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O retorno ao pornodrama

Escondida em uma quitinete no Rio de Janeiro, mais precisamente no bairro de Copacabana, a pornochanchada permanece viva entre nós. Tem saudades do tempo em que, serelepe, circulava pela cidade querida. Invadia a praia, os botequins e, principalmente, os cinemas. Passeava de carro, mantinha outro endereço em São Paulo, fumava cigarros Vila Rica – porque levava vantagem em tudo –, era fértil e desejada. Hoje muitos pensam que está morta, mas a verdade é que sempre a alimentamos clandestinamente e, de vez em quando, alguém solicita seus préstimos. Estes variam de acordo com o humor da ocasião: já houve quem arrastasse a pornochanchada para a Barra da Tijuca – a franquia De Pernas Pro Ar – e quem a seviciasse sem escrúpulos – os pornôs “com história”, da produtora Brasileirinhas e congêneres. Por isso, em nada assusta que um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos seja Intimidade Entre Estranhos (2018), herdeiro de vários catecismos que a pornochanchada criou ou readaptou ao gosto nacional. O drama cafajeste, a musa que fica nua sem pedir licença, o marido corno e o amante improvável estão todos presentes no filme dirigido por José Alvarenga Júnior.

Dentro da vocação polimorfa da pornochanchada, o correto seria chamarmos Intimidade Entre Estranhos de pornodrama. Algo como Helena Ramos em Mulher Objeto (1980), porém sem alcançar o existencialismo sofisticado de um Walter Hugo Khouri ou Alberto Salvá. Maria (Rafaela Mandelli) é carioca e volta de São Paulo para viver em sua cidade natal. O marido, Pedro (Milhem Cortaz), é um ator de terceira categoria, em busca de oportunidades no Rio. Alugam apartamento em um prédio esquisito e silencioso. Logo descobrem que o síndico (e dono da maior parte do edifício) é Horácio (Gabriel Contente), o típico nem-nem, jovem problemático que nem trabalha, nem estuda e sobrevive da renda dos apartamentos deixados pela avó. Embora durma dentro de uma espécie de cápsula e passe o dia na penumbra jogando videogame, nenhuma dessas facetas da personalidade de Horácio é a mais inusitada. Acontece que ele torce pelo Botafogo. Sim, pelo Botafogo.

Imagine, você tirar a roupa para um sujeito sabendo que ele torce pelo Botafogo. Uma espécie de fetiche. Nelson Rodrigues em Asfalto Selvagem criou Zózimo, o flamenguista repugnante, que suava pelas mãos. Zózimo, pelo menos, era casado com a deliciosa Engraçadinha, embora não pudesse ver a esposa nua. Problemas lá deles. Já Horácio é tão solitário quanto a estrela do seu clube. Os times de futebol cariocas envelheceram mal. A sina começou com o América tijucano e, aos poucos, chega aos outros grandes. Seus torcedores ruminam o sucesso dos prósperos times paulistas e, claro, se juntam para torcer contra o arquirrival Flamengo. Horácio não é diferente. Entra em conflito com a vizinha Maria, que é rubro-negra. Nada me tira da cabeça que o fato da mulher inefável ser flamenguista foi recurso canalha do roteiro, dividido entre Alvarenga e Matheus Souza. A impotência e o estranhamento botafoguense de Horácio parecem mais evidentes.

Com o título Intimidade Entre Estranhos, o espectador não precisa de muita inteligência para saber o que vai acontecer quando Maria e Horácio se conhecerem. A questão é que o marido existe. Um paulistão chato, ôrra meu. Paulistas como o marido Pedro, aliás, são personagens típicos da pornochanchada – não existem na vida real desde As Anedotas do Pasquim. Os intercursos amorosos entre o casal Pedro/Maria são as primeiras deixas para que o filme descubra sua mina de ouro: servir de veículo para a beleza da atriz. Uma pena Walter Hugo Khouri não ter conhecido Rafaela Mandelli. Quase como uma Selma Egrei, tudo nela é khouriano. Eu vejo Mandelli, hirta, olhar de santa, caminhando entre as ruínas de O Palácio dos Anjos (1970). Fabricando ilusões em O Desejo (1975). Pena que seu destino sejam filmes vulgares e seriados duvidosos como O Negócio, da HBO. O curioso é que Intimidade Entre Estranhos não se furte à reverência, e preste um tributo delicado ao magnetismo feminino.

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Por mais que a graça de Maria clame por atenção, é Horácio quem salva um enredo aparentemente tão óbvio. A desgraça de ser um rentista deprimido parece que vai transformá-lo em Incel (involuntary celibate, neologismo pós-apocalíptico). Só que, no fundo, Horácio se acha melhor do que o marido da beldade. Parte para o ataque. Consegue até que Maria deite com ele na cápsula. John Travolta, em O Menino da Bolha de Plástico (1976), perderia a vida caso saísse da proteção artificial. Horácio acredita que ganhará uma vida, arrastando Mandelli para o seu mundo inócuo.

O grande drama de Horácio, sua não-existência voluntária, leva Intimidade Entre Estranhos ao paradoxo: conforme avançam e ganham espaço na trama, o rapaz e o marido Pedro afastam a narrativa de uma empatia sincera por aquele triângulo amoroso. Eu citaria fácil David Hamilton como exemplo de sacanagem amorosa bem resolvida, que dá gosto de acompanhar, mas Hamilton é menos significativo para o público do Brasil que Uma Professora Muito Especial (1980), clássico do Domingo Maior, que trazia Sylvia Kristel como perversa sedutora de menores. Com trilha sonora acachapante de Rod Stewart, Uma Professora Muito Especial parecia um delírio adolescente, tão viciante quanto a Playboy da Tássia Camargo. Mas eram os anos 1970 e 80: o cinema erótico representava um fim em si, uma gostosa brincadeira a dois (ou a três, quatro, como quiserem). Horácio, Maria e Pedro habitam outro planeta. Tudo é culpa. Tudo é mórbido e sofrido. Essa atmosfera neurótica do presente, Intimidade Entre Estranhos decifra suficientemente bem.

Até porque falar do desejo homem-mulher no século XXI (ou sobre qualquer outro assunto) virou pisar em ovos. Você pode ser mal interpretado, acusado de dizer o que não disse, colocado na berlinda por um piscar de olhos matreiro, que nada significa além de um piscar de olhos matreiro. Pegue a literatura ou o cinema de quarenta, cinquenta anos atrás e analise sob a ótica da moralidade atual (digo moralidade pois o que vivemos nada mais é do que manipulação de falso moralismo): quase nada se salva. Gênios como Sérgio Porto, Nelson Rodrigues, Costinha levariam piparotes lacradores do poder ultrajovem, ávido em atacar aquilo que não consegue compreender. Intimidade Entre Estranhos não cede à tentação de higienizar-se (Mandelli, na piscina de plástico, é um achado estético), ao mesmo tempo que aborda a falência contemporânea das paixões – a libido voltou-se para a dicotomia política, ou para o flagelo íntimo, caso de Horácio – sem medo de causar objeção no espectador.

Esquecido nos dias de hoje, Paulo Mendes Campos foi um dos maiores cronistas brasileiros. Deixou relatos maravilhosos da infância em Minas, do jornalismo no Rio de Janeiro e até de suas aventuras experimentando LSD. É de Mendes Campos uma célebre crônica chamada “O Amor Acaba”, queridinha das românticas professoras. De vez em quando você abria uma prova de português e lá estava “O Amor Acaba”. Nunca me esqueci como o amor acabava: “Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema (…)”.

Percebam que o amor de que fala a crônica não é apenas o amor carnal: é a paixão do espírito por alguma coisa ou alguém. E que assim como veio, pode ir. O que sobrevive de belo (e assustador) na escrita de Mendes Campos é a transitoriedade dos sentimentos, assim como a transitoriedade da vida. “O Amor Acaba” é um resumo possível de Maria entre os dois homens. Ela parece de saco cheio de ambos. Bastaria uma fagulha para que o pote transbordasse.

Temos um final lacrimejante, com direito a citação sutil do clássico Verão de 42 (1971). E, ao findarem os créditos, o que o espectador retém de um pornodrama? Nunca conseguimos esquecer de Heloísa Raso convencendo Aldine Muller a se prostituir em A Mulher Que Inventou o Amor (1979). Ou, para baixarmos a bola, de Diva Medrek transando com Cat Regine dentro de um Passat em As Amiguinhas (1979). Isso para não falarmos de Christiane Torloni propondo “ensinar um jogo” a Nicole Puzzi em Ariella (1980). Percebam que o melhor de um filme em que a promessa sexual seja o atrativo, será sempre o momento em que o sexo triunfe. Nessa tradição é que Intimidade Entre Estranhos, talvez sem querer, mergulha profundamente.


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