aportuguesa#cabecalho

Os destroços da civilização europeia

A Portuguesa é o sétimo longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, cineasta da linha de frente do cinema português que apesar de três décadas de uma produção rica, só nos últimos anos veem recebendo timidamente um pouco da atenção merecida. Recentemente o filme circulou pelo Brasil, primeiro no Olhar de Cinema e depois numa pequena retrospectiva dos seus filmes em São Paulo. O cinema de Gomes traz à frente alguns elementos da tradição do cinema português, sobretudo na sua relação com a literatura e aristocracia, com um gosto por certo decadentismo nostálgico sebastianista.

Por conta disso, são frequentes as comparações com Manoel de Oliveira, as quais Gomes, com muita razão, refuta. Oliveira era o último repositório da civilização europeia, de uma ideia de mundo que já dissipara quando começou a filmar regularmente nos anos de 1970. Esse desarranjo e a projeção que seus filmes permitiam era grande parte do que os tornava tão sedutores, sendo um pouco como os de Howard Hawks (seu contraponto aristocrata americano), apogeu idealista de uma ideia de estar no mundo que caducou pelos idos da Primeira Guerra Mundial e bela justamente pois encenada fora do tempo. Em Rita Azevedo Gomes, as paixões dos homens são mais destrutivas e o mundo ao redor mais arrebatador e indomável. O espaço é destrutivo, as nuvens negras que às vezes se desenhavam agora dão o tom. A função do décor é outra, menos ilustrativa mas ativa, menos o espaço que os homens se digladiam mas sim aquele com os quais eles lutam. O mundo em Rita Azevedo Gomes consome os homens. Basta pensar naquele que talvez seja seu melhor filme, Frágil como o Mundo (2001), no qual o mundo consome o jovem casal que só quer um instante a mais para si mesmos e a permanência só é possível pela intervenção generosa da cineasta. Não estamos mais no território da aristocracia, mas nas suas ruinas, no que sobra depois que da potência colonial restaram os destroços. A Portuguesa não por acidente se passa num castelo em ruínas. Deixado pela metade, pois o dinheiro acabou e os empréstimos bancários só cabem para fazer mais guerra (que era a razão pela qual o dinheiro acabou em primeiro lugar).

O filme é extraído de uma novela de Robert Musil, A Dama Portuguesa, à qual A Portuguesa preenche com um sentimento muito português. Essencial nisso o papel de Augustina Bessa-Luís que escreveu os diálogos. Se existe algum paralelo possível com o cinema de Oliveira, não é ao que ele trazia, mas do papel importante que a escritora exerceu como ocasional parceira. Sua função aqui como ponte entre Musil e Gomes traz à mente o que realizou ao transformar Madame Bovary em O Vale Abrãao, essa tradução do olhar estrangeiro em algo mais concreto ao ponto de vista do artista português. Ao olhar protestante de Musil, contrapõe-se um catolicismo turbulento. Não será mais a dama portuguesa que será estrangeira na fronteira da Itália e Áustria, mas aquele espaço que será estrangeiro diante do seu olhar. É um filme sobre o fora de campo que é menos o da guerra travada do que o de um Portugal que segue inacessível, lamento e esperança. Ao apresentar a sessão do filme no Olhar de Cinema, Rita Azevedo Gomes a dedicou à recém-falecida Bessa-Luís e comentou que a escritora realizou a adaptação a cerca de dez anos, pouco antes de um AVC que a limitou na última década de sua vida, e que ao retomar o roteiro na hora que finalmente teve condições de filma-lo se surpreendeu muito ao preferir a versão de Bessa-Luís à novela original. Uma preferência que diz muito sobre as virtudes do filme.

A Portuguesa é um filme português. Fatalista, tomado pelo signo da derrota. Negocia-se com o mundo o tempo todo, um grande parto ao qual será um bom dia se as coisas terminarem num empate. A portuguesa é uma nobre recém-casada com um aristocrata italiano decadente e tolo. Terminada a lua-de-mel, o dito cujo se manda para guerra e por lá fica na maioria dos onze anos seguintes. Só retorna ao castelo ferido e atrás de reforços. A Portuguesa é um filme de guerra no qual estamos o tempo todo na retaguarda da batalha oficial. Da guerra dos homens (“entre o trabalho e a guerra a se escolher, ambos servem para distrair a ira humana”) vemos somente um plano deslumbrante. A comitiva dos nobres chega ao campo de batalha depois e recebida ali pelos cadáveres dos soldados mortos. A câmera de Gomes registra aqueles destroços do campo de batalha, epitáfio de uma guerra que, à parte esse momento, ela consagra ao fora de quadro. É de grande economia de recursos e forte expressão dramática. A única outra cena de guerra que temos acesso é da negociação da paz. Negociação melancólica, que nos chega via delírio de um enfermo, porque nenhum dos nobres ali parece muito feliz de voltar para casa. “Sabe o que é a paz? Com ela vem a corrupção e o vício”: a fala terrível e amargurada vinda do rival do marido da portuguesa ressoa sobre todo o último ato do filme, o credo que A Portuguesa precisa repudiar. Boa parte dos últimos cinquenta minutos do filme são sobre essa dificuldade de viver na paz que só revela como os homens são tolos e inúteis, loucos para provar sua virilidade.

A guerra de verdade aquela que vale ser disputada é essa segunda, entre a portuguesa e aqueles a sua volta, entre homem e mulher, entre o homem e a paisagem. Daí a recorrência desses quadros muito bem compostos de Clara Riedenstein sempre em repouso naquele espaço pouco convidativo. A natureza dura e seca está sempre ali. A aspereza das paisagens recebe o tratamento rico de cores do filme. Saem da infertilidade da civilização europeia para o domínio da arte. A destacar nisso o grande cuidado da fotografia de Acácio de Almeida. A astúcia da portuguesa é que, assim como o filme que empresta seu nome, ela está mais preocupada com a natureza hostil do que com as pequenas intrigas palacianas, se dedica ao pequeno lobo que adota muito mais do que às fofocas sobre sua própria figura intrusa. O lobo, por consequência, tem muito mais tempo de cena do que seus filhos que são pouco mais que a confirmação do seu contrato social.

Os animais são constantes – o lobo, o gato – assim como a ideia de que a portuguesa seria uma bruxa por se filiar a eles (“os gatos têm alma de filosofo”). O filme passeia neste tripé homem/natureza/animal com desenvoltura. Existe ali a figura do penhasco junto ao qual o castelo é construído que permanece como a materialização desse espaço intransponível e num dos momentos-chave da última parte, o marido tomado pelo ciúme e ainda enfermo escala o penhasco numa mistura em miniatura de De Olhos Bem Fechados com Jauja, que reforça o narcisismo e humor absurdo da situação. A guerra militar deságua na guerra privada do casamento turbulento mantido em suspenso por onze anos: “eu terei forças e você terá filhos”, o marido enfermo repete enquanto segue respondendo de forma viril às afirmações de poder sutis da esposa.

Além dos animais, as figuras com as quais Gomes mais frequentemente pontua a trajetória da portuguesa são duas mulheres. Há a imagem de Ingrid Caven, com a qual o filme se abre e se encerra e que é retomada constantemente sempre às margens, a observar, mas também para acrescentar um lirismo musical. Uma imagem que é sempre icônica da história do cinema que está ali a comentar o filme. Na outra ponta, existe a figura de Rita Durão, com quem antes Gomes trabalhara em A Coleção Invisível e A Vingança de uma Mulher, como a escrava moura sempre ao redor de Riedenstein. Durão pouca fala ao longo do filme, mas muito escuta e vê. Sempre em cena, sempre a relembrar Portugal, há algo muito particular de que nesse filme sobre aristocracia as lembranças do país comecem com a figura da escrava. A ela o filme retoma de tempos em tempos sempre que a narrativa se leva por incidentes improváveis ou quando a portuguesa precisa de um momento de intimidade. São os olhares dessas duas mulheres plebeias que descortinam a ação.

Nunca veremos Portugal, mas é a Portugal que o filme sempre volta. O mar é invocado repetidas vezes em contraste com a paisagem seca do norte italiano. O mar português: as aventuras do conquistador, a promessa de uma renovação, do eterno retorno. A Portuguesa e a portuguesa ambos encenam um deslocamento para dentro, para as entranhas da nobreza que sonha com suas guerras fúteis. Em contraponto, Portugal persiste como volta, saudade e derrota. Um mundo que precisa ser retomado. Se há no cinema português frequentemente um forte sentido de história, aqui ele permanece corroído, nos destroços, como no tableau vivant pós-batalha que mais cedo o filme eternizara.

– “Lembrai-vos do mar?
– Do mar e de tudo.”

É este tudo que, de alguma forma, Rita Azevedo Gomes luta para nos contar.


Leia também: