A Vingança de uma Mulher, de Rita Azevedo Gomes (Portugal, 2012)

março 1, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

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* Visto no CineBH 2014.

Da extrema necessidade das aparências ou a adjacência como forma
por Victor Guimarães

“Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece”


Luís de Camões, citado em A Vingança de uma Mulher

“Para se conseguir a verdade é preciso compor. O artifício é obrigatório.”

Alberto em O Som da Terra a Tremer (Rita Azevedo Gomes, 1990)



“Não é mais do fantasma das coisas que o cineasta deve tirar 
sua matéria, e sim das mais vivas e chocantes aparências. 
O cineasta deve compor com o que há de mais concreto 
nas aparências, de maior gravidade.”

Jacques Rivette, A era dos metteurs en scène

Um homem vestido com trajes vitorianos caminha solenemente por uma praça, enquanto sua voz over comenta as últimas peripécias secretas das mulheres da vizinhança. Sob os vestidos coloridos e a etiqueta irretocável da vida pública, escondem-se as paixões e os pecados cotidianos. Na encenação, nada se dissimula: dos figurinos de época ao cenário pintado ao fundo, tudo tende ao artifício absoluto. Não há dúvidas de que se trata de um estúdio, espaço insular apartado do mundo, reino pleno da simulação. A instalação do espectador no filme não se dá pela via da ilusão cinematográfica habitual, mas por um mergulho fundo na materialidade das aparências. Os passarinhos nas árvores são de plástico e cantam. Tudo é falso e, no entanto, há algo que vibra.

Logo nas primeiras sequências de A Vingança de uma Mulher, um território cinematográfico se descortina. Rita Azevedo Gomes é herdeira legítima de uma redescoberta moderna da teatralidade no cinema que remonta a Rivette e Oliveira. Sua obra – como a desses veteranos – não quer nem se desvencilhar do teatro nem emulá-lo, mas encontrar nele um ponto de tensão criadora. Por um lado, a crença na força de evocação dos objetos, dos figurinos e dos cenários faz valer a potência da pura convenção teatral (basta acrescentar um adereço para que um personagem contemporâneo de A Conquista de Faro, de 2005, se torne Dom Afonso III).

Por outro, há uma intensidade naturalista nas atuações, cujo vigor emocional contrasta com a artificialidade declarada do décor. Nos planos longos, quase sempre constituídos pela frontalidade da encenação e pela profundidade de campo, há um virtuoso jogo entre a câmera, os objetos e a presença dos corpos, que faz com que a cena seja um espaço não de contemplação distanciada, mas de metamorfose constante em seu interior. No cinema de Rita Azevedo Gomes, não há reverência à homogeneidade do ponto de vista ou à unidade perdida do espaço cênico: o reconhecimento da cena como princípio comum do teatro e do cinema convive com ângulos incisivos e movimentos de câmera fluidos e extremamente precisos, que frequentemente alteram o ponto de vista e transformam inteiramente as coordenadas do plano em seu decorrer (como nos inúmeros momentos em que um personagem sai de quadro e a ação passa a se desenvolver dentro de um espelho). Os extraordinários travellings de Frágil Como o Mundo (2002) já bastariam para atestar a força desse estilo que se aproxima do teatro para contorcê-lo e expandi-lo com as forças próprias do cinema, mas é em A Vingança de uma Mulher que a realizadora parece atingir o ápice dessa arte da cena tão singular.

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Se a narrativa de O Som da Terra a Tremer (1990) é enigmática e fragmentada, a de A Vingança de uma Mulher assombra por sua imensa economia. Baseada num conto homônimo de um obscuro escritor francês do século XIX – Barbey d’Aurevilly –, a história narra o encontro entre Roberto (Fernando Rodrigues), um galante cavalheiro português, e uma prostituta local (Rita Durão). No decorrer do filme, descobriremos que essa mulher é a duquesa de Sierra Leone, esposa do mais rico dos duques da Espanha, e que traz consigo uma enorme tragédia. Inflamada pelo ultraje do assassinato de seu amante Estêvão – o único homem que amou na vida – e sedenta de vingança, a duquesa decidiu tornar-se prostituta e embarcar em uma jornada progressiva de degradação, com o único intuito de proporcionar o máximo de desonra possível ao marido. Não basta matá-lo e atirar seu coração aos cães, como ele fizera com Estêvão; é preciso arruinar para sempre sua reputação, desferir um golpe mortal em seu nome, apagar os sinais de sua opulência.

A duquesa precisa do mundo – esse putrefato mundo de aparências e disfarces – para levar a cabo sua vingança implacável. Roberto (“um daqueles homens para quem a simulação se tornou a maior arte”) é o interlocutor ideal, e esse encontro ocupará o centro magnético do filme. Ao contrário de O Som da Terra a Tremer e Frágil como o Mundo (filmes em que a natureza ocupa um papel central), A Vingança de uma Mulher é um drama de alcova, de máxima concentração espacial. Boa parte do filme se passa entre quatro paredes, na noite em que Roberto encontra a duquesa e ouve sua história.

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E não é preciso muito mais que um quarto, algumas roupas e uma grande atriz a falar para que uma das joias mais preciosas do cinema recente aconteça em sua plenitude na tela. Cinema da palavra, que reconhece na fonte literária não uma referência a ser transposta em imagens ilustrativas, mas uma matéria verbal construída a partir de uma colcha de citações e trabalhada à exaustão, em toda a sua potência de evocação do invisível e de ressonância poética e musical. Cinema do corpo, que faz do trabalho dos atores um verdadeiro tour de force e desperta no espectador uma atenção profunda a cada inflexão da voz (ora acentuada pelo silêncio sepulcral, ora complementada pela música) e a cada mínima variação do olhar. No longo monólogo da duquesa, esses dois aspectos se encontram e explodem: a narração evoca uma tragédia que não se vê, mas se experimenta como um filme de horror, tamanha a densidade da performance de Rita Durão. Sua voz preenche cada centímetro do veludo vermelho-sangue do quarto, e é como se uma das divas de Werner Schroeter (com quem a diretora trabalhou em O Rei das Rosas, de 1986) ressurgisse ainda mais imponente, falando um português dilacerado pela vida. A mise en scène instala o olhar em uma cena tão intensa que cada corte chega a doer.

O diálogo com o teatro se torna ainda mais complexo quando o filme enseja não apenas uma encenação que aposta na artificialidade assumida, mas encampa um jogo com a própria enunciação. Desde o início, a figura de um narrador se interpõe entre a diegese e o espectador e passa a integrar a economia narrativa do filme. São muitos os momentos em que essa figura irrompe na cena para comentá-la de dentro, em um movimento que caminha lado a lado com a revelação de espaços adjacentes aos cenários das ações principais, como coxias ou vestiários. Embora as estratégias sejam semelhantes, estamos longe dos efeitos de reflexividade tipicamente modernos: as provas de figurino e as leituras de texto não promovem ruptura, mas contaminam o relato principal e passam a integrar uma mesma aposta inveterada na ficção e na materialidade das aparências, traços que aproximam A Vingança de uma Mulher de um realizador contemporâneo como Pierre Léon. O ápice desse gesto de contaminação está nas constantes alternâncias entre o monólogo da duquesa no quarto e as cenas rememorativas do passado, que revelam a tragédia da protagonista. Do mesmo modo em que a transição entre as inserções “extra-diegéticas” (como a leitura preparatória do texto por Rita Durão) e o drama principal se dá por uma simples mudança de iluminação (num apagar e acender de luzes, passamos do comentário à crônica), basta uma leve transformação da paisagem sonora para se realizar a passagem entre o presente e o passado da intriga. A duquesa apenas atravessa uma porta e já está no passado e na Espanha, graças a uma simples alteração de luz e de som. Basta cruzar a porta que separa cômodos vizinhos, basta um ruído de passarinho a mais, basta apagar uma lâmpada para que o reino do artifício se transforme em verdade do cinema.

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Essa iminente adjacência entre o relato e o comentário, entre o passado e o presente, entre o bastidor e o palco, é o que distingue a máquina fabulatória de A Vingança de uma Mulher. O mesmo gesto que impele Rita Azevedo Gomes a colocar lado a lado Camões e uma poeta recente como Cristina Campo é o que a faz apostar na vizinhança entre mundos qualitativamente distintos, mas sempre prestes a se contaminar novamente. A densidade realista do monólogo trágico está sempre a um passo da artificialidade das reminiscências (a flecha atravessando o pescoço do amante, o sangue e o coração de plástico atirado aos cães), como se a supressão de uma parte do poema encarnasse essa adjacência febril entre a paixão (“Ficou para trás, quente, a vida”) e a repulsa (“torno a ti que gelas/na minha leve túnica de fogo”). Ao final, quando a porta do estúdio for aberta e revelar a luz dura da rua e o ruído sem graça dos carros lá fora, haverá ainda um menino a tilintar seus guizos de outro século uma vez mais. 

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