestral presentificado em uma ternura juvenil, a ficção sempre soa arbitrária.

O amor de Joca por Basano pode ser tocante nessa devoção livre de um senso de ridículo e bastante empenhado em sua grandiloquência shakespeariana, mas é insuficiente em sua construção propriamente cênica. Várias das propostas de Bragança nesse romance coming of age poderiam até fazer sentido a partir de uma proposição amadora pensada dentro da perspectiva naïf do filme – também usada muito assumidamente em A Alegria (2010) -,mas a singeleza desses termos atua muito mais como ensaio bem intencionado do que queria ter sido, um exercício juvenil de processos muito explícitos, do que mote para a construção autoral baseada nessa perspectiva. O longa se revela muito mais a experiência de artifícios que faz da fabulação um impedimento, uma mediação que mais bloqueia qualquer potência inerente àquela memória política do que força concretizadora de suas preposições sensíveis. Tanto na dimensão dramática como no subtexto político, o filme evidencia muito mais o gesto como adorno, simples desejo estilizado, do que ato convicto de reordenação possibilitadora daquele imaginário. O confronto existe como tensão estética, atmosfera disparadora de uma exoticidade cinematográfica e não proposta de embate tangível na dimensão conceitual que o material sugere. Entre alusões que vão desde o cinema de aventura a tendências de uma temporalidade de fluxo, a reminiscência da Guerra do Paraguai funciona apenas como mais uma das referências icônicas que a história de amor intui. Um pano de fundo que até gera elementos interessantes dentro da lógica simbólica do trabalho, especialmente na assimilação daquele espaço como o lugar de materialização mágica, de divisa identitária e limbo memorialístico, mas que imageticamente nunca dá conta do peso histórico pretendido.

O núcleo do personagem Fernando, talvez por conciliar um realismo mais objetivo com a perspectiva alegórica, até garante certa relação dramática mais instigante. As sequências com a gangue de moto além de uma sinergia mais habilidosa na relação com o espaço, contempla uma ambiguidade que, por certos momentos, livra o filme da arbitrariedade artificialista da história de amor juvenil. Talvez justamente por se dar essa maior liberdade e não enfatizar tão diretamente a questão temática, as sequências com Fernando fluem melhor. Existe uma caracterização sutil que vislumbra desde a tensão homoerótico que vai de Scorpio Rising (1963) ao imaginário nelsonrodriguiano de O Beijo no Asfalto – além da relação paternal nas figuras de Fernando e Telecath (Marco Lori) – viabilizando uma mediação mais criativa entre a fábula e o cotidiano, ou mesmo entre o aspecto mítico encenado (a rivalidade, o grupo de homens como alusão a guerreiros modernos) que brota da tensão étnica não como mero ornamento, mas possibilidade representativa ressignificada. É justamente quando Bragança assume a alegoria como elemento deslocado do seu tema central que ele obtém mais sucesso. Quando está menos interessado em ilustrar e mais em jogar com certo ideal anacrônico de referências culturais, em propor novas alusões a códigos já estabelecidos (o galã, a gangue, a rivalidade bruta), o filme dá alguns passos positivos em sua digressão dramática. Mesmo a maneira encontrada para filmar a figura de Cauã Reymond funciona relativamente melhor que os outros personagens, num entretom entre seriedade e naturalidade que denota o fatalismo já velado na trajetória do personagem.

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Se é possível perceber a clara polarização entre a abordagem dramática dos irmãos (a artificialização anti-naturalista e limitadora de Joca e o ideal referente mais desmedido de Fernando), quando os dois estão juntos em cena, geralmente em casa enquanto Fernando faz papel dos pais ausentes, a unidade dramática do filme desanda em um realismo novelesco fora de qualquer órbita. Nos poucos momentos em que a figura da mãe está presente isso é ainda mais evidente. Quando Bragança precisa alinhar sua aproximação a um embate mais cru e direto, como é o caso de uma briga familiar, o filme perde completamente qualquer ideal de representação e aborda aquilo com uma rispidez deslocada. Sem o elemento da fantasia como mediador do espaço dramático, o diretor não parece habilitado a realizar um registro mais franco ou que dê conta de uma ação costumeira. Um simples diálogo soa mecânico e pouco expressivo, uma contextualização informal inverossímil: o filme não é capaz de operações básicas quando desgarrado de sua lógica pré-composta. É como se existissem três camadas de encenação: a assumidamente rigorosa mas demasiadamente ilustrativa de Joca, a irreverente de Fernando e o ponto médio realista entre os dois modos. O trabalho não consegue nem harmonizar essas propostas entre si e nem assumir as suas discrepâncias, fica-se num meio de campo sem ritmo onde a progressão da história sofre cada vez mais.

Bragança parece convicto de seus ideais, das referências contemporâneos a miscigenação iconográfica, mas longe de uma abordagem própria. O longa acaba sendo vítima das próprias circunstâncias ao questionar uma assimilação cultural brasileira, já que ele próprio parece despersonalizado e perdido tanto em sua caracterização – que é interessante somente quando assume a anacronia que dispensa o questionamento identitário direto – como de sua abordagem formal, fadada a gimmicks atmosféricos muito convencidos de um poder que as imagens simplesmente não possuem. Não Devore Meu Coração não assume nem o seu rigor como esvaziamento solene e nem o seu maneirismo como caricaturização possibilitadora de outras reimaginações. O mistério existe muito mais como mote calculado e depurado dentro de um processo previamente preparado do que possível enigma catalisador de novas experiências audiovisuais. Estimulante em suas intenções, no final das contas o trabalho se materializa em um gesto inofensivo demais para prover qualquer estímulo.


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