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O último escultor cubista

Em Os Convidados, Ken Jacobs se apropria de um fragmento de 30 segundos de Entrée d’une Noce à l’Église, uma vista Lumière filmada em 17 de junho de 1897. A vista retrata a entrada dos últimos convidados para o casamento da irmã de Charles Moisson, projecionista dos irmãos Lumière, na igreja de Saint-Lambert de Vaugirard, em Paris. Em um desenvolvimento recente de suas pesquisas com o 3D digital, Jacobs ralenta a projeção do filme original ao máximo e sobrepõe, a cada vez, dois fotogramas ligeiramente apartados no tempo, alternando o olho com o qual o espectador vê o primeiro fotograma e conseguindo, com essa operação extraordinariamente simples, uma profusão de novas perspectivas tridimensionais a partir de uma imagem em duas dimensões, explorando constantemente o intervalo entre o 2D e o 3D. Na assincronia temporal, reinventar o espaço: a imagem compósita que resulta do gesto cria novas profundidades, desloca posições das figuras no quadro, altera dimensões, alonga ou encurta distâncias. O pequeno grupo de convidados à porta da igreja se torna uma superfície múltipla, instável, atravessada por incongruências figurativas. Um passante no meio da rua ao fundo nos aparece em um plano mais próximo do que a primeira colocada na fila; os corpos e as arquiteturas adquirem um aspecto fantasmagórico; a progressão original do movimento adiante é transformada num quase-looping de quase-idas e quase-voltas; a linearidade dos convidados em fila indiana se desarma numa justaposição de posições divergentes; a integridade anatômica dos corpos se desfaz numa composição heteróclita de troncos e rostos que se misturam; a integridade figurativa é assaltada por episódios insurrecionais de abstração… E um longo etecetera. A emoção inigualável provocada pela feitiçaria de Jacobs – a sensação de ver uma imagem do século XIX com os olhos de um alquimista do século XXII – nos arrebata mais uma vez.

Não por acaso, as cartelas iniciais de Os Convidados definem Charles Moisson como “inventor/projecionista”. O epíteto dado ao funcionário dos Lumière se aplica à própria arte/trabalho de Ken Jacobs, caso raro entre artistas que fazem coincidir, ao extremo, inventividade técnica e ousadia estética. Desde a metade dos anos 1970, Jacobs vem trabalhando com um método compositivo que chamou de Nervous System. Originalmente, o sistema consistia em uma performance ao vivo com dois projetores analógicos 16mm projetando simultaneamente o mesmo fragmento de filme. O projecionista-performer Jacobs usava um obturador externo para criar uma assincronia: ao sobrepor dois fotogramas consecutivos, a imagem bidimensional original era tomada por um impulso 3D, que podia ser experimentado sem óculos especiais. Alguns de seus filmes mais famosos – como Disorient Express (1996) – foram, originalmente, performances do Nervous System. Neste filme mais recente, Jacobs parte do mesmo princípio figurativo, mas agora trabalhando diretamente com o 3D digital.

É curioso observar como Os Convidados é um filme mais convidativo (com o perdão do trocadilho) do que outras experiências de Jacobs com a tridimensionalidade. A violência do batimento das imagens de um Capitalism: Child Labor (2006) ou a luz latejante de um Pushcarts of Eternity Street (2006) cedem espaço para uma meditação pausada, que nos convida a experimentar cada detalhe dessa visita aos começos do cinema. Na trilha sonora, os silêncios por vezes são habitados por uma música suave, que nos faz escutar até o ruído da agulha na vitrola. Mas essa generosidade não rima com pasmaceira: cada imagem é uma forma nova de intranquilizar o olho, um desafio novo para os sentidos do espectador.

Um fragmento anterior da mesma vista Lumière fora usado em Coupling, uma performance do Nervous System de 1996. A obsessão com os pioneiros do cinematógrafo vem de décadas e não é fortuita. Herdeiro da perspectiva renascentista, o enquadramento cinematográfico dos Lumière aposta frequentemente na profundidade da composição como índice de realismo. Entrée d’une Noce à l’Église é, aliás, um exemplo paradigmático: posicionada na porta da igreja em um ângulo levemente oblíquo, a câmera se dirige aos passantes que, um a um, caminham em direção ao casamento e passam por nós, vindos da rua ao fundo (que funciona perfeitamente como ponto de fuga). Mas as vistas Lumière são também um campo de batalha entre a estabilidade estudada do quadro e seu contrário, a instabilidade do movimento imprevisível das figuras. Como escreve Luiz Carlos Oliveira Jr., “a força sintética do enquadramento luta para rejuntar uma realidade que já foi centrifugada, esfacelada numa infinidade de microeventos simultâneos, uma realidade perpassada por um princípio de incerteza e inquietação”. À primeira vista, ao estancar a fluidez do movimento, Os Convidados acentua a rigidez da perspectiva e desterra a vista Lumière de seu maior trunfo: o vento nas folhas, como diziam os primeiros espectadores. Num segundo movimento, no entanto, a operação de Jacobs encontra uma mobilidade intensa onde menos se espera: não no fluxo evanescente da imagem-movimento, mas no interior de cada fotograma sobreposto. O filme altera sutilmente o ângulo e a perspectiva, cria movimentos laterais novos, inventa uma fluidez figurativa onde os contornos pareciam definidos de uma vez por todas. Paradoxalmente, o 3D digital inventa uma nova profundidade no mesmo movimento em que dinamita a profundidade fotográfica original: ao estratificar a imagem em camadas dispostas paralelamente à boca de cena, Jacobs descobre um impulso planimétrico acentuado onde antes só havia efeitos de profundidade. A imagem nos aparece simultaneamente mais profunda – pois 3D – e mais chapada. A aventura do olho em direção ao ponto de fuga é agora um caminho acidentado.

Mais do que um traidor, Jacobs é um continuador de Lumière. Se a instabilidade das vistas é o que faz com que Jean-Luc Godard, na boca do personagem de Jean-Pierre Léaud em A Chinesa (1967), se refira a Lumière como “o último pintor impressionista”, reivindicando uma modernidade pictórica onde muitos só viam uma invenção mecânica sem estilo, Ken Jacobs traslada o cinematógrafo ao ápice de sua vocação experimental. Em Os Convidados, é como se uma tela de Manet ou Degas servisse de material para uma assemblage de Braque ou Picasso. Sem romper inteiramente a fidelidade ao original, mas desarticulando-o por dentro, o impressionismo dos Lumière adquire um devir cubista na reapropriação: ao instaurar zonas de indecidibilidade figurativa nas entranhas do realismo cinematográfico nascente, Os Convidados desdobra a evanescência das impressões lumièrianas na multiplicidade incongruente das composições. Ken Jacobs, último escultor cubista.

Ao encontrar uma multiplicidade inimaginável em uma imagem dos primórdios do cinematógrafo, Jacobs ataca as convenções figurativas mais arraigadas de um século de imagens-movimento para nos fazer experimentar novamente a elasticidade constitutiva dessas imagens que a história das formas parecia ter cristalizado de uma vez por todas. Se a convenção mimética que governa o uso hegemônico do 3D deseja cada vez mais um excesso de real, e inventa um arsenal tecnológico bilionário para consegui-lo, Os Convidados nos mostra que uma traquitana caseira é capaz de fazer implodir esse sistema figurativo. Arrebentar o estágio mais avançado do capitalismo audiovisual para encontrar a dissonância onde tudo parece harmônico. Desfazer a imagem reificada, nos fazer experimentar a dor da separação, explorar o intervalo entre um olho e o outro – para que as entranhas da operação de alienação da percepção possam ser habitadas. O gesto político de Ken Jacobs é certeiro: para desmantelar o castelo dos senhores, é preciso primeiro quebrar as ferramentas que garantem sua sustentação.


Neste mês, a Sessão Cinética exibe Os Convidados (2013), de Ken Jacobs, no dia 10 de Outubro, às 19h30, tanto no IMS Paulista quanto no IMS Rio. Após as sessões, haverá debates com os críticos da revista e convidados/as.

A cada dois meses, a Cinética faz uma sessão em parceria com o Instituto Moreira Salles, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Os Convidados será exibido em 3D no formato DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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