Star Spangled to Death, de Ken Jacobs (EUA, 1956-1960/2001-2004)

agosto 12, 2015 em Em Vista, Victor Guimarães

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O arqueólogo alquimista
por Victor Guimarães 

Enfrentar, na escrita, um filme como Star Spangled to Death – considerado pelo próprio Ken Jacobs, sua obra mais ambiciosa até aqui – é tarefa das mais ingratas. Suas dimensões monumentais (trata-se de um dos maiores cineastas vivos e de um filme que atravessou a segunda metade do século XX em inúmeras versões, até que fosse dado por terminado em 2004, em quatro capítulos que totalizam quase sete horas de duração) contrastam com minhas enormes limitações de repertório e de capacidade crítica. O desconhecimento em relação a esse filme no Brasil e o desinteresse da crítica e da academia por Ken Jacobs, no entanto, me compelem a assumir o risco da empreitada, consciente de que não estou à altura da tarefa, mas esperançoso de que o texto possa contribuir, ao menos, para que a obra de Jacobs seja mais vista e discutida entre nós.

Logo nos primeiros minutos, uma poética se esboça. Após uma epígrafe provocativa (“Young man, you’ve got a lot of explaining to do”), o filme traz um longo excerto da primeira série de televisão sobre a “vida selvagem” (The Big Game Hunt), filmada na África e estrelada pelo casal de exploradores estadunidenses Osa e Martin Johnson em 1953. Osa, a líder da expedição, comanda sua última aula para um grupo de crianças africanas. O discurso “humanitário” da voz over descreve a cena: “Ela passa o pouco tempo que lhe resta entre as pessoas simples e primitivas, os nativos a quem ela sempre tentou ajudar, trazendo a eles algumas das bênçãos da civilização”. Mais adiante, sobre a imagem de uma liteira sendo carregada por um grupo de homens, a voz justifica o meio de transporte: “A chefe do safári precisa manter sua força para o suplício adiante”. Enquanto o filme de arquivo prossegue com essa inusitada síntese involuntária do colonialismo à americana, algumas intervenções sutis se fazem notar na montagem e na banda sonora: intercalam-se breves imagens de performances de Jack Smith entre os transeuntes de Nova Iorque nos anos 1950, sobrepõem-se alguns acordes de jazz aos sons dos tambores africanos, a voz do próprio Ken Jacobs recita – em um flow bem próximo do rap, com direito a um “Yeah!” sussurrado ao final – pedaços de letras de canções de George e Ira Gershwin, até que um trecho de um desenho animado interrompe brevemente a sequência de arquivo faz a pergunta inevitável.

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Se grande parte da obra de Ken Jacobs é devotada a expandir exponencialmente as possibilidades de uma única fonte imagética – toda a maquinaria da exploração capitalista revelada a partir de uma só fotografia estereoscópica em Capitalism: Child Labor (2006), os dez minutos das imagens do cameraman de Griffith transformados na bíblia do ensaísmo visual em Tom, Tom, The Piper’s Son (1969) –, Star Spangled to Death marca uma diferença significativa. Embora haja uma inegável fascinação pela história e um respeito pela integridade do arquivo do qual se parte – característicos da obra de Jacobs, como no deliciosamente didático New York Street Trolleys 1900 (1999) –, o filme não cessa de dialetizar as imagens, de confrontar umas com as outras, de submetê-las ao crivo crítico da montagem no mesmo movimento em que as abre para diálogos lúdicos improváveis.

O maior arqueólogo da história do cinema – esse artista capaz de nos levar ao ápice do maravilhamento ao nos fazer ver uma imagem do século XIX em 3D (em Opening the Nineteenth Century: 1896, de 1990) – se converte aqui, no auge da Era Bush, no artífice de uma genealogia incomparável do pensamento americano. Dupla feição do monumento: o próprio filme – obra de vida inteira, realizada ao longo de quase cinquenta anos – e sua poética, devotada a perscrutar incansavelmente os vestígios de uma ideologia que se materializa em monumentos fílmicos tão díspares quanto podem ser um documentário etnográfico e um desenho de Mickey Mouse, um registro científico de uma experiência com macacos e um discurso de Nixon.

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A sinopse escrita pelo próprio Jacobs para o filme é elucidativa: “Combinando filmes de arquivos com meus próprios filmes mais ou menos encenados, retrata uma América roubada e perigosamente vendida, dando exemplos da cultura popular do autoindiciamento. Insanidade racial e religiosa, monopolização da riqueza e o silenciamento proposital de cidadãos e a dependência pela guerra se opõem a um ritmo de brincadeira. Para completar o quadro, um punhado de artistas fantasiados e atuando de forma pouco convincente atraem a imaginação e o entendimento do público”. Duas relações com a história convivem: de um lado, trata-se de recuperar e fazer reviver – a partir do diálogo com esse imenso repertório fílmico – a memória das experiências vividas/filmadas ao lado de Jack Smith e Jerry Sims na segunda metade dos anos 1950 (boa parte do que vemos são essas performances na rua); de outro, de operar uma modalidade de historiografia materialista que descobre na própria inteireza dos arquivos a violência das operações da ideologia.

Na face mais impressionante da obra de Jacobs, um dos gestos mais extraordinários consiste em aperfeiçoar materialmente, fisicamente, na duração da experiência de um filme, nosso modo de enxergar as imagens. Disorient Express (1996): a tela se duplica, as imagens se invertem e, de repente, sem a necessidade de óculos especiais, a tela plana começa a ser governada por um impulso 3D. A profundidade se metamorfoseia, abstração e concretude oscilam, uma viagem de trem em 1906 se transforma em passaporte para um cinema do futuro. Nas maquinações misteriosas desse artista que poderia ser chamado de o último dos alquimistas, o que descobrimos com frequência é um novo e insuspeitado funcionamento do olho humano.

Contudo, em vários momentos de Star Spangled to Death, o Jacobs inventor de formas – provavelmente o único cineasta vivo a possuir uma patente – dá um passo atrás, recua para que o trabalho arqueológico e o “autoindiciamento” imperem por um momento: se não há uma voz over contínua que corresponda ao discurso do filme e se a montagem intervém sutil e pontualmente durante boa parte do filme – num ensaísmo distante tanto da pedagogia farockiana, quanto da godardiana, quanto do restante de sua própria obra –, é justamente porque não é preciso nem guiar o espectador, nem abarrotar a montagem de comentários para que encaremos, com nossos olhos e ouvidos, o acumular das provas incontestes e reiteradas que compõem uma extensa ficha criminal. Noutros momentos, a intervenção analítica sobre a imagem e o acúmulo de camadas discursivas beira o paroxismo, como nos instantes fugazes em que notamos de relance os intertítulos que preenchem a tela inteira, mas aparecem e desaparecem sem que possamos lê-los durante a projeção (à época, Jacobs buscava experimentar os recursos de visualização quadro a quadro do recém-lançado formato DVD).

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De um lado, a pulsão intervencionista se refreia e nos permite constatar – estupefatos – que todo um way of life reside ali, naquele trecho de Kid Millions – musical de Roy Del Ruth, de 1934, estrelado por Eddie Cantor – que aparece já no quarto capítulo: nas centenas de crianças obcecadas gritando “We want ice cream!”, até arrebentar a porta da fábrica; nas canções que se dirigem às enormes vacas de plástico e perguntam quão felizes elas estão por trabalhar cinco dias por semana; no sorvete distribuído em máquinas automáticas que engorda as crianças raivosas como um balão cheio de ar; nesse momento em que o sorveteiro – a bordo de um carro conversível – dispara uma metralhadora de confeitos para o deleite das crianças – majoritariamente negras – que se esbaldam com os doces, grátis por um dia. De outro, a montagem se permite digressões que operam por justaposições improváveis, mais afetivas que analíticas, como no momento em que um corte nos leva da despedida dos exploradores em África (a voz over menciona a saudade dos entes queridos) a uma fotografia de Jerry Sims animada por uma canção de Josephine Baker de 1926 (na qual o eu lírico está feliz por voltar ao Alabama), seguida por um comentário nostálgico que lembra como os cantores antigos pareciam “do tamanho da vida” (“ouvimos uma pessoa que respira em pé diante de um microfone, e não uma maravilha da engenharia de som, um trovador biônico que nunca existiu”).

Em menos de dez minutos, o filme trafega entre a urgência da intervenção política no presente mais imediato (em 2004, os primeiros relatos das torturas no Iraque começavam a chegar), o trabalho arqueológico cuidadoso conjugado à análise ideológica sutil e perspicaz (haveria melhor síntese para a racionalidade americana do que um programa da CBS que se propõe a explicar “a medida do amor” em uma experiência com um macaco órfão, forçado a escolher entre um boneco de pano e uma armação de arame em uma gaiola?) e a justaposição iconográfica ao mesmo tempo lúdica e provocativa (ora vemos o experimento científico com o bebê macaco, ora vemos as performances de Smith, Sims e outros artistas paramentados com roupas e adereços infantis entre as crianças nas ruas de Nova Iorque).

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O repertório de operações de Jacobs é extenso e infinitamente variado. Star Spangled to Death reúne em uma só obra toda a imensidão das formas inventadas ao longo de uma extensa carreira: o traço improvisado, disnarrativo e performático dos primeiros filmes com Jack Smith – como Little Stabs at Happiness (1960) e Blonde Cobra (1963) – ressurge nas intervenções junto aos transeuntes; a celebração do cotidiano familiar – como em Nissan Ariana Window (1968) – se materializa em novas imagens da esposa Flo ou da filha Nisi, ou nas conversas amigáveis sobre o futuro entre Jack, Jerry, Bobby (Fleischner) e Ken que preenchem a banda sonora; o trabalho historiográfico de um What Happened On 23rd Street in 1901 (2009) é perceptível na retomada constante dos arquivos da cultura visual popular; a potência manipulatória dos filmes sob a influência do Nervous System – como The Georgetown Loop (1996) – anima as múltiplas interferências sobre a textura da imagem; a verve cômica da série Ontic Antics (2005) permeia todo o filme, deliciosamente irônico; a fúria militante – que voltaria com força renovada em Seeking the Monkey King (2011) – perpassa desde os intertítulos até os gestos de montagem (como no momento em que Jack Smith canta, geme e grunhe, e esse é o áudio que substitui o hino nacional estadunidense na retomada de um filme oficial chamado The Star Spangled Banner).

Arqueólogo, historiador, cômico, inventor, iconógrafo, militante: as facetas se multiplicam e se contaminam, como vasos comunicantes que se interpenetram constantemente. Como nesse momento inesquecível em que a rigidez das linhas e o tom acinzentado de um filme institucional da General Motors – no qual os trabalhadores expressam seu apoio à presença estadunidense na Segunda Guerra – é interrompido bruscamente pela entrada em cena do improviso e das cores vívidas (é a primeira vez que uma imagem em cores aparece no filme) das imagens de um grupo de crianças japonesas, cujos sorrisos parecem empalidecer ao som do discurso presidencial que anuncia a operação bem-sucedida em Hiroshima. No diálogo entre as duas imagens, no gesto de montagem que ressalta a variação cromática e composicional dos arquivos e altera a banda sonora, todo um cinema se esboça num átimo, e toda a gravidade da história de um país ressurge num golpe. 

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Biografia e história coletiva, memória pessoal e memória do mundo coexistem, animadas por uma personalidade artística ímpar. Os conhecedores da obra de Jacobs logo reconhecem os traços subjetivos do artista que atravessou incólume a segunda metade do século XX, influenciou gerações de cineastas experimentais dentro e fora dos EUA, renasceu mais prolífico do que nunca nos anos 2000 e agora pode ensejar essa espécie de testamento cinematográfico em vida. Se As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2000) inventariava de forma inigualável o repertório estilístico desenvolvido por Jonas Mekas e encarnava de forma definitiva todo o vitalismo de seu cinema, Star Spangled to Death é também uma sorte de obra derradeira antes do fim, que destila ao longo de quase sete horas um manancial de formas conquistado ao longo de décadas e imprime em cada frame, em cada gesto de montagem uma marca inconfundível, ao mesmo tempo em que envereda por territórios inexplorados. O mais autobiográfico dos filmes de Jacobs – há todo um fluxo narrativo centrado na conturbada amizade com Jerry e Jack – é também o mais diretamente político. Quantos artistas tiveram a sorte e a destreza de mergulhar em sua própria história de maneira tão profunda e formalmente íntegra antes de desaparecerem? Quantos conseguiram olhar para o passado de forma tão indissociável do presente, como no ébrio canto final de Mekas ou nas raivosas exortações contra Bush que encerram o filme de Jacobs?

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Se as operações do eternalismo de Pushcarts Of Eternity Street (2006) inventavam – ao intervir um século depois sobre as imagens de uma operação policial no Lower East Side em 1903 – uma temporalidade ao mesmo tempo impossível e materialmente inegável (por alguns minutos, a fruta lançada pelo rapaz gira eternamente no ar, como se esse personagem pudesse permanecer ali, sem nunca ter sido removido pelo cassetete do policial bigodudo) e disparavam uma nova maneira de enxergar o episódio histórico (e não apenas de interpretá-lo), as de Star Spangled to Death promovem uma outra relação com o tempo, a evidência e a irrealidade. Perto do fim do filme, depois de acompanhar durante seis horas as peripécias de Jack Smith se destacarem do fundo da história americana e de seu tresloucado Peekaboo tomar uma vez mais na banda sonora, imagens contemporâneas de uma manifestação antiguerra (“Drop Bush! Not bombs!”) na Quinta Avenida, filmadas pelo próprio Ken, tomam a tela. Um rapaz esguio se destaca na multidão, com seus adereços coloridos no figurino, comandando uma animada fanfarra militante.

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A câmera se aproxima num zoom-in e não restam dúvidas: o nariz aquilino, o carisma, a provocação dos transeuntes, o jeito de curvar a cabeça para a esquerda. The Spirit Not of Life But of Living (o papel de Jack Smith no filme) está de volta, cinquenta anos depois daquelas imagens e quinze anos após a morte do amigo. A postura cética e ranzinza de Jacobs em relação à religião que atravessava o filme (“religion is a bedtime story for adults”) cede diante da evidência da imagem reencarnada. O inventor e artífice de tantos milagres formais, o arqueólogo alquimista que tantas vezes interviu exaustivamente sobre as imagens para que elas pudessem explodir com força renovada na tela, um século depois, agora só precisa do acaso, de uma pequena câmera digital e de seu olhar curioso. Os discursos falaciosos de Bush, a intervenção da polícia que faz novamente desaparecer as imagens parecem menores diante da potência dessa nova dobra do tempo, desse milagre inquebrantável que o cinema faz chegar até nós. 

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